terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Carta aberta ao amigo Tiger

Carta aberta ao amigo Tiger

"Fiquei comovido quando anunciaste
que se afastaria da buraqueira da vida
para ser melhor marido, pai e pessoa"

XICO SÁ, Folha de São Paulo

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, triste de quem se protege sob o falso manto da imparcialidade e da frieza e não se comove com os ditos "dramas pessoais". Nos últimos dias, livre do selvagem grito de "chupa" que parte dos estádios, bares, varandas e janelas em São Paulo de Piratininga -que alívio-, só pensei no rolo em que se meteu o genial Tiger Woods. De buraco mais ou menos esportivo, o único que entendo é da arte de chutar tampinhas em bueiros, coisa que aprendi em um conto do João Antônio, que trata da virtuose de flanar com tal mira em ordem. Claro, na sinuca de botequim, minha canhota funciona a contento. Outrora, madruga, n'O Pescador, ganhei até do Paulo César Campos Viejo, o monstro do gênero da Liberdade e baixo Augusta. De golfe, porém, caro Tiger, gosto só da paisagem e da lentidão das partidas, além da sua elegância, óbvio.

Fiquei comovido, meu velho, quando anunciaste que se afastaria da buraqueira da vida, nela incluso o esporte fino, para ser "melhor marido, melhor pai, melhor pessoa". Tudo bem, pode ter sido apenas uma decisão do susto -e de que é feita a matéria da vida além disso?!- ou estratégia para salvar a imagem perante a caretice da América. Não importa, foi comovente, uma declaração honestíssima. Ainda mais em se tratando de um cara chegado, para valer, ao esporte olímpico ao qual estamos todos sujeitos, como protagonistas ou como vítimas: a globalizadíssima pulada de cerca. Atire a primeira pedra, querida Elin Nordegren, a ex-modelo sueca que nunca tenha pecado por vacilo ou por amor propriamente dito. Elin, o cara foi sincero, aceite o seu perdão. Você não sabe, amiga, o quanto é bom ter de volta um homem culpado publicamente pelas bolas foras e outros deslizes na grama molhada de testosterona. Será o melhor homem do mundo. Aposte nisso. Nem falo pelo dinheiro. Antes que as feministas saltem com pedras de gelo na mão para o meu uísque de fim de ano, alerto: o mesmo vale para uma cria da nossa costela quando volta prenha de culpas para o lar doce lar e nós a recebemos com tara e castigo. Um macho ou uma fêmea culpados são os melhores seres da humanidade. Elin, ponha essa aliança no dedo e aceite de volta o seu glorioso mancebo. Em tempos de homens frouxos, não há mais quem largue uma milionária carreira em nome da santa trindade: devoção pela mulher, proximidade com o filho e decência. Velho Tiger, danem-se os patrocinadores, danem-se as tacadas fora do casamento. O que importa é que deste uma grande lição, por susto ou reinvenção da ética, para todos nós. Que valha por uma lista de resoluções de fim de ano para muita gente. Parabéns, garoto!

xico.folha@uol.com.br

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Filosofia

Filosofia

Um professor de filosofia parou na frente da classe e, sem dizer uma palavra, pegou um vidro de maionese vazio e o encheu com pedras de uns 2cm de diâmetro. Olhou para os alunos e perguntou se o vidro estava cheio.

Todos disseram que sim…

Ele então pegou uma caixa com pedrinhas bem pequenos, jogou-as dentro do vidro e, agitando-o levemente, fez com que os pedriscos rolassem para os espaços entre as pedras maiores. Tornou a perguntar se o vidro estava cheio.

Os alunos concordaram: agora sim, estava cheio!

Dessa vez, pegou uma caixa com areia e despejou dentro do vidro preenchendo o restante. Olhando calmamente para os alunos, o professor disse:

- Quero que entendam, que isto, simboliza a vida de cada um de vocês. As pedras, são as coisas importantes: sua família, seus amigos, sua saúde, seus filhos, coisas que preenchem a vida. Os pedriscos, são as outras coisas que importam: como o emprego, a casa, um carro… A areia representa o resto: as coisas pequenas. Experimentem colocar, a areia primeiro no vidro, e verão que não caberão as pedras e os pedriscos. O mesmo vale para suas vidas. Priorizem cuidar das pedras, do que realmente importa. Estabeleçam suas prioridades. O resto é só areia!

Após ouvir a mensagem tão profunda, um aluno perguntou ao professor se poderia pegar o vidro, que todos acreditavam estar cheio, e fez novamente a pergunta:

- Vocês concordam que o vidro esta realmente cheio?

Todos responderam, inclusive o professor:

- Sim, está!

Então ele derramou uma lata de cerveja dentro do vidro. A areia ficou ensopada, pois a cerveja foi preenchendo todos os espaços restantes, e fazendo com que ele, desta vez, ficasse realmente cheio. Todos ficaram surpresos e pensativos com a atitude do aluno, incluindo o professor.
Então o aluno sentenciou:

Não importa o quanto sua vida esteja cheia de coisas e problemas, sempre sobra espaço para uma cervejinha!!!

Se possível, bem gelada e com os amigos.

Rua do vice-rei

Rua do vice-rei

RUY CASTRO, Folha de São Paulo

A construção de um centro empresarial com quatro edifícios de 23 andares, 22 metros de profundidade de escavação, seis níveis de subsolo e 187 mil metros quadrados de área total provocou rachaduras, abalos ou inclinações em 20 prédios da vizinha rua dos Inválidos, que liga a praça da República à rua do Riachuelo, não muito distante da Lapa. Cerca de 200 moradores foram desalojados pela Defesa Civil.

Quase todos esses prédios são tombados, preservados ou tutelados, o que fala por seu valor histórico ou cultural. Um deles, a igreja de Santo Antonio dos Pobres, de 1811, era frequentada por d. João 6º e os jovens príncipes. O trecho faz parte do Corredor Cultural, uma extensa área de preservação arquitetônica instituída pela prefeitura carioca há quase 30 anos. Tudo indica que a obra do centro empresarial, destinado à Petrobras, seja responsável pelo estrago.

A construtora alega que estava monitorando o impacto sobre o entorno. Ótimo. Mas seria o bastante? O Rio não é apenas um fenômeno natural, mas também uma admirável obra da engenharia -boa parte de seu centro foi construída há mais de 200 anos, sobre aterros que engoliram pântanos ou mandaram o mar para longe.
A rua dos Inválidos, por exemplo, é típica do velho Rio. Foi aberta em 1791, pelo vice-rei Conde de Resende, sobre um terreno alagadiço. Donde, por ali, qualquer avaliação para fins de construção precisa levar em conta, além da geografia, a história. É tudo muito delicado.

Nos anos de 1950 a 1970, ditos "dourados", as retroescavadeiras fizeram a festa contra o patrimônio da cidade. Hoje há mais consciência sobre isso. Não se trata de deter o progresso, mas, se a ideia é "revitalizar" o centro histórico do Rio, é preciso que continue a haver uma história para revitalizar.

O PT deveria conversar com Ciro

O PT deveria conversar com Ciro

ANDRÉ SINGER, Folha de São Paulo


O pré-candidato socialista detém uma característica

que o distingue na geleia geral da política:

tem ideias para o Brasil


O DISCURSO pronunciado por Ciro Gomes no plenário da Câmara dos Deputados na terça passada (15/12) abre uma oportunidade que não deveria ser desperdiçada pelo Partido dos Trabalhadores.

Vocalizando o crescente mal-estar com respeito ao comportamento do partido comandado por Michel Temer, Ciro acaba por tocar em ponto nevrálgico da situação atual, com possíveis reflexos de longo prazo, ao dizer à Folha que "a coalizão PT e PMDB tem feito mal ao Brasil".

Ciro Gomes não é um político tradicional. Em que pesem aspectos tipicamente personalistas, como a simpatia por Aécio Neves, que contrasta com a simétrica antipatia que devota por José Serra, o pré-candidato socialista detém uma característica que o distingue na geleia geral da política: tem ideias para o Brasil. Certas ou erradas, elas introduzem no debate elemento que o distingue da mera barganha entre interesses particulares.

Nos últimos 15 anos, Ciro buscou ocupar o espaço deixado vago com o deslocamento peessedebista em direção à direita do espectro ideológico.

Originário do campo tucano, decidiu se opor ao viés neoliberal que o governo Fernando Henrique imprimiu ao país e ao PSDB, criado em oposição ao fisiologismo do PMDB.

Vale recordar que numa conversão, à época chocante e inesperada, FHC optou por uma aliança com o então PFL (hoje Democratas) na disputa presidencial de 1994. Tal junção descaracterizou o PSDB, como a de hoje com o PMDB ameaça o PT. Menos pelas concessões programáticas que acarreta do que pela falta de conteúdo que implica.

Desde há muito o PMDB deixou de ter apego a um programa. Talvez uma análise minuciosa mostre que o ciclo programático do partido se esgotou quando promulgada a Constituição de 1988. Desde então, a sigla se transformou em um condomínio de lideranças regionais, com as mais diversas inclinações.

A ausência de um ideário comum possibilita maior flexibilidade na ocupação de espaços de poder. Tanto apoia a opção neoliberal do segundo mandato de Fernando Henrique quanto o caminho desenvolvimentista do segundo mandato de Lula. Nunca se ouviu falar de um debate interno ao partido sobre os diferentes projetos que tais governos representam.

Diferentemente, mesmo em meio às transformações que o lulismo tem causado, o PT mantém um vínculo com a tradição que o orientou por mais de 20 anos. O terceiro congresso do partido, realizado em 2007, reafirmou o caráter socialista da sigla e as manifestações da direção partidária ao longo dos últimos dois anos foram sempre no sentido de orientar o Brasil para um modelo pós-neoliberal.

Não deverá ser diferente o programa proposto para a candidatura Dilma no quarto congresso, a ser realizado em fevereiro próximo.

Muitos poderão dizer que são apenas palavras. Mas elas têm consequências práticas. Basta ver a ação dos ministros e parlamentares do PT durante o governo Lula.

Diante das alianças que darão suporte à postulação de Dilma, o PT deveria ser coerente com essas orientações. Consciente de que não tem a maioria dos votos no país, é correto buscar uma aproximação com outras correntes, sabendo que aliança se faz com aquele que pensa diferente.
Mas, para um partido de esquerda que deseja compor uma frente eleitoral, o diálogo esperado é com os vizinhos, sejam de centro-esquerda, como o PSB e o PDT, sejam de esquerda, como o PSOL, o PC do B e o PV de Marina Silva. Pular sobre essas forças para unir-se ao PMDB sem discussão programática alguma é negar o sentido ideológico da escolha.

As razões para priorizar o PMDB não são desprezíveis. Elas atendem ao frio cálculo eleitoral. Deixar os cinco minutos de TV e várias seções estaduais peemedebistas nas mãos de Serra pode ameaçar a vitória nas urnas em outubro de 2010. Assim, é preciso estar consciente de que abrir uma temporada de conversas com a esquerda e a centro-esquerda, que poderia resultar na candidatura de Ciro a vice de Dilma, representa uma trilha ousada. Seria, contudo, uma lufada de ar fresco em um ambiente de sufocante ausência de propostas.

A sugestão presidencial de uma lista tríplice a ser enviada pelo PMDB para escolha do vice e a fala de Ciro na Câmara apontam para o mesmo perigo. O de que a candidatura Dilma seja envolvida por tal realismo que termine por negar os princípios que deseja representar. Mesmo com as incoerências passadas e presentes de Ciro Gomes e do PSB, eles ainda são uma chance que resta ao PT para impedir que o sistema partidário evolua em uma direção pasteurizada que não interessa à sociedade brasileira.
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ANDRÉ SINGER, 51, é professor do Departamento de Ciência Política da USP. Foi secretário de Redação da Folha e secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República (governo Lula).

sábado, 19 de dezembro de 2009

Dicas para um casamento duradouro

Dicas para um casamento duradouro

por Marcelo Rubens Paiva

Poucos ficam indiferentes quando, numa cerimônia religiosa, o padre pergunta: “Promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando e respeitando até que a morte os separe?”

Os homens se entreolham. Será que consegue? As mulheres torcem. As céticas abaixam a cabeça. Parentes das duas famílias miram o altar, encaram o novo membro, esperam a resposta, zelando pelo seu.

Já houve caso de pessoas que tiveram ataque de risos diante do padre. No entanto, não se sabe se algum noivo pediu: “Defina ser fiel.”

E se a noiva respondeu: “Cala a boca, seu canalha, você sabe muito bem do que ele está falando.”
Ou se houve a réplica: “Tudo bem. Ser fiel na alegria e na tristeza. E no tédio, o que fazer?”

Há muito se discute se é possível manter um casamento seguindo os preceitos [ou a utopia] da fidelidade. Homens e mulheres se dizem incapazes de seguir o sermão à risca. Cada parte encontra justificativas darwinistas.

Dizem eles: a seleção natural contesta a fidelidade, já que o macho precisa espalhar seu sêmen pelo maior número de fêmeas, para garantir na reprodução a sobrevivência da espécie.

Dizem elas: a fêmea fica de moita, observa o comportamento dos machos e escolhe aquele mais forte, para aprimorar o gene do grupo, e se aparece outro mais forte, viril e galã da novela, ela teria que mudar de parceiro.

Bem, você está cansado de ouvir este papo furado. Mas foi no começo da revolução sexual que se começou a elaborar os princípios do casamento aberto. Aquele em que não é preciso pular a cerca, basta atravessá-la calmamente, já que está escancarada.

A ideia foi amadurecendo, muitas verdades do casamento passaram a ser questionadas e novas fórmulas, apresentadas, como as casas de swing e o ménage à trois.

Aponte uma mulher que não ouviu do marido, após o ato: “Não me leve a mal, eu te amo, você é linda, mas... E se você chamar uma amiguinha para nos assistir? Nem vou encostar nela. Juro. Só para apimentar a nossa relação...”

O casal de filósofos franceses, Sarte e Simone de Beauvoir, é reconhecido como o primeiro a propagar que não havia trancas nem fechaduras nem batentes no seu matrimônio.

Bem, alguns acreditam que Simone- que apareceu gata graças ao Photoshop na polêmica capa da revista Observateur- descobriu só depois do porre e do sim que Sarte não era exatamente um modelo de exuberância física, além de caolho, e teria proposto a novidade.

Outros afirmam que eles precisavam de estímulos externos, já que o sexo entre dois existencialistas nunca se completa.

Um costuma parar no meio do ato e perguntar: “Mas se a essência vem antes da existência, nós não existimos, e nada faz sentido?” E ficam aterrorizados pela dúvida até um deles pegar no sono.

Imagine que um casal consiga, enfim, chegar a um consenso e estabelece uma rotina madura em um saudável e bem resolvido casamento aberto. O diálogo entre eles causaria estranheza para quem vê de fora. Mas não para eles:

“Gato, vou jantar com o Mário. Sem piadinhas.”
“De novo?”
“Não. Será a primeira vez.”
“Na semana passada, você jantou com Mário, até dormiu com ele.”
“Aquele foi o Rômulo.”
“Que Rômulo, eu conheço?”
“Você ficou com a mulher dele no nosso Réveillon da Costa do Sauipe.”
“Belas costas... Antes ou depois da meia-noite?”
“Antes. Depois você ficou comigo.”
“É mesmo... Que farra. Rasguei o seu vestido a dentadas.”
“Não, deve ter sido com a mulher do Rômulo.”
“Tem certeza?”
“Eu já estava pelada, não se lembra?”
“Por quê?”
“Porque vi os fogos no mar com o Arnaldo.”
“Arnaldo?”
“Cuja mulher você papou no Carnaval de Porto de Galinhas.”
“Galinha... Claro, como era o nome dela?”
“Você acha que eu devo ir pra cama hoje?”
“Com quem?”
“Com o Mário. Sem piadas. É nosso primeiro encontro. Se eu ficar com ele já no primeiro encontro, ele pode me achar uma vadia. Tem homem que gosta de charminho.”
“Se ele te chamar de vadia, eu processo ele.”
“Fico ou não fico?”
“Fica logo. A vida é uma só.”
“Estou gata?”
“Está linda.”
“Ele vai me achar atraente?”
“Se não achar, liga para o Rômulo.”
“Mas a calcinha está marcando?”
“Está uma delícia.”
“Com lenço ou sem?”
“Sem.“Com sutiã ou sem?”
“Sem.”
“Com batom ou sem?”
“Amor...”
“Que foi?”
“Sei lá, está me dando uma coisa agora...”
“Ciúmes?! Ah, gato, nem vem! A gente combinou.”
“Não isso, não. É que você está tão linda sem batom, sutiã, lenço, com a calcinha marcando, que...”
“Que...?”
“Que me deu uma vontade de... Nada não. Vai jantar com o Mário. Melhor dar logo. Tem também os caras que detestam mulheres enroladas.”
“Tem certeza? Se quiser...”
“Precisamos disso para manter a chama do nosso casamento.”
“Te amo tanto...”
“Olha, você já estava esquecendo a camisinha.”

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Os faróis de Alexandria

Os faróis de Alexandria

Antonio Prata

As grandes ideias da humanidade não foram criações individuais, estalos de sábios isolados em suas cavernas ou gabinetes. O zero, o monoteísmo, a escrita, são iluminações coletivas, chamas oriundas da fricção de pensamentos distintos, em áreas de intenso tráfego humano. E qual ocupação mais obriga o indivíduo a chocar-se, diuturnamente, com todas as esferas do pensamento? Taxista, evidentemente. Eis porque o seu Araújo, motorista com ponto ali na esquina da Monte Alegre com a Wanderley, é a pessoa mais criativa que eu já trombei nesses 32 anos sobre a Terra.

De manhã é uma freira pra Casa Verde, depois o delegado, pros lados do Tucuruvi, então os estudantes de Agronomia, aparentemente amaconhados, indo pro Sumarezinho, onde entra o atacadista coreano, atrasado para o jantar de fim de ano com seu grupo de night bikers. De cada um, Araújo retém uma gota, que deságua no vasto oceano de seu pensamento. Seu táxi é uma Mesopotâmia sobre rodas, Alexandria com faróis de milha, oráculo de Delfos cheirando a sachê de pinho.

Ontem, seu Araújo levou-me de Pinheiros a Perdizes. Estava desanimado com o movimento neste fim de ano. "É a crise", eu disse. "Tsc tsc", ele fez e, olhando-me como se eu fosse um desinformado, soltou: "o Natal tá acabando". "Como?!". "Acabando. Em cinco, dez anos, no máximo, não vai mais ter nada disso de árvore, Papai Noel, presente... Vai ser que nem esses feriados que ninguém sabe a razão." Eu quis saber por que, mas ele já havia mudado de assunto ? e de humores. Indignado com o escândalo dos panetones, seu Araújo deu-me a solução para todos os males nacionais: "Tinha que fazer uma revolução francesa. Sabe como é? Pega todo mundo que tá no poder: corta a cabeça. Bota uma turma nova. Aí, no que eles acostumam, decepa outra vez. Traz um pessoal diferente, vai cortando e trocando, cortando e trocando, que é pra não acomodar. não acha que resolvia?!"

De violência o papo descambou pra terrorismo, e foi aí que meu amigo me contou que os atentados de 11 de setembro nunca aconteceram. "Você conhece alguém que morreu lá?". ''"ão, mas foi nos EUA, então é normal que...". "Não conhece, ?!". "Não". "Tá vendo? Faz oito anos que eu pergunto, ninguém conhece! É efeito especial. Imagina se prédio cai retinho, daquele jeito..." O Bin Laden foi criado num computador, assim como a Xuxa, ele jurou de pés juntos, já no fim da corrida. "Tenho um cunhado que dirige uma Van no Projac. Sabe tudo. , a mulher taí desde oitenta e pouco, com a mesma cara?! O mesmo corpo?! É coisa daquele Hans Donner, computador! Ou acha que não?!".

Eu? Quem sou eu, seu Araújo? Trabalho sozinho, fechado em meu escritório e não sei nada das coisas deste mundo.

Fernando Pessoa e os mitos

Fernando Pessoa e os mitos

“A concepção do poeta como criador de mitos está longe de ser trivial em nossa época“

ANTONIO CICERO, Folha de São Paulo

"O MITO é o nada que é tudo", diz o famoso primeiro verso do poema "Ulisses", do livro "Mensagem", de Fernando Pessoa. Em anotação de 1930 que devia ser o esboço do prefácio para a edição projetada das suas obras, ele diz: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade".

Essa concepção dos mitos como obras parece-me estar de acordo com a concepção homérica. Na cultura oral primária grega, que desconhecia a escrita, "mythos" se opunha a "epos". "Epos" (de onde vem "epopeia", a produção de "epos") é o discurso que se reitera, como as canções, os provérbios, algumas rezas, os epítetos tradicionais dos heróis ou deuses, e cada palavra individual.

"Mythos" é, ao contrário, o que jamais se reitera, como uma conversa qualquer, isto é, aquilo que se diz sobre alguma coisa. Assim, o mito de Édipo, por exemplo, é simplesmente o que se diz sobre Édipo. Pois bem, o que é que se diz sobre Édipo? Para nós é principalmente o que os poetas disseram sobre Édipo; em primeiro lugar, é o que os maiores poemas sobre Édipo disseram sobre ele: e esses são as peças de Sófocles; em segundo lugar, é o que os outros, como Freud, disseram principalmente a partir do que Sófocles dissera. Assim também, o mito de Ulisses é principalmente o que dele nos contam os poemas homéricos; o de Hamlet, principalmente o que dele nos conta Shakespeare etc.

Segundo o historiador Heródoto, foram os poemas de Hesíodo e de Homero que criaram "uma teogonia para os helenos e deram as denominações e as honras e distribuíram as artes e indicaram os aspectos dos deuses".

É isso sem dúvida o que Pessoa pensava quando, em anotação, de 1918, disse que "a religião cristã é essencialmente dogmática, no sentido de que tem princípios assentes, aos quais o crente tem, dentro de estreitos limites, que subordinar-se. No paganismo não é assim. A sua ação imaginativa criadora não se sente presa. Pode inventar um belo mito, que, se na verdade for belo ou insinuador, entrará na religião. Tão humana comunhão com a vida dos deuses não é possível no cristismo. O cristão católico tem a liberdade de inventar aparecimentos de Maria a este ou àquele, mas há severos limites às suas faculdades mitopeicas".

Dado que o criador de mitos, como mostra Heródoto, é o poeta, então é o poeta que, ao criar mitos, exerce, segundo Pessoa, "o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade": e é esse poeta que ele pretende ser.

Observo que essa concepção do poeta como criador de mitos está longe de ser trivial em nossa época. Muito mais comum é a contrária, que vem, em última análise, do romantismo, mas cuja origem mais remota talvez esteja em Platão. Refiro-me à concepção segundo a qual o mito é um arquétipo imemorial, incriado, que os poetas, por um processo de anamnese, recuperam para a comunidade a que pertencem. Para Pessoa, segundo penso, o mito é exatamente o oposto disso: o produto da poesia.

Não é gratuitamente que Pessoa retoma o mito de Ulisses e sua lendária fundação de Lisboa. Seu Portugal representa o mais alto destino não tanto da Grécia, da Europa ou do Ocidente em particular, mas, no fundo, de todos esses e mais, isto é, o destino do mundo moderno. "A arte portuguesa", diz ele em "Ultimatum e Páginas de Sociologia Política", "será aquela em que a Europa (entendendo por Europa principalmente a Grécia Antiga e o universo inteiro) se mire e se reconheça sem lembrar do espelho".

É assim que a verdade profunda do seguinte texto de Pessoa fica mais evidente quando se compreende que a palavra "português" funciona nele como um curinga, podendo ser substituída por "brasileiro", "italiano", "russo" etc.:

"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu [...]. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade".

a.cicero@uol.com.br

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Mario Bortolotto e violência: uma falsa associação

Mario Bortolotto e violência: uma falsa associação

Título do blog 'Atire no dramaturgo' é homenagem ao livro 'Atire no Pianista', de David Goodis

Beth Néspoli, de O Estado de S. Paulo

Mario Bortolotto vem reagindo e, ao que tudo indica, em breve vai poder falar do assalto que quase lhe tirou a vida. Talvez não tenha muito a acrescentar sobre o incidente, mas poderá desfazer a relação entre sua obra e a violência, preocupação evidente de seus amigos que pode ser detectada em vários textos veiculados pela Internet.

A inquietação mais intensa diz respeito ao equívoco envolvendo o nome do blog de Bortolotto, intitulado Atire no Dramaturgo. Muitos se preocuparam em esclarecer a origem desse batismo, homenagem ao livro Atire no Pianista, do David Goodis. Trata-se de um romance policial que, por sua vez, remete ao cartaz NÃO ATIRE NO PIANISTA que podia ser lido nos saloons do Velho Oeste.

Outra fonte de equívoco talvez tenha vindo das imagens publicadas no blog de Bortolotto da peça Brutal, em cartaz no Espaço dos Parlapatões na madrugada do assalto. Sobretudo uma imagem, respingada de sangue, da atriz Maria Manoella. Mulher do ilustrador Carcarah, que também foi baleado, ela enfatiza: "a peça é um manifesto contra a violência."

Ainda assim, o tom de Brutal é quase exceção na vasta obra desse dramaturgo. Os personagens de Bortolotto costumam portar mais copos do que armas; há mais outsiders do que bandidos. Editadas, são 19 peças, em três livros de coletâneas. Quem se der o trabalho de ler verá que mesmo os bandidos, em sua maioria, como no velho oeste, orgulham-se de um código de honra no qual não cabe o ataque covarde.

Há quem compare Bortolotto ao Plínio Marcos, mas se há algo em comum, é apenas a compaixão pelo ser humano desgarrado. E só. São universos diferentes. Os personagens de Plínio Marcos lutam para se integrar. Gostariam de ter família, casa e carro, mas têm um impedimento de origem: a pobreza extrema. Por isso são trágicos, nascem marcados por um destino imutável. Querô, filho de uma prostituta que se matara tomando querosene e é criado num bordel, não pode conquistar nada na vida. Seu meio ambiente e seus recursos não permitem, ainda que ele tente.

Já os protagonistas de Bortolotto tornam-se marginais - no sentido de estar à margem, na periferia do sistema econômico - por conta de sua escala de valores. Eles recusam a ideia da conquista de um carro 4x4, roupas de grife, casa na praia e celular último modelo como sinônimo de sucesso. São marginais porque preferem a liberdade de não produzir em série numa esteira industrial, coisa antiga, ou de "serem produzidos em série", expressão talvez mais pertinente ao jovem trabalhador na atual sociedade de consumo digital. Uma dramaturgia assim nada tem a ver com o estímulo à violência, pelo contrário. Hoje em dia mata-se e morre-se por um "vai passando o celular" como disse o assaltante que atirou em Bortolotto, no testemunho de seu amigo Carcarah, também baleado. E Bortolotto, que não dá a mínima por um celular, reagiu, provavelmente pelos amigos.

Fiel ao que prega, ele não tem muitos bens materiais, apenas uma quitinete no centro da cidade, comprada com os direitos autorais pagos pelo ator Raul Cortez por duas de suas peças, seus livros e sua obra, essa última um bem 'apenas' simbólico, imaterial. Tem muitos amigos e de boa cepa. "Cuidado com a vaidade da dor", foi uma frase ouvida pela reportagem do Estado no sábado, na Santa Casa de Misericórdia. Havia ali um acordo tácito de não se gravar entrevistas para a televisão. Assim, evitou-se o espetáculo da comiseração e da solidariedade forçada. Carcarah, ilustrador, autor dos desenhos de capa de dois livros de Bortolotto, um deles Atire no Dramaturgo, compilação de textos do blog, hesitou em dar entrevista ao Estado depois de ter alta do hospital. "Pode dar a impressão de que estou querendo aparecer. Quem tem de falar é ele, quando estiver bom." Bortolotto pode não ter muito a esclarecer, mas vai saber que os valores de seu teatro têm ressonância. No mínimo, entre seus amigos, que não são poucos.

La main de gloire

La main de gloire

Verissimo, Estado, 29 nov. 2009

O próprio Thierry Henry pede que o jogo seja repetido. Ele está sendo corroído pelo remorso. Levou, sim, a bola com a mão na jogada que resultou no gol que classificou a França para a Copa do Mundo - e desclassificou a Irlanda. Thierry Henry tem sonhos. Num dos sonhos, gnomos irlandeses invadem o seu quarto enquanto ele dorme e levam a sua mão! Thierry Henry acorda sem sua mão esquerda, a que ajeitou a bola para o passe. A mão criminosa, levada para Dublin, para ser julgada. Em outro sonho, a seleção da França entra em campo para o seu primeiro jogo na Copa da África do Sul, e o estádio inteiro agita a mão esquerda no ar enquanto vaia os franceses, e Thierry Henry identifica a sua própria mãe no meio da multidão gritando "Vergonha! Vergonha!" "Honte! Honte!" A seleção tenta se refugiar no vestiário, mas as mãos vão atrás e derrubam os jogadores com cócegas e tapas. Ouve-se no estádio uma nova versão da Marselhesa: Alonsanfã de la patrie, la main de gloire est arrivê... Thierry Henry não consegue comer. Pela sua saúde - sem falar na sua honra e na honra da França - é preciso que o jogo seja anulado e jogado outra vez. Mas a Fifa resiste.

- Pense na complicação, Thierry. Anular um jogo e organizar outro... Mudar todo o nosso calendário... Não dá.

- Mas eu não aguento mais o remorso. Não durmo, não como... E o bom nome da França?

- Temos de ser práticos, Thierry. Aconteceu, foi lamentável, mas não se pode mudar a História. E o bom nome da França, que já resistiu a tanta coisa, certamente resistirá a mais isto. O governo de Vichy foi bem pior.

- Sim, mas e eu? A minha história, o meu bom nome? E a minha saúde?

- Tudo isto passará com o tempo, Thierry. E tem outra coisa.

- O quê?

- Pense no precedente.

A Fifa tem razão. Repetir o jogo por causa da mão e da culpa de Thierry Henry criaria um precedente incômodo. O remorso de Thierry Henry poderia contagiar o planeta. O arrependimento e a ânsia de confessar erros e corrigir a história poderia extrapolar do mundo do futebol (outras mãos decisivas que o juiz não viu, pênaltis fingidos, campeonatos comprados) para o da política ("Roubei, roubei sim! Quero que me cassem!") e dos negócios ("Superfaturei! Explorei meus empregados! Não mereço a minha fortuna!") e acabar numa orgia de autorrecriminação e reparação, culminando - por que não? - com as Américas sendo devolvidas aos índios.

Mas Thierry Henry insiste. Sua culpa precisa ser expiada.

Maradona telefona.

- Tchê, Henry. Que pasa?

- Foi o passe que dei depois de ajeitar a bola com a...

- No, no. Que se passa por aí? Que história é essa de querer voltar atrás e desfazer a sua mão? Vão acabar pedindo que a Argentina devolva a Copa de 86 por causa do gol que eu fiz com a mão contra a Inglaterra. Ou decidindo repetir aquele jogo. Nada de voltar no tempo, viejo. Para com isso. O que está feito, bem ou mal, está feito. Volver é nome de tango.

- Mas você nunca sentiu remorso?

- Re o quê?

Thierry Henry finalmente cede. Não insiste na expiação da sua culpa. Raciocina assim: se a França for mal na Copa, será castigo suficiente. Se a França ganhar a Copa, então rasgará as vestes, derramará champanha sobre a própria cabeça e será esmagado e carregado no ar por homens suados, como contrição.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A arte de cantar na chuva

A arte de cantar na chuva

Arnaldo Jabor, Estado, 08 dez. 2009

Nietzsche escreveu: "Há muitos séculos, em um ponto perdido do universo, banhado pelas cintilações de inúmeras galáxias, houve um dia um planeta em que animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o instante mais arrogante e mais mentiroso da história do universo, mas foi apenas um instante. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta se congelou e os tais animais inteligentes tiveram que morrer."

Parece o prólogo de Guerra das Estrelas, mas é uma ironia, porque Nietzsche achava que, por trás da busca científica e racional da verdade, mora o desejo da morte, de esgotamento da vida, por uma letal explicação de tudo. No mundo atual, vemos o espantoso descompasso entre o avanço científico e humano, vemos a convivência horrível entre o Hubble, a fome e o massacre de miseráveis.

Nietzsche sonhava com um futuro (nem ele escapou de um "finalismo"...) que daria sentido à vida:

"A arte é mais poderosa que a Ciência, pois ela quer a vida, enquanto o objetivo final do conhecimento é o aniquilamento." Claro que não tenho nível para aprofundar este tema; mas temos hoje esta maravilhosa e imprevisível metástase da informação digital da tecnociência ao lado do indigente, tuberculoso desempenho artístico do mundo.

Onde está a grande arte hoje? A falta de esperança ou da ilusão de futuro gerou uma debandada em todas as direções:

O catastrofismo para as massas (2012), a indústria dos best-sellers e autoajuda, a literatura engajada, a literatura do cinismo histérico de um caos "pop", os tubarões petrificados (Damian Hirst), latinhas de cocô de outros picaretas e a ausência de música erudita relevante.

No cinema, por exemplo, temos de um lado o mercantilismo escroto de Hollywood e do outro a agonia do filme independente.

Até pouco tempo, alguns cineastas americanos tinham fascínio por climas "densos", como eles imaginavam que era a "arte europeia". Geralmente, esses filmes ficavam ridículos.

Era patético ver os comedores de cachorro-quente falando do Ser e do Nada. Mas até isso acabou.

Com a morte do "Absoluto europeu", os ideólogos do mercado estão eufóricos. A expressão "eurocentrismo" passou a ser um xingamento. Os mercadores americanos chamam os europeus de "decadentes e intelectualizados". Seu fracasso seria devido ao "esnobismo", recusando-se a qualquer coisa que faça sucesso comercial. Dizem: "Como são incapazes de se modernizar (leia-se: "americanizar"), os europeus se "refugiam no passado"."

"O último grande pintor francês foi o Jean Dubuffet", afirma a besta quadrada do Fernando Botero, o mais domesticado dos pintores latinos e, claro, sucesso entre os burgueses de Nova York. O pior é que é verdade. A pintura europeia, a música, o cinema, tudo está na UTI. Mas, a culpa é de quem? A Europa teria ficado burra? Os americanos acham que a Europa é "inteligente demais", e que isso atrapalharia a criação artística.

Sempre houve uma bronca contra a "profundidade" da cultura do Velho Mundo. Isto foi tema de vários musicais e chegou, paradoxalmente, a criar obras-primas como Cantando na Chuva ou Band Wagon (Na Roda da Fortuna).

E, no entanto, eles não sabem que a genial originalidade de seu cinema vem justamente do "superficial" em filmes sem ambições. Busby Berkeley foi tão importante quanto os "Ballets Russes".

Do outro lado do muro, vemos a solidão melancólica das vanguardas e dos filmes independentes.

Nos guetos, a vanguarda luta desde 1916, desde o Cabaret Voltaire, desde o dadaísmo, mas parece que ninguém mais presta atenção nestes "excluídos", porque, como sacaneou o Louis Jouvet: "Tudo muda, só a vanguarda não muda..."

O conceito de "experimental" está muito ligado à ideia de sofrimento, autodestruição, à proibição da redundância como um crime e ao cultivo do desagradável e do frio. A experimentação tinha de ser, como queria Stravinsky, "exaltante". A arte se fechou numa paranoia conceitual e minimalista. Ou melhor, o mundo fechou os artistas.

Movidos pela ideia socrática que Nietzsche tanto ataca, de que a arte tem de ser subordinada à Razão, os artistas caíram numa denúncia melancólica das impossibilidades. Não há futuro para a arte subordinada à razão, seja ela digital, mercantil, iluminista ou o cacete a quatro.

Prevaleceu a vertente "triste" do modernismo, a vertente "conceitual" que joga sobre o "mal do mundo" apenas um vago mau humor, uma ideologia nevoenta de criticismo, apenas uma arte enojada contra o mal-estar da civilização. Acho que está na hora de se recriar um construtivismo positivo, em vez da destrutividade automática.

Por que a melancolia seria mais profunda que a alegria?

O "novo" não poderia ser um "belo" que denuncia, com sua luz, a injusta vida?

Será a melancolia a única forma de reflexão? Como então explicar Fred Astaire, a arte pop, o jazz? Michael Jackson? Depois do pop, será que uma aids "conceitual" não atacou tudo, depauperando a luta? E se a arte tentasse disputar pau a pau com o Sistema, mesmo sabendo que perde, em vez de cair nesta autoflagelação acusatória?

Outro dia fui ver Lua Nova com meu filho. O filme é ruim, mas é "bom" ? há ali algo de novo, como se fosse filmado e montado por vampiros e lobisomens. Batman também é ruim, mas é "bom" ? um apocalipse ou uma apoteose de efeitos especiais que transformam em caretice linear o surrealismo ou o dada. Sempre esculachei o cinema brutamente comercial, mas hoje vejo que há nestes novos delírios de massa alguma semente formal do que poderíamos chamar de um novo "barroco digital".

Precisamos de arte, como uvas e frutos e danças e como um coro de Silenos, de Dionísios, pois a ciência e a razão querem chegar até os ossos da "essência". A arte tem de ser o grande ritual de embelezamento da vida. Nietzsche: "A ilusão é a essência em que o homem se criou."

A arte é a ilusão aceita, a clareza feliz de que a aparência é o lugar do humano e que só nos resta essa hipótese de felicidade num planeta gelado.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Sonhando acordada

Sonhando acordada

Fonte: Adriana Falcão, Estado, 28 nov. 2009 

Luciene e... Gabriel!

Gabriel ia ser o máximo.

Imagina só eu com um namorado que atendesse pelo nome de Gabriel?

- Mas vejam que novidade, você está namorando! Como é que ele se chama?

- Gabriel.

- E ainda tem nome de anjo!

Todo mundo ia ter inveja de mim. Ainda mais que Gabriel tem a maior cara de homem bonito. E inteligente. E rico. E jovem. Mas aí também já era querer demais. Não. Gabriel é muita areia pro meu caminhãozinho.

Filipe?

Luciene e Filipe. Não é anjo, mas é rei. Filipe IV, rei de Espanha. Sendo que, com a minha falta de sorte, está na cara que o meu Filipe ia ser, no máximo, vereador. Ainda assim eu duvido que ele ganhasse a eleição. Arranjar um namorado já está difícil, quanto mais um namorado vencedor. Nunca que eu ia conseguir um negócio desses. Desculpa, Filipe, mas você acaba de perder a chance de namorar comigo pela razão de que eu nunca conseguiria ter chance com você.

Melhor pensar menor.

Não precisa ser rico, nem jovem, nem rei, nem candidato a nada.

Se estiver empregado já é um luxo.

Digamos, Bento.

Bento é bom. Um rapaz meio tímido, meio apagado até, mas muito sincero. Bento é ótimo. Trabalhador. E não é nome tão concorrido. Não é possível que eu não encontre um só Bento disponível. Mas o problema é justamente que Bento tem pouco. Melhor arranjar um nome mais usado.

José. É bastante populoso. Com a vantagem que pode ser José Antônio, José Armindo, José qualquer coisa que fosse. Juro que eu não me incomodava se fosse José Pafúncio. Eu chamava ele de Zé puro e a gente ia ser feliz até demais.

- Zé!

- Fala, Luciene.

- Me chama de Lu.

- Pra quê?

- Pra todo mundo achar que eu me chamo Luciana.

- Se for pra mentir, melhor chamar logo de Diana que é nome de princesa.

- Diana e Charles.

- Charles não, Luciene, eu prefiro José Pafúncio.

José Pafúncio tem razão, mesmo não existindo. Mentir não vale. Tem que ser um namorado com o nome dele mesmo. Deve ser por isso que a gramática chama isso de "nome próprio". Porque é o nome próprio da pessoa. Ainda que a pessoa seja pura imaginação. E mesmo que eu não ache apropriado alguém se chamar Hipólito, se vier um Hipólito, há de ser Hipólito e pronto. Popó, que seja. Pois apelido, isso é claro que vale.

Lu e Popó?

Para de pensar besteira e vai dormir, Luciene, que amanhã você tem trabalho cedo!

O homem-bomba matou o ''eu''

Realmente, é para se pensar!

O homem-bomba matou o ''eu''

Arnaldo Jabor, Estado, 01 dez. 2009

"Ultimamente, dei para falar sozinho. Não falo baixinho não, falo sozinho mesmo, principalmente de noite, deitado na cama e tentando entender o que se passa comigo. Falo alto e chego a ficar com medo. Medo de quê? Medo de entender quem fala com quem, quando falo sozinho. Eu falo e ouço ao mesmo tempo. Mas, quem ouve o que eu falo? Por exemplo, se eu disser no escuro do meu quarto: "Onde eu errei naquele amor?" Tenho medo de que alguém me responda na sala ao lado, de dentro do banheiro vazio, onde pinga o chuveiro e a privada gorgoleja. Uma coisa que me intriga é a forma de falar sozinho; devo falar com todos os "ss" e "rs", ou posso falar desleixadamente, pois afinal de contas eu sei o que estou falando?

Aliás, nem preciso falar alto, basta pensar entre resmungos, gemidos e risos abafados; mas, aí me assalta outro medo: há dentro de mim uma terceira pessoa ouvindo o diálogo de mim comigo mesmo? Mas, não resisto aos clamores da norma culta e tento falar com alguma qualidade literária para mim mesmo. Assim, aumenta minha angústia. Uma pessoa fala - que sou eu - outra pessoa ouve - que sou eu - e uma terceira pessoa julga a qualidade do meu discurso, que também sou eu. Estarei maluco? Escrever também. Para quem eu escrevo isto, aliás? Escrevo para mim mesmo, mas leio como se fosse outro, um crítico, um "Antonio Candido" dentro de mim. Quem é o outro que me lê dentro de mim? Estou cercado por vários personagens que me rondam, andam pelo quarto, vão até a sala, abrem a geladeira, comem meu pudim e voltam, sempre ouvindo e julgando.

Quero ficar sozinho e não consigo. Vou ao espelho e me olho. Madrugada. Não estou sozinho, porque me vejo me vendo no espelho. "Je... est un autre." Não há "eu". Quem disse isso? Foi Rimbaud ou Artaud? Acho que os dois. Estou possuído por outros "eus" que não são "eu"...

(Este texto seria o início de uma novela que pensei em escrever. Não o fiz, mas serve para abrir este artigo de hoje - "papo-cabeça meia-boca", desculpem...).

Afinal de contas, quem sou eu? Fico falando na TV, escrevendo nos jornais, tentando ser um sujeito útil, mas, no duro, quem fala debaixo destas duas letrinhas: "Eu"?

Oscilamos entre o desejo de ser "especiais", únicos e brilhantes sujeitos, para sair do anonimato (supremo pavor) e ser algum "eu", ou então temos o desejo da solidão absoluta, ser "nada", apenas um bicho sem memória ou desejo, uma formiga conduzida por um comandante qualquer.

Talvez nesse "bicho sem eu" haja um "eu" mais geral, feliz, sem fraturas, um eu submisso, nosso desejo oculto, como escreveu Dostoiewski ou um sujeito mítico, como nos revelou Levi-Strauss sobre a mente selvagem. A tradução da palavra Islã é submissão; o eu selvagem é "fora do tempo" ("timeless").

Para nós, ocidentais de base judaico-cristã, é difícil, porque inventaram o tal "livre arbítrio" (cf - O Grande Inquisidor, de Dostoievski). Entre o indivíduo e a massa, entre o ser e o nada, respira a liberdade, como um bicho sem dono, a liberdade, esta coisa que nos provoca tanta angústia. Que liberdade? Para ser contra a guerra? Ou para ser a favor da guerra? Tanto faz, pois a guerra já está decidida pela marcha das coisas.

O "eu" está sem orgulho, sentindo-se inútil. O "eu" virou um luxo para poucos.

Há o desânimo de pensar, de escrever sobre algo morto e inevitável e que já foi decidido. Sem esperança não há filosofia. Temos de nos conformar que não há mais solução para o terrorismo, para a boçalidade, para o mal, para a miséria, para o meio ambiente.

Só resta ao "eu" acumular riquezas, charmes ou ilusões. Seria o "eu-burguês", o "eu-Miami", o "eu-narciso", o "eu" que mostra a bunda, o "eu" de silicone ou o "eu-Big Brother". O homem-bomba matou o Eu.

Todo o pensamento humanista está tristinho, queixoso de tanto absurdo, tanto na guerra internacional como na vida urbana. De que adianta o lamento, o escândalo? Como falar em compaixão a propósito de um menino de 13 anos que decepa a cabeça de um colega com um machado? Como falar em democracia com muçulmanos analfabetos, que desde o século 7º batem a cabeça nas pedras para extirpar qualquer resquício de liberdade, enquanto aqui na América Latina a democracia é usada para novas ditaduras?

O século 21 começa como uma Idade Média, comandado pela indústria das armas e da poluição incontrolável. Não dá para entender os acontecimentos à luz de um antigo humanismo, de uma tradição racional que nos prometia um futuro de harmonia. Só nos restará um "catastrofismo esclarecido", como nomeou Jean Pierre Dupuy, filósofo da Escola Politécnica de Paris e da Universidade de Stanford. Na coletânea organizada por Adauto Novaes, sobre a "Experiência do Pensamento", ele escreveu o seguinte:

"Sempre o Mal esteve relacionado com as intenções de quem o comete. Os horrores do século 20 deviam ter-nos ensinado que isso é uma ilusão. O absurdo é que um mal imenso possa ser causado por uma completa ausência de malignidade, que uma responsabilidade monstruosa possa caminhar junto com uma total ausência de más intenções. (...) a catástrofe ecológica maior com que nos deparamos e que põe em perigo toda a humanidade será menos o resultado de um mal dos homens ou mesmo de sua estupidez. Terá sido mais por uma ausência de pensamento ("thougthlessness") (...) Hoje, um sem número de decisões de toda ordem, caracterizadas mais pela miopia do que pela malícia ou pelo egoísmo, compõem um todo que paira sobre elas, segundo um mecanismo de autoexteriorização ou de autotranscendência.

O mal não é nem moral nem natural. É um "mal" do terceiro tipo, que chamarei de "mal sistêmico."

Diante da espantosa evolução da tecno-ciência, o "eu" virou uma bactéria tolerada, a ser clonada e dirigida.

Em suas aulas e seminários, Jacques Lacan sempre perguntava aos que lhe inquiriam ou criticavam: "D"ou parlez-vous, monsieur?" ("De onde" o senhor está falando?)

É o meu caso.

Afinal de contas, de onde escrevo isto? Para quê?

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Sócrates e o porco

Sócrates e o porco

"Para o sr. J. Campos,

"felizmente, Deus não existe, ainda".

Mas vai existir, garante seu livro"

CARLOS HEITOR CONY, Folha de São Paulo, hoje

O CONTÍNUO veio avisar que o sujeito queria falar comigo. Fui lá fora, e o camarada alto e magro levantou-se e apresentou-se: J. Campos. Homem de meia-idade, parecido com o Guimarães Rosa quando ria, aquele brilho nos olhos esverdeados, aquela mesma hesitação no falar, como quem procura sempre a palavra exata. J. Campos lera um livro meu, sabia-me de vagas inquietações e viera oferecer seus préstimos e seu livro, edição particular.

Campos saíra de seus ócios, enfrentara o calor da cidade para me trazer sua mensagem. Prometi ler-lhe o livro -e seria apenas uma promessa somada a outras que vou fazendo e me esquecendo de cumprir.

Por desencargo de consciência, folheei o livro para depois jogá-lo num canto qualquer. Mas o Campos mexeu em feridas cá dentro, não cicatrizadas ainda. Veio, sobretudo, ressuscitar uma velha leitura minha, "Le Phenomène Humain", de Teilhard Chardin, um jesuíta francês que criou um caso com suas teorias.

Mas era emoção morta, nenhum dos meus amigos ou inimigos conhecia o livro de Chardin. E, como resolvera enfrentar a vida em termos práticos, enterrara Chardin e seu livro para sempre.

E eis que me surge o sr. J. Campos com o livro sobre as teorias de Chardin. E sinto um pouco de perplexidade e carinho, como quem, regenerado de uma vida de crimes, descobre anos mais tarde o insuspeitado sócio de um crime sepultado e insolúvel. Evidente, há terror nessa descoberta. Não só pela comparação que ela me sugeriu como pela descoberta em si. Pois essa descoberta pode ser Deus.

Seria inútil resumir a teoria de Chardin e os comentários de J. Campos a respeito. Em linhas gerais, podia dizer o seguinte: no dia em que o mundo estiver sob regime socialista integral e solidário, velhos organismos de outros regimes terão de sobreviver. Um desses organismos seria a igreja. E aí surge a questão: como a igreja sobreviveria em um Estado ateu e socializante?

Deixando de lado as escaramuças iniciais de ambas as partes, haveria de ser encontrada uma fórmula que desse ao Estado e à igreja autonomias e bases para a coexistência. Essas bases já começam a surgir, veladamente, no seio da igreja. Pronunciamentos esparsos, algumas teses mais afoitas.

Evidente, os altos escalões ignoram essa tentativa, mas a soma dessas tentativas, mais cedo ou mais tarde, corporificará uma doutrina específica para a situação que se criar. Foi assim no passado -e a igreja, sem trair seus postulados mais importantes, aí está depois de Lutero, da Enciclopédia, da Revolução Francesa, de Darwin, da Revolução Russa.

O jesuíta Chardin bolou a fórmula para a igreja depois de Engels e Marx. E, embora não aceitando passivamente a ontologia chardiniana, Campos avança mais um pouco -o que talvez tenha sido seu erro ou sua inexperiência. Chardin veio nas águas de uma pesquisa clássica: o homem como perspectiva e, ao mesmo tempo, construção do Universo. Isso junta, no mesmo leito, a filosofia idealista e a materialista -e Campos aprova tal promiscuidade.

Mas Chardin vai adiante: "Ser mais e unir-se cada vez mais. Donde: o homem tende a unir-se com todos os outros homens". Até aí, a linguagem do jesuíta agradaria a tomistas e marxistas, incluindo o sr. J. Campos. Mas onde Chardin envereda por um caminho, o Campos por outro -eu empaco no mesmo lugar, sem enveredar por caminho nenhum- é na questão da presença de Deus nessa união. Para o sr. J. Campos, "felizmente, Deus não existe, ainda". Mas vai existir -é o que garante o seu livro.

E, de repente, me sinto igual a um ateniense dos tempos de Paulo que adorasse a um Deus inexistente. Até que surge o apóstolo no Areópago e diz: "Atenienses! Há um Deus que vós adorais sem conhecer. E é desse Deus que vos venho falar!". Campos repete -ao menos para mim- o mesmo encantamento de uma súbita descoberta: o Deus em que deveria crer não existe ainda, a culpa não é minha, é do Deus que ainda não existe.

Daí que lembro, a atenienses e cascadurenses, a máxima citada por Campos: mais vale um Sócrates inquieto do que um porco satisfeito. Assim sendo, que será do porco insatisfeito?

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Macacos somos todos

Macacos somos todos

“A natureza encarregava-se de ajustar

 as peças do relógio,

 preservando os mais bem adaptados”

JOÃO PEREIRA COUTINHO, hoje na Folha  

IMAGINEMOS: existe um caminho; existe um relógio perdido no meio do caminho; é lógico pensar que o relógio não surgiu por acaso. Foi o produto de mãos informadas, que juntaram partes microscópicas para que o relógio, enfim, funcionasse.

Essa belíssima metáfora pertence a William Paley (1743-1805). E ela resume, com a simplicidade só acessível aos grandes, o credo da ciência natural na Inglaterra do século 19: apesar das teorias "evolucionistas" de Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) ou Erasmus Darwin (1731-1802), Deus é o supremo relojoeiro.

O relógio de Paley deixou de funcionar há precisamente 150 anos quando o neto de Erasmus Darwin, Charles Robert, publicava "A Origem das Espécies". E se o relógio fosse o produto de um longo processo de seleção e adaptação sem nenhum relojoeiro por detrás? A hipótese, hoje, parece-nos evidente. Eu próprio, lendo a "Origem..." e o brilhante ensaio de Janet Browne sobre o livro, imitei a exclamação de Huxley, o "buldogue de Darwin": "Mas como é que eu não pensei nisso antes?".

A pergunta faz sentido. Mas o mais interessante sobre a "Origem..." é que a obra, tal como a teoria que ela apresenta, é também um produto de acasos: aventuras biográficas, leituras ocasionais e observações empíricas experimentadas por Darwin nos primeiros 50 anos da sua vida.

Começa por ser um produto da sua frustrada passagem por Edimburgo, para cursar medicina e seguir as pegadas do pai. Sabemos que Darwin acabaria por abandonar o curso, horrorizado com a brutalidade de certas terapêuticas. Mas os anos na Escócia, ao permitirem os primeiros contactos com as teorias "evolucionistas", plantaram na cabeça do jovem Charles as primeiras inquietações: e se os seres não são o resultado de um único ato da criação?

A resposta a essa possibilidade seria avançada a bordo do Beagle: viajando pelo mundo, Darwin confrontava-se com a essencial diversidade dele. Mas não apenas com a diversidade visível; também com a falta de estabilidade inferida: a sul de Buenos Aires, por exemplo, o naturalista encontrava fósseis de mamíferos com traços anatômicos semelhantes, mas não iguais, aos das espécies contemporâneas.

A juntar a essa "instabilidade" e "descontinuidade" das espécies, as horas a bordo eram preenchidas com a leitura do geólogo Charles Lyell (1797-1875). E se Lyell desaprovava a "transmutação" das espécies, toda a sua teoria geológica apontava no sentido inverso: as mudanças da Terra não eram conduzidas por nenhum "relojoeiro" divino. Eram o resultado de múltiplas, pequenas e graduais alterações naturais, ao longo de períodos de tempo imensamente longos.

Quando regressou à Inglaterra em 1836, Darwin tinha uma certeza: no mundo natural, as espécies variam e "transformam-se". Faltava explicar como.

E seria Thomas Malthus (1766-1834) a fornecer uma preciosa ajuda. Malthus era um cientista social "avant la lettre", para quem o crescimento demográfico suplantava a capacidade humana de produzir alimentos. Essa explosiva situação teria um preço: a fome, o conflito, a guerra -uma luta pela sobrevivência de todos contra todos em que os mais pobres e fracos estariam condenados a perecer.

Malthus oferecia, no fundo, uma conceitualização teórica para práticas banais que Darwin observava entre agricultores ou criadores de gado, sempre interessados em selecionar os melhores exemplares, dotados dos traços mais valiosos, para se reproduzirem ao longo de gerações. Deus não era o relojoeiro. A natureza encarregava-se de ajustar as peças do relógio, preservando os mais bem adaptados, preservando os seus traços mais vantajosos numa perpétua luta pela sobrevivência. E pela continuidade da espécie.

Converteu-se em clichê afirmar que o mundo nunca mais foi o mesmo depois da "Origem...". Feliz e infelizmente, o clichê é verdadeiro. Felizmente, a obra de Darwin é um exemplo de honestidade e rigor intelectual capaz de oferecer a mais poderosa explicação científica sobre o longo caminho da humanidade.

Infelizmente, Darwin não sobreviveria para testemunhar o que ideólogos ou fanáticos diversos acabariam por fazer com as suas ideias: uma defesa da subjugação e mesmo do extermínio de raças consideradas "inferiores" e "dispensáveis" por autoproclamados Super-Homens. Tivessem eles lido Darwin com atenção e aprenderiam que não existe motivo para triunfalismos ou distinções. Pretos, brancos ou amarelos, macacos somos todos.

jpcoutinho@folha.com.br           

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

PERFEITO!

Perfeito, pra dizer o mínimo, o que o jornalista Flavio Gomes escreve sobre o caso da minissaia. Uma verdadeira reflexão sobre os rumos que nossa juventude e nossas universidades estão tomando. Mando bem demais!

Abaixo coluna de que me refiro.

Abs.

A MOÇA, A SAIA, A FACULDADE, Flavio Gomes

SÃO PAULO (é o fim) – Fiz faculdade entre 1982 e 1985. Faculdade de riquinho, FAAP. Não havia sinal de movimento estudantil ali. Na verdade, com o fim da ditadura, a eleição de Tancredo e a perspectiva de diretas em 1989, o movimento estudantil se enfraqueceu e, sendo bem sincero, foi sumindo aos poucos. Minha atividade mais próxima da subversão foi vender sanduíches naturais para arrecadar dinheiro para uma festa das Diretas.

Hoje, as entidades representativas dos estudantes servem para emitir carteirinhas para a turba pagar meia-entrada em shows e no cinema. Sem um inimigo claro, que no caso das gerações imediatamente anteriores à minha era o governo militar, ficamos sem ter do que reclamar. Porque, no fundo, por conta da politização desses movimentos todos, a questão educacional foi colocada de lado por muitos anos, e deixou de ser prioridade.

Já como repórter, cheguei a cobrir algumas confusões na USP na segunda metade dos anos 80. Sem querer simplificar demais, mas recorrendo ao que minha memória me permite lembrar, o tema central era o aumento do preço do bandejão nos refeitórios da universidade. Deu greve e tudo. Muito pouco. Ainda mais porque, como se sabe, boa parte dos que conseguem chegar à USP vêm de escolas particulares, e o preço do bandejão não chegava a afetar seriamente o orçamento de ninguém.

O caso dessa moça de minissaia da Uniban poderia ser um bom motivo para despertar algum tipo de reação na molecada. De repúdio aos que ofenderam a menina, de reflexão sobre os rumos da universidade, de protesto contra sua expulsão, de perplexidade com o recuo da reitoria por razões obviamente mercantis.

Reitoria… Era palavra respeitada, antigamente. Hoje, os reitores dessas espeluncas mal falam português. A transformação do ambiente universitário em quitandas que vendem diplomas é assustadora. E os estudantes são coniventes. Não exigem ensino de qualidade, compromisso com a educação, porra nenhuma. Querem se formar logo, se possível pagando pouco, e dane-se o mundo.

Fico espantado ao observar como pensa e age essa juventude urbana entre 20 e 25 anos. São fascistóides, hedonistas, individualistas, retardados ao cubo. Basta ver o perfil da menina da minissaia no Orkut. Uma completa debilóide, mas nada diferente, tenho certeza, de seus colegas de faculdade (vejam as “comunidades” às quais ela pertence; coisas como “Gosto de causar, e daí?”, “Sou loira sim, quem me aguenta?”, “Para de falar e me beija logo”, coisas do tipo). O que, evidentemente, não dá a ninguém o direito de fazer o que fizeram com ela. Até porque são todos iguais, idênticos, tontos, despreparados, sem noção.

Aí a Uniban expulsa a menina, dizendo que os alunos que a chamavam de “puta” e queriam bater na coitada estavam “defendendo o ambiente escolar”. Puta que pariu! Como é que pode? Como podem adultos, “educadores”, que teoricamente têm um pouco mais de neurônios em funcionamento, reduzirem a questão a isso? E criticarem a menina porque ela se veste assim ou assado, anda rebolando, “se insinua”?

Pior: muitos, mas muitos mesmo, alunos defenderam a expulsão. Acham que a menina é uma vagabunda que provoca os colegas. Bando de animais, intolerantes, sádicos, hostis, agressivos. Eu nunca deixaria um filho meu estudar numa universidade frequentada por esse tipo de gente e dirigida por cretinos do naipe dos que assinaram a expulsão e, depois, revogaram-na sem revelar o motivo — aquele que nunca será admitido, o prejuízo à imagem dessa porcaria de empresa, sim, empresa, e das mais lucrativas, porque chamar um negócio desses de “universidade” é desmoralizar a palavra.

O Brasil está fodido com essas gerações que vêm por aí. Um caso desses, que poderia trazer à tona discussões importantes sobre o comportamento dos jovens, suas angústias, seus rumos, resume-se ao tamanho da saia da moça e ao seu comportamento “inadequado”, seja lá o que for isso. A educação, neste país, tem sido negligenciada de forma criminosa há décadas. O governo poderia começar a limpar a área por essas fábricas de diploma, que surgem aos montes sem que ninguém se preocupe com o tipo de gente que está à frente delas.

O que se vê hoje, graças a essas faculdades privadas de esquina, sem história e princípios, é uma população cada vez maior de “nível superior” sem nível algum. Um desastre completo. Gente que não pensa, não argumenta, não lê, não raciocina coletivamente, se comporta como gado raivoso, passa o dia punhetando no Orkut e no MSN, escreve “aki”, “facu”, “xurras”, “naum”, “huahsuahsua”, um bando de tontos desperdiçando os melhores anos de suas vida com uma existência vazia, um vácuo intelectual, sob o olhar perplexo de gerações, como a minha, que um dia sonharam em fazer um mundo melhor e, definitivamente, não conseguiram.

Somos todos culpados, no fim. Me incluo.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Blogs, twitter, orkut e outros buracos

Blogs, twitter, orkut e outros buracos

Fonte: Arnaldo Jabor

Não estou no "twitter", não sei o que é o "twitter", jamais entrarei neste terreno baldio e, incrivelmente, tenho 26 mil "seguidores" no "twitter". Quem me pôs lá? Quem foi o canalha que usou meu nome? Jamais saberei. Vivemos no poço escuro da web. Ou buscamos a exposição total para ser "celebridade" ou usamos esse anonimato irresponsável com nome dos outros. Tem gente que fala para mim: "Faz um blog, faz um blog!" Logo eu, que já sou um blog vivo, tagarelando na TV, rádio e jornais... Jamais farei um blog, este nome que parece um coaxar de sapo-boi. Quero o passado. Quero o lápis na orelha do quitandeiro, quero o gato do armazém dormindo no saco de batatas, quero o telefone preto, de disco, que não dá linha, em vez dos gemidinhos dos celulares incessantes.

Comunicar o quê? Ninguém tem nada a dizer. Olho as opiniões, as discussões "online" e só vejo besteira, frases de 140 caracteres para nada dizer. Vivemos a grande invasão dos lugares-comuns, dos uivos de medíocres ecoando asnices para ocultar sua solidão deprimente.

O que espanta é a velocidade da luz para a lentidão dos pensamentos, uma movimentação "em rede" para raciocínios lineares. A boa e velha burrice continua intocada, agora disfarçada pelo charme da rapidez. Antigamente, os burros eram humildes; se esgueiravam pelos cantos, ouvindo, amargurados, os inteligentes deitando falação. Agora não; é a revolução dos idiotas online.

Quero sossego, mas querem me expandir, esticar meus braços em tentáculos digitais, meus olhos no "google", ("goggles" - olhos arregalados) em órbitas giratórias, querem que eu seja ubíquo, quando desejo caminhar na condição de pobre bicho bípede; não quero tudo saber, ao contrário, quero esquecer; sinto que estão criando desejos que não tenho, fomes que perdi. Estamos virando aparelhos; os homens andam como robôs, falam como microfones, ouvem como celulares, não sabemos se estamos com tesão ou se criam o tesão em nós. O Brasil está tonto, perdido entre tecnologias novas cercadas de miséria e estupidez por todos os lados. A tecnociência nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas vivas, chips, pílulas para tudo, enquanto a barbárie mais vagabunda corre solta no País, balas perdidas, jaquetas e tênis roubados, com a falsa esquerda sendo pautada pela mais sinistra direita que já tivemos, com o Jucá e o Calheiros botando o Chávez no Mercosul para "talibanizar" de vez a América Latina. Temos de "funcionar" - não viver. Somos carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa. Assistimos a chacinas diárias do tráfico entre chips e "websites".

ESCRITORES FANTASMAS

O leitor perguntará: "Por que este ódio todo, bom Jabor?" Claro que acho a revolução digital a coisa mais importante dos séculos. Mas estou com raiva por causa dos textos apócrifos que continuam enfiando na internet com meu nome.

Já reclamei aqui desses textos, mas tenho de me repetir. Todo dia surge uma nova besteira, com dezenas de e-mails me elogiando pelo que eu "não" fiz. Vou indo pela rua e três senhoras me abordam - "Teu artigo na internet é genial! Principalmente quando você escreve: "As mulheres são tão cheirosinhas; elas fazem biquinho e deitam no teu ombro...""

"Não fui eu...", respondo. Elas não ouvem e continuam: "Modéstia sua! Finalmente alguém diz a verdade sobre as mulheres! Mandei isso para mil amigas! Adoraram aquela parte: "Tenho horror à mulher perfeitinha. Acho ótimo celulite..."" Repito que não é meu, mas elas (em geral barangas) replicam: "Ah... É teu melhor texto..." - e vão embora, rebolando, felizes.

Sei que a internet democratiza, dando acesso a todos para se expressar. Mas a democracia também libera a idiotia. Deviam inventar um "antispam" para bobagens.

Vejam mais o que "eu" escrevi: "As mulheres de hoje lutam para ser magrinhas. Elas têm horror de qualquer carninha saindo da calça de cintura tão baixa que o cós acaba!"... Luto dia e noite contra cacófatos e jamais escreveria "cós acaba!". Mas, para todos os efeitos, fui eu. Na internet eu sou amado como uma besta quadrada, um forte asno... (dirão meus inimigos: "Finalmente, ele se encontrou...")

Vejam as banalidades que me atribuem:

"Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração!"

Ou: "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche!"

Ainda sobre a mulher: "São escravas aparentemente alforriadas numa grande senzala sem grades."

Há um texto bem gay sobre os gaúchos, há mais de um ano. Fui "eu", a mula virtual, quem escreveu tudo isso. E não adianta desmentir.

Esta semana descobri mais. Há um texto rolando (e sendo elogiado) sobre "ninguém ama uma pessoa pelas qualidades que ela tem" ou outro em que louvo a estupidez, chamado "Seja Idiota!"...

Mas o pior são artigos escritos por inimigos covardes para me sujar. Há um texto de extrema direita, boçal, xingando os brasileiros, onde há coisas como: "Brasileiro é babaca. Elege para o cargo mais importante do Estado um sujeito que não tem escolaridade e preparo nem para ser gari. Brasileiro é um povo trabalhador. Mentira. Brasileiro é vagabundo por excelência. Um povo que se conforma em receber uma esmola do governo de 90 reais mensais para não fazer nada, não pode ser adjetivado de outra coisa que não de vagabundo. 90% de quem vive na favela é gente honesta e trabalhadora. Mentira. Muito pai de família sonha que o filho seja aceito como "aviãozinho" do tráfico para ganhar uma grana legal. Se a maioria da favela fosse honesta, já teriam existido condições de se tocar os bandidos de lá para fora... O brasileiro merece! É igual a mulher de malandro - gosta de apanhar..."

E o pior é que muita gente me cumprimenta pela "coragem" de ter escrito esta sordidez.

Ou seja: admiram-me pelo que eu teria de pior; sou amado pelo que não escrevi. Na internet, eu sou machista, gay, idiota, corno e fascista. É bonito isso?

Em tempo: este texto foi escrito pelo próprio Jabor, afinal saiu em sua coluna semanal (desta terça) do Jornal "O Estado de São Paulo"

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Caim - a conclusão

O comum dos dois textos é que ambos são criticas, só que uma ao livro Caim em si, e outra as próprias obras de Saramago. Também acho que Saramago desta vez pega meio pesado. Não sei porque, mas quando lia o pequeno passagem do livro que foi disponibilizada ontem na Folha, lembrei do texto do Contardo sobre a "Razão, a crença e a dúvida". O fanatismo tanto do ateísmo, quanto do crente (e esse crente não é a denominação que se dá ao evangélico e sim naquele que crê, independente de crença) fazem mal nas relações interpessoais. E parafraseando Contardo, transcrevo: "Onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?"  

Caim - parte 3

Ensaio sobre o fanatismo

JOÃO PEREIRA COUTINHO

O ATEÍSMO de Saramago faz lembrar uma história. Um dia perguntaram a Kingsley Amis por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis fez cara de enfado e, razoavelmente sóbrio, explicou: "Não é bem não acreditar em Deus; é mais detestá-lO".

Tal como Amis, Saramago não descrê em Deus; ele simplesmente detesta-O com uma força só comparável à devoção dos verdadeiramente fanáticos. Nos seus livros "heréticos", o Mal não está apenas na religião tradicional e organizada. O Mal está na fonte. Leiam "O Evangelho Segundo Jesus Cristo": Deus é o vilão, não Jesus. Pelo contrário: Jesus só merece a empatia do autor, que descreve o destino daquele homem, condenado a sofrer às mãos do Pai, com verdadeira caridade "cristã".

Deus, como sempre, é o supremo criminoso. A atitude é profundamente religiosa. E Saramago é, ironia, a criatura mais religiosa da literatura contemporânea. Não somos religiosos apenas porque amamos Deus. Somos religiosos até quando O detestamos: o nosso ódio, como Graham Greene mostrou no magistral "Fim de Caso", é também uma forma de afirmação. De afirmação pela negação. "Eu sou o espírito que nega!", exclama Mefistófeles ao dr. Fausto.

Saramago também. É por isso que Saramago e os fanáticos religiosos que ele tanto critica falam a mesma linguagem. Ainda que habitem pontos opostos do diálogo. Essa atitude está novamente presente no último romance, "Caim". Em termos literários, a narrativa é pobre e, sobretudo nas descrições sexuais, vulgar e risível. Razão tinha o escritor português Francisco José Viegas quando dizia há tempos que os lusos trepavam mal na literatura.

"Caim" revisita a história bíblica do irmão que mata o irmão. Por inveja? Por maldade? Saramago tem uma opinião diferente: porque Deus é caprichoso e, aceitando as ofertas de Abel, recusa as de Caim.

O Deus de Saramago é assim: uma caricatura das divindades pagãs. É um Deus colérico, mesquinho, traiçoeiro, cruel. E, em matéria de onipotência e onisciência, uma verdadeira anedota: ele não pode tudo, ele não sabe tudo. Ele é deus, sim, mas com minúscula. Ou, nas palavras do autor, um "filho da puta".

Esse rol de vícios é desfiado em "Caim" com uma infantilidade raramente vista na literatura. Depois de matar Abel por culpa exclusiva do divino, o inocente Caim vai viajando pelo Antigo Testamento como testemunha dos crimes de Deus.

Os episódios são escolhidos com precisão cirúrgica: temos o sacrifício de Isaac por Abraão, evitado "in extremis" por Caim, prova definitiva de que Caim é bom e Deus é mau. Tão mau que, por ciúmes, destrói a Torre de Babel; permite a crueldade infanticida em Sodoma e Gomorra; tortura Job; e submerge o mundo no episódio da arca de Noé, momento final que permitirá a Caim exterminar as criaturas e confrontar-se diretamente com o Criador.

Para Saramago, Caim é uma espécie de bolchevique "avant la lettre", um terrorista disposto a combater e a sabotar um sistema absurdo e demencial. Uma visão dessas só é possível na cabeça maniqueísta de um fanático.

Mas Saramago não assume apenas as vestes do fanatismo ateu. Ele partilha com os fanáticos religiosos o mesmo tipo de interpretação literalista dos textos sacros, incapaz de ver neles qualquer dimensão alegórica, metafórica ou evolutiva. Disse "evolutiva"? Reafirmo. O Antigo Testamento só será compreensível se o lermos como um todo. Porque só a leitura do todo permite cartografar a evolução da própria ideia de Deus: um longo processo de composição milenar que, sobretudo com as contribuições dos grandes profetas entre os séculos 6 e 8 a.C., oferece uma visão do divino que é o oposto da visão iletrada, maniqueísta e literalista de Saramago. Uma visão que seria complementada pelo Novo Testamento.

E Caim? Um mero executor de um crime autorizado e até precipitado por Deus? Não vale a pena tentar explicar que é impossível discutir Caim sem discutir primeiro o arcano problema do Mal. Mas é possível dizer que o problema do Mal é indissociável da liberdade constitutiva dos homens.

Para Saramago, o livre-arbítrio não existe. O que existe é a velha visão determinista que apresenta os homens como meros joguetes das forças inexoráveis da história. E, como joguetes, obviamente absolvidos de qualquer ato ou crime.

Enganam-se aqueles que afirmam que a ideologia política de Saramago deve ser separada da sua criação literária. Em Saramago, ideologia e literatura cumprem o mesmo papel. Doutrinar.

jpcoutinho@folha.com.br

Caim - parte 2

Apesar de trechos quase engraçados, obra é fraca e óbvia na birra com deus

LUIZ FELIPE PONDÉ

COLUNISTA DA FOLHA

Existem escritores que beiram a unanimidade. Chegam a ser vistos como "um bem da humanidade". Saramago é um desses. Alguns de seus títulos são mesmo pérolas. Viajei por Portugal lendo seu livro "Viagem a Portugal" e foi uma experiência fascinante.

Infelizmente, seu mais recente romance, "Caim", não faz jus a sua história. Mais do que isso, "Caim" aponta para alguns limites de sua interpretação de mundo, e isso é importante na obra de um escritor do porte de José Saramago.

Sua fórmula para discutir a herança bíblica está esgotada e é hoje conhecida por qualquer criança no jardim da infância: o ressentimento contra Deus porque existe sofrimento no mundo. Trata-se de um caso derivado do ressentimento do qual fala Nietzsche: você não suporta o sofrimento, então culpa algo, o deus de Saramago (escrevo aqui com minúscula, como ele escreve no livro), pelo sofrimento e sonha com um mundo sem dor (o mundo dos homens bonzinhos de Rousseau e seus derivados). Saramago torna explícito o fato que a crítica a Deus pode ser ela mesma uma forma de covardia diante da dureza da vida.

Saramago parece não ter percebido ainda que não é o "fator Deus" que leva os homens a serem a besta fera que são, mas sim o "fator Homem" que gera a bestialidade histórica de que ele tanto reclama. Como todo ateu (será mesmo?), não consegue deixar Deus em paz.

Em poucas palavras, afora a escrita, como sempre em cascata, e trechos quase engraçados, o livro é fraco e óbvio na sua birra. A raiva e o ressentimento para com deus nos fazem pensar que estaríamos diante de um palavrório adolescente. Como em todo ressentimento, falta humildade.

Carência afetiva

Caim, famoso por matar Abel, os dois filhos de Adão e Eva, é seu herói, revoltado contra deus e sua descarada preferência pelo irmão. Depois de apresentar Abel como um irmão que humilha seu irmão mal-amado (o que não bate com a tradição bíblica), Caim porá o dedo na cara de deus e cobrará dele o que eu chamaria de "afetividade democrática": deus deveria amar a todos igualmente. O pobre Caim não consegue lidar com sua carência afetiva. Esse tipo de demanda dá sono.

Daí, Saramago se põe a reler vários eventos da Bíblia hebraica (ou Velho Testamento), tais como a torre de Babel, o dilúvio, o quase sacrifício do filho de Abraão, Isaac, entre outros, sempre a partir do ressentimento contra um deus que não ama a todos devidamente, assim como o irmão Chavez ama devidamente a todas as suas criaturas. Mesmo Lilith, figura máxima do feminismo bíblico ressentido, aparece como grande parceira de Caim nesta aventura que fala de como deus não é legal.

Saramago parece não perceber que grande parte do relato inicial da Bíblia fala da condição humana para além do que gostaríamos que ela fosse: somos frágeis, mortais, insuficientes, e por isso nos revoltamos. O sentido da vida é opaco para nossa inteligência.

A solução de Saramago parece ser supor que se "matarmos deus", nós deixaremos de ser frágeis, mortais, covardes, cruéis e entenderemos o sentido final da vida, e ela ficará então satisfatória. Talvez se ele não tivesse sido contaminado pelo blá-blá-blá marxista sobre a religião, perceberia que existe toda uma literatura de peso que discute isso.

Caro leitor, para entender a relação entre Caim e Abel (cujos sacrifícios eram bem recebidos por Deus), não precisa de muita retórica, e aí você verá como Saramago, e outros que insistem no ressentimento infantil quando discutem a tradição bíblica, perdem o foco da coisa.

Basta lembrar o seguinte: você já topou na vida com alguém que seja melhor do que você? Mais bonito, mais inteligente, mais forte, mais rico, mais sensível, mais generoso, mais amado pelos outros, enfim, melhor do que você? Alguém já o fez sentir sua própria mesquinhez, pobreza de espírito, estupidez, covardia, enfim, você já sentiu o negrume da inveja sufocar sua alma? Você já teve "vontade de matar" algum Abel na vida? Respire fundo e veja se você não vê a marca de Caim (a inveja) na sua testa.

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Avaliação: ruim

Caim - parte 1

Abaixo um pequeno fragmento do polemico livro de Saramago, Caim. Nos dois próximos post, estarei colocando a opinião de dois colunistas da Folha de São Paulo, no qual eu sou leitor de ambos. O primeiro é a critica que saiu um dia antes do lançamento oficial do livro, dia 18 de outubro, escrita pelo colunista Luis Felipe Pondé. A outra é uma coluna de hoje da Folha de São Paulo, do conterrâneo de Saramago, o escritor João Pereira Coutinho.

"Feliz vai também caim, já a sonhar com um almoço no campo, entre verduras, fugidios carreirinhos de água e passarinhos a sinfonizar nas ramagens. À mão direita do caminho, além, vê-se uma fila de árvores de bom porte que promete a melhor das sombras e das sestas. Para lá tocou caim o jumento. O sítio parecia ter sido inventado de propósito para refrigério de viajantes fatigados e respectivas bestas de carga. Paralela às árvores havia uma fileira de arbustos tapando o carreiro estreito que subia em direcção ao teso da colina. Aliviado do peso dos alforges, o jumento tinha-se entregado às delícias da erva fresca e de alguma rústica flor tresmalhada, sabores estes que jamais lhe tinham passado pela goela. Caim escolheu tranquilamente a ementa e ali mesmo comeu, sentado no chão, rodeado de inocentes pássaros que debicavam as migalhas, enquanto as recordações dos bons momentos vividos nos braços de lilith voltavam a aquecer-lhe o sangue. Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício. E continuaram a subir a encosta. Ora, enquanto sobem e não sobem, convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar.

Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que signifi ca que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.

Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.

O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim. O anjo resmungou, Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, Eis o que mandou dizer o senhor, Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-de dar-te uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou como as areias da praia e eles hão-de tomar posse das cidades dos seus inimigos, e mais, através dos teus descendentes se hão-de sentir abençoados todos os povos do mundo, porque tu obedeceste à minha ordem, palavra do senhor. Estas, para quem não o saiba ou finja ignorá-lo, são as contabilidades duplas do senhor, disse caim, onde uma ganhou, a outra não perdeu, fora isso não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida, A isso chamamos nós no céu obediência devida, disse o anjo.

Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se embora, abraão e o filho também já lá vão a caminho do lugar onde os esperam os criados, e agora, enquanto caim ajeita os alforges no lombo do jumento, imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis. Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou".