quinta-feira, 30 de abril de 2009

A universidade e o conhecimento

A universidade e o conhecimento

Fonte: Mauro Santayana, Gazeta Mercantil, 30 abr. 2009

“O afunilamento do ensino universitário pode produzir eruditos,

mas não contribui para a disseminação da sabedoria”

Na entrevista que concedeu ao jornalista David Leonhart, do "New York Times", o presidente Barack Obama tocou em tema delicado na civilização atual: para que mesmo servem as universidades? Obama defende uma educação de qualidade, do jardim de infância ao fim do curso médio, que prepare as pessoas para a vida comunitária e o trabalho. As universidades devem ser centros de reflexão e de alta pesquisa. Ele deu o exemplo de seus avós maternos, que não fizeram a universidade, tiveram êxito em sua vida profissional e foram felizes. A avó, lembrou o presidente, escrevia melhor do que muitos de seus colegas na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, e, com um bom curso secundário, chegou a diretora de banco.

A graduação universitária, por si só, não garante o êxito profissional. O presidente lembrou que o desemprego entre os de formação universitária, em seu país, é três vezes superior aos que só têm o equivalente ao nosso segundo grau. Entre nós, os que não conseguem ocupação equivalente à sua formação, são bem mais numerosos. Encontramos todos os dias egressos de universidades, em geral privadas, dirigindo táxis, jornalistas diplomados vendendo planos de saúde, bacharéis sem o exame da OAB, vivendo de pequenos expedientes. Segundo o presidente, o mundo necessita de pessoas que sejam capazes de produzir durante a sua vida adulta, e que, para isso, bastam de 14 a 20 anos de boa escolaridade.

O ponto de vista de Obama é divulgado três dias depois que o mesmo jornal publicou instigante artigo do professor Mark C. Taylor, professor da Universidade de Columbia. Ele lamenta que as universidades estejam formando especialistas em coisas diminutas, pessoas que sabem o máximo sobre o mínimo. Conta que o melhor aluno de um de seus colegas fizera dissertação de mestrado sobre o método usado pelo filósofo medieval Duns Scotus a fim de escolher suas citações. Podemos acrescentar ao raciocínio de Taylor que se a dissertação fosse sobre o pensamento do grande franciscano, que combinava a visão realista do mundo à intransigente defesa da virgindade de Maria, já seria reduzir muito o campo de estudo. Ele poderia situar Scotus na razão escolástica do fim do século 13 – e ofereceria boa contribuição para o exame da história da filosofia cristã.

O afunilamento do ensino universitário pode produzir eruditos, mas não contribui para a disseminação do conhecimento e da sabedoria. Tenho repetido, algumas vezes, dois versos de "Rocket", poema de T.S.Elliot, que me impressionaram pela sua lucidez, e Julien Green recomendou a todas as universidades do mundo inscrevê-los no frontispício de seus edifícios: "Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?"

Elliot escreveu esses versos em 1934, quando o volume de informações que circulavam no mundo era infinitamente menor do que hoje. O ensino terá que buscar a sabedoria que o conhecimento oculta, e o conhecimento que a informação ofusca. Isso só se obtém com o hábito de pensar, com a capacidade crítica, ao comparar as fontes de conhecimento e, mediante a dialética, encontrar o juízo próprio sobre as coisas.

Segundo Taylor o professor geralmente prepara o aluno para seguir seus passos na vida acadêmica, dele fazendo seu clone intelectual. Trata-se de uma repetição do mesmo, em que o conhecimento produzido é uma volta ao já feito, sem a intervenção do pensamento inovador. Trabalhos acadêmicos em ciências sociais, que custam dezenas de milhares de dólares, são reproduzidos em edições de 500 ou 600 exemplares, e aproveitados por um número bem menor de leitores - salvo quando alguns professores rompem o círculo de giz e publicam seus estudos em editoras privadas.

No passado, o ensino primário, no Brasil, era suficiente para que se aprendesse a ler e a escrever. Com isso, ao ingressar no antigo ginasial, os alunos estavam preparados para apreender o resto. O ministro Fernando Haddad tem identificado nas falhas do ensino de primeiro grau as dificuldades da educação como um todo. Daí a necessidade de, mediante seleção vestibular mais rigorosa, salvar o ensino superior. Sua proposta de vestibular unificado é um bom começo, porque obrigará as escolas secundárias a melhorar seu desempenho, mas é preciso mais. É preciso enterrar as cruzinhas.

Sem massa intelectual poderosa, que só as boas universidades podem produzir, perderemos o nosso lugar no mundo e no século.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Transitoriedade dos suportes de informação

Meses atrás, saiu uma entrevista do Umberto Eco (uma das primeiras postagens deste blog) no qual entre vários assuntos ele borda os suportes de informação. Na edição de ontem do Diário do Comercio, que reafirmo um jornal muito bom de se ler, ele retorna a este assunto. E cá entre nos, ele esta coberto de razão......temas como a substituição da imprensa escrita pela digital escuto desde antes de começar a faculdade de Biblioteconomia à longínquos 7 anos atrás! Hahaha

Bom, só me resta a desejar uma boa leitura!

Transitoriedade dos suportes de informação

Todos os suportes para transmissão da informação são mais transitórios que o livro.

Umberto Eco, Diario do Comercio, 26 abr. 2009

Na jornada conclusiva da Escola para Livreiros, dedicada a Umberto e Elisabetta Mauri, em Veneza, falamos, entre outras coisas, da transitoriedade dos suportes da informação. Foram suportes de informação escrita a estela egípcia, a tabuleta de argila, o papiro, o pergaminho e, obviamente, o livro impresso. Este demonstrou que sobrevive bem por cerca de quinhentos anos, mas só se for feito com papel de trapo.

A partir de meados do século 19 passou-se ao papel feito da madeira e este parece ter uma vida máxima de 70 anos (de fato, basta consultar jornais ou livros dos anos 40 para ver como muitos deles se desfazem enquanto são folheados). Portanto, há tempos se realizam congressos e se estudam meios diferentes para salvar os livros que abarrotam nossas bibliotecas. Um dos meios de maior sucesso (mas é quase impossível utilizá-lo para todos os livros existentes) é escanear as páginas e copiá-las em um suporte eletrônico.

Aqui nos é apresentado outro problema: todos os suportes para a transmissão e conservação da informação – desde a foto até a película cinematográfica, do disquete à memória USB que usamos em nosso computador – são mais transitórios do que nossos livros.

No caso das velhas fitas cassetes, por exemplo, em pouco tempo a fita se enroscava; tentávamos desenrolá-la metendo um lápis no buraco, geralmente com resultados nulos.

As fitas também perdem as cores e a definição com facilidade e, se as usamos para estudar, rebobinando-as e adiantando-as com frequência, deterioram-se rapidamente.

Pois bem, tivemos tempo para nos dar conta do quanto podia durar um disco de vinil sem ficar arranhado demais, mas não tivemos tempo de verificar o quanto dura um CD-ROM – pois, mesmo sendo a invenção que substituiria o livro, saiu rapidamente de mercado porque se podia acessar on-line os mesmos conteúdos a um preço mais conveniente.

Não sabemos quanto vai durar um filme em DVD; só sabemos que às vezes começa a dar problemas quando o vemos muito. E da mesma forma, não tivemos tempo material para experimentar o quanto poderiam durar os discos flexíveis (os floppy disks) de computador: antes de conseguirmos, eles foram substituídos pelos disquetes e estes por discos reescrevíveis e estes pelos pen drives.

Com o desaparecimento dos diferentes suportes, desapareceram também os computadores capazes de lê-los (creio que ninguém tem em casa um computador com abertura para o floppy). E , se não for copiado para o suporte sucessivo tudo o que o anterior continha ( e assim por diante, supostamente durante toda a vida, a cada dois ou três anos), perde-se irremediavelmente – a menos que se mantenha no armário uma dezena de computadores obsoletos, um para cada suporte desaparecido.

Assim, sabemos que todos os suportes mecânicos, elétricos e eletrônicos são rapidamente perecíveis – ou não sabemos o quanto duram e provavelmente nunca chegaremos a saber. Enfim, basta um aumento na tensão, um raio no jardim ou qualquer outro evento muito mais banal para desmagnetizar uma memória.

Se houvesse um apagão grande o bastante, não poderíamos usar nenhuma memória eletrônica. Mesmo tendo gravado em minha memória eletrônica todo o "Quixote", não poderia lê-lo à luz de vela, em uma rede, em um barco, em uma banheira, no balanço, enquanto o livro me permite lê-lo nas condições mais árduas. E se o computador ou o e-book caem do quinto andar, estarei matematicamente seguro de que perdi tudo. No entanto, se é um livro que cai, vai no máximo soltar as folhas completamente.

Os suportes modernos parecem apontar mais para a difusão da informação do que para sua conservação. O livro, por sua vez, foi o instrumento supremo da difusão (pensemos no papel que a Bíblia impressa desempenhou na reforma protestante), mas também da conservação.

É possível que, dentro de alguns séculos, a única forma de obter notícias sobre o passado (com a desmagnetização de todos os suportes eletrônicos) continue sendo um belo incunábulo. E, entre os livros modernos, sobreviverão muitos feitos com papel de alta qualidade, ou os propostos hoje por muitos editores, feitos com papel sem ácidos.

Não sou um reacionário nostálgico do passado. Em um disco rígido portátil de 250 gigas, foram gravadas as maiores obras-primas da literatura universal, da história e da filosofia. É muito mais cômodo tirar do disco rígido em poucos segundos uma citação de Dante ou da "Summa Theologica" do que se levantar e ir pegar um volume pesado em estantes altas demais. Mas estou contente de que esses livros continuem em minhas estantes, uma garantia da memória para quando os fios entrarem em curto nos instrumentos eletrônicos.

Umberto Eco é escritor, autor de A Misteriosa chama da Rainha Loana, Baudolino, O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault.

Tradução: Rodrigo Garcia

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Pele de Lobo

Maravilhosa matéria com a ANGELI (esse monstro da ilustração) que saiu na Revista Serafina de abril, recomendo a leitura não só da matéria, mas principalmente a analise que ele faz de seus personagens.

por HELOÍSA HELVÉCIA, Revista Serafina, Folha de São Paulo, abr. 2009

Angeli sossegou na vida privada, mas nem por isso o cartunista mais conhecido do país abre mão de provocar com seu trabalho ardido e de contribuir como mau exemplo para esse "mundo limpinho"

Até que enfim Angeli chegou. Atrasou-se para a sessão de fotos, dormiu só três horas na noite anterior. Chegou atrás dos infalíveis óculos escuros, mas não mascarado.

"Aqui a gente ainda pode fumar, não?", disse, ácido, antes da primeira pose, transferindo o malrborão do bolso do jeans para a guarda de Carol, sua terceira mulher e também a empresária, a assessora, o office-boy, a secretária, "a que toma-conta-de-tudo" relacionado à vida e à obra do chargista mais popular do país.

O mais popular e o melhor, segundo as últimas 12 edições do HQ Mix, principal honraria das artes gráficas brasileiras. Todo ano, Angeli sai da premiação com um troféu na mão e um tormento na cabeça: "Volto pensando que preciso avançar na linguagem, depurar o desenho, mudar a fórmula. Não posso cair no normal. Aí viro o pior".

O cara que, sem nenhuma piedade, fez barba, bigode e topete nos últimos presidentes brasileiros anda evitando caricaturas. Hoje, acha "meio banana" desenhar político.

Principalmente depois de saber que José Sarney coleciona ilustrações de si mesmo. E de ouvir do senador: "Você é o melhor". Diz que se sentiu ofendido. "Busco o humor que político nenhum possa capitalizar. Aquilo foi uma derrota para mim. Mas valeu, me fez pensar mais."

Pensar mais resume a filosofia de trabalho segundo a qual "o que sai rápido e sem esforço não é bom". Ano após ano, Angeli vem refinando o comentário visual que publica na página A2 da Folha desde 1973.

Cansou de rabiscar homenzinhos com balõezinhos, acha isso "ridículo" ou, na melhor hipótese, um embrião sobre o qual será preciso suar até que desapareçam pessoinhas e falas. "É sofrido, mas é gostoso."

Mais sofrido ainda quando chega a hora de despachar para o jornal o recheio do seu quadrado e o virginiano meticuloso, 20 cigarros fumados e dez unhas roídas, ainda não está feliz com a expressão da ideia. Fica de manhã até a noite limpando a charge -se é que dá para usar esse verbo no caso de um desenhista que jamais economizou em cuspe, vômito, sangue, lama e pústulas, as dos bares e as dos parlamentares.

Não é só a podridão alheia que ele espia, como sabem os leitores da Chiclete com Banana, a tira diária que criou para a Ilustrada. Os quadrinhos, habitados por fauna rica, mas praticamente extinta, deram origem, em 1983, à revista de humor que virou referência e influenciou uma nova geração de cartunistas.

A tira foi e continua sendo seu divã público. Quando passou a ser reconhecido e incensado, criou o Walter Ego. Que só perdeu em narcisismo para um Fernando Henrique que Angeli viu e mostrou nas centenas de charges da era FHC. "É fácil ficar com o ego nas alturas. É fina a linha que divide o prazer da visibilidade da babaquice. O Walter só existiu para resolver meu problema de ego. Temi virar babaca. Mas tive alta." A arte de Angeli incluiu a arte de zoar a si mesmo.

NÃO SOU PALHAÇO

Na sessão de fotos, reivindicou não ser feito de Didi Mocó, ou seja, não ser tratado como palhaço, à la Renato Aragão. Depois, já relaxado no estúdio-casa do edifício Bretagne, no bairro paulistano de Higienópolis, o humorista disse odiar que lhe peçam sorrisos: "O humor que faço é negro, sou carracuncudo, não sou de muita festa. Às vezes, confundem meu trabalho com o de comediante. Nem por isso me visto de palhaço."

Na mira da câmera, descontraiu-se mais quando lhe pediram pose com cigarro. Registrada a baforada, debochou da lenda: "Legal. Agora quer fazer uma com cocaína?".

O selo de "muito louco" já deu o que tinha que dar. Foi mesmo, quem não sabe? "Eu me recusei a tirar o pé da jaca por muito tempo." Até hoje, é abordado por desconhecidos que chegam íntimos e intimando: "Cara, você é o maior locão".

Não é porque colocou no mundo tipos insanos que Angeli "arrasta a língua no chão", como leu outro dia ao seu respeito, num blog.

Óbvio, a matéria-prima dos seus quadrinhos veio de coisas bem experimentadas. Mas não custa repisar que não foi na mesa de bar, e sim na prancheta, na pressão dos prazos de entrega e na esgrima com ideias nem sempre incríveis que ele garantiu o sucesso do seu pessoal: a pé na jaca Bordosa, o fetichista Ed Campana, o punk Bob Cuspe, os sacanas Skrotinhos, o festivo Meiaoito e os outros menos lembrados.

Todos mortos. Se bem que a velha "junkie", sacrificada em 1987, foi vista por aí, andando e falando no YouTube, em festivais de cinema. É a estrela do premiado curta de Cesar Cabral, o "Dossiê Bordosa".

"Foi por meio da que parei de me drogar. Com ela percebi o quanto era inútil passar noites e noites cheirando, fumando e transando com as pessoas erradas", diz Angeli.

Mesmo depois de seu criador virar a página, essa turma dos anos 80 insiste. Os bichos-grilos Wood e Stock estão em "Sexo, Orégano e Rock'n'Roll", primeiro longa de animação com personagens nacionais que, para Angeli, "não chegou lá".

Tem criações que só funcionam no papel, defende. Vamos ver, então, o que será da Mara Tara, aquela de espartilho, meia-arrastão e chicote na mão que vai para o cinema com Christiane Tricerri. A atriz finaliza um roteiro com a ninfomaníaca.

"Fiquei cansado desses personagens. Por um tempo me aprisionei nesse caminho. Não sabia para onde ir com eles, mas não sabia como abrir mão. Arrastei um pouco."

Até o desapego. Diz que desapego é traço seu. Não possui nada, nem carro. Só agora está comprando um imóvel, para separar casa de estúdio. "Tive oportunidades antes, mas preferi investir em cocaína."

O cartunista vem fazendo experimentações tanto na página A2 quanto nos quadrinhos. "Gosto do resultado na charge, mas na tira ainda estou tateando. Curto algumas coisas, outras estão verdes."

Sua série recente da mulher descabeçada seria uma das verdes. Nem perdeu tempo em falar a respeito. "Ah, vou acabar logo com isso, não estou gostando. Mas é desejo de abordar a atitude do homem medieval, que maltrata mulher".

No papel, ele também maltrata. Prepara mais um livro baseado na sua coluna "Let's Talk about Sex", do UOL. No primeiro, "Sexo É uma Coisa Suja" (Devir, 2003), não faltam fêmeas mutiladas, siliconadas e comidas _em cenas de canibalismo mesmo. "Estou avançando no desenho erótico. Esse trabalho me dá prazer, gosto de ser maldoso."

Quando ainda era o Arnaldo, filho de outro Arnaldo, o funileiro, fazia maldades na escola. Natural: era o maior da turma, repetiu várias vezes. "Eu já tinha barbinha, estudava com os pequenos, então só me restava ficar oprimindo a molecada". Cabulava aula nos campos de várzea da Casa Verde, para brincar de guerra e imitar o astro do telerringue Ted Boy Marino. Garoto da periferia, também teve a sua fase de mexer com mulher em porta de padaria.

Parou de estudar na primeira série ginasial, depois de um colega lhe apresentar "O Pasquim", em 1969. "Foi minha tábua de salvação. Já estava mal na escola, mal com a família. Virei cartunista ali."

Fugido da escola para nunca mais voltar, Angeli viveu e aprendeu do jeito que deu. "Eu me reciclo aos trancos e solavancos. Sou autodidata." Nunca fez curso de desenho, nunca fez curso de nada. Ele lembra de dois títulos que marcaram sua adolescência: "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse, e "As Portas das Percepção", de Aldous Huxley. "Ali me tornei curioso."

Ampliou essa prateleira hippie ainda no início dos 70, quando alugou uma casa no Brooklin junto com amigos da Casa Verde "que tinham pretensões artísticas e intelectuais". Era um centro de artistas frequentado por gente que, informalmente, apontava o que era importante ler, ver, ouvir etc. "Recebíamos visitas que colaboraram muito com nossa formação 'intelectual' e sexual."

O grupo voltou para a Casa Verde quando a polícia passou a vigiar o "aparelho" cultural. "Mas voltamos diferentes. Com outra bagagem."

PIRANDELLO NO BANHEIRO

As deficiências em gramática, o cartunista enfrentou com a ajuda da segunda mulher e mãe de seus filhos, Márcia, que é diretora de TV. "Sempre tive agilidade para ordenar um texto, mas desfalecia a cada encontro com as regras."

Queria ler mais. Se antes traçava jornais de cabo a rabo, agora vai direto "ao que interessa". Os livros, que devorava "de uma tacada", hoje são consumidos em outro ritmo. "Pirandello fica no banheiro, para leitura matinal; `O Jogador', de Dostoiévski, vive em cima da prancheta, e vou lendo aos nacos."

"Os Reis do Iê-Ie-Iê", dos Beatles, foi um marco cinematográfico nessa longa e conhecida trajetória -que "atravessou o delírio hippie, raspou na militância e berrou no punk rock", como bem sintetizou Angeli. "Com os Beatles, dei uma entortada. Comecei a pensar em como eu queria ser, na roupa que eu queria vestir."

Hoje, Angeli se preocupa em continuar sendo o que é sem parecer "um Elvis Presley velho". Já foi menos discreto no vestir. "A idade em que estou é um perigo. Não quero estagnar, mas também não posso me vestir como um senhor de 53 anos. Nunca usei terno. Assumir minha idade com as influências que carrego é como fazer um doce sem deixar desandar. A roupa é importante para mostrar o que penso."

Ele nem se considera mais roqueiro. Um de seus dois filhos, o produtor musical Pedro, 28 (a outra é Sofia, de 22), mostrou a ele bandas novas, sons eletrônicos. Adora Franz Ferdinand e Arctic Monkeys. Mas ainda escuta muito Bob Dylan e também guarânia, calipso _o ritmo, não a banda, bem entendido.

O frescor vem dos filhos e vem também de Carol, 32, designer gráfica e arquiteta de formação, com quem está há mais de uma década. "Conheci Carol quando ainda estava sujo da poeira da noite, cheirava a banheiro de bar. Ela veio limpinha, novinha, fresquinha. "

Os dois se cruzaram no lançamento de um dos livros dele. A moça, na época com 17 anos, virou no ato a arte-finalista de Angeli. Carol diz que era fã do Bob Cuspe desde pequena. "Mas nunca fui aquele tipo fanática ardorosa, que conhece tudo do autor e tem a maior fixação."

A legião de "ardorosas com fixação" já deu mais trabalho para Angeli. Quando o chargista circulava pela noite, elas descobriam o telefone, rondavam o estúdio, faziam campana. "Eu alimentava. De um tempo pra cá passei a dar menos importância para isso". Outro dia, uma tiete comentou na internet ter visto o Angeli e atestou que ele "ainda" é boa pinta. O povo que diz.

A droga mais pesada que Angeli usa é o trabalho. Quando está de folga, diverte-se desenhando. Dos maus hábitos, ficaram os de roer unha, fumar e dormir pouco.

Sente dores na coluna. Tem bico de papagaio. "O médico diz que tenho que fazer exercício. Mas tenho preguiça." Está há um mês com um dedo dolorido, não consegue dobrar. Ainda não marcou consulta.

A médica indicou férias para ele largar o cigarro, associado ao processo criativo. "Quando breco numa ideia, acendo um e vou em frente."

Mas seu projeto é no máximo fumar menos, sem pretensões de pureza. "O mundo está ficando muito limpinho, mas ainda faço parte dele, então participo como mau exemplo. Quero que me usem como baliza."

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Linguiça sem trema

CARLOS HEITOR CONY, Ilustrada, hoje na Folha

 “Se todos fossem pessimistas, o mundo não teria sido, nem teríamos as artes, o picolé ou o termômetro de peru de Natal”

Afirmam os entendidos que não devemos ser pessimistas. O pessimista -segundo o lugar-comum- começa perdendo, é derrotado antes mesmo de lutar. Leva para a faina de cada dia a carga de sua própria danação. Nada vai dar certo, nada vale a pena, nem mesmo se a alma não é pequena. O mundo, a civilização, as artes, o picolé, o canivete suíço, as calças jeans e as canetas esferográficas foram feitas por homens otimistas, que acreditavam em si mesmos e acreditavam nos outros homens. Se todos fossem pessimistas, o mundo não teria sido, nem teríamos aquele termômetro que se bota no peito do peru de Natal para que apite na hora em que estiver pronto.

O otimista não chega a ser, exatamente, o oposto do pessimista. É o homem que acredita em alguma coisa e nesse acreditar joga as suas forças, seus escudos e armas, sua solércia. A eles, as batatas machadianas.

Entre os dois, entre pessimistas e otimistas, ficam os realistas, que são uma variante dos homens de boa vontade, nem tanto lá nem tanto cá, nem tanto ao mar nem tanto à terra, antes pelo contrário, tudo tem dois lados, vamos ver como é que fica, é possível que tudo seja melhor, não adianta dar murro em ponta de faca nem chorar pelo leite derramado.

Deve haver, na certa, outras posições do homem diante da vida e de seus abrolhos. Mas as três -pessimismo, otimismo e realismo resumem o grosso da boiada- e bota boiada nisso. Até bem pouco tempo, minha posição pessoal era mais ou menos idêntica a de todo mundo: escolhi um lado (o pessimismo) e nele fiquei ao longo dos anos -que já não são poucos, mas bastantes.

Ultimamente, baguncei meu coreto e pendi para o realismo -no que mantive uma única atitude firme: a de nunca ser otimista. Para mim, já o disse variegadas vezes, o otimismo é falta de informação.

Mas nada como os dias que se sucedem, "unus post alium", e agora me refocilei numa posição mais cômoda e veraz. Sou como aquele relógio do português da anedota.

Deu-se que um português foi tapeado por um gringo que lhe vendeu um relógio, daqueles que antigamente se dizia "da marca barbante". Ou "pateque cebola". O gringo garantiu-lhe que o relógio era de ouro. Um amigo do galego examinou a preciosidade e disse que não era de ouro coisíssima nenhuma. Chegando em casa, a mulher quis saber se o relógio era ou não era de ouro. Ao que o português respondeu sabiamente, encerrando a questão: "Às vezes é de ouro, às vezes, não é".

Taí a sapiência. Às vezes sou realista, outras, pessimista. É possível até que, em raríssimos casos, chegue a ser discreta (e envergonhadamente) um otimista, como, por exemplo, no caso de o Brasil ser finalista na próxima Copa do Mundo. Ou na possibilidade de os pósteros, em indesculpável demência, reconhecerem os méritos de nossa conturbada era nacional.

No atacado, porém, no grosso do grosso, continuo pessimista e aos poucos descobri que o realismo, tirados os nove fora, é a forma lúcida de ser pessimista. A cada escândalo público que estoura por aí, a cada esqueleto que se tira do armário, sei antecipadamente que tudo dará em água de barrela -não sei qual seja esse tipo de água, mas a expressão é encontradiça em autores mais sérios do que eu. ("Encontradiça", para os poetas, tem até a vantagem de rimar com linguiça, agora sem trema, graças ao meu bom amigo Evanildo Bechara).

Só para dar um exemplo: do jeito que as coisas estão se arrumando no tabuleiro, não teremos nem sucessão presidencial nem terceiro mandato. Pura e simplesmente, esgotado o tempo regulamentar, teremos uma prorrogação do mandato, negociado pelos interessados de praxe e circunstância. Mudar a Constituição mais uma vez dá muito trabalho e custa muito dinheiro. Tirante os gatos pingados mais radicais da oposição, a classe política, o poder econômico, mais da metade do eleitorado e até Barack Obama parecem estar satisfeitos com Lula.

Não sei se estou sendo realista ou pessimista nesta previsão meio (ou totalmente) alucinada. O fato é que os fatos estão aí. E entre mortos e feridos, vamos perdendo a esperança que dá ao homem o dom de suportar o mundo e, até certo ponto, a necessidade de suportar-se a si mesmo.

Aos que estão por vir

Fernando Gabeira, em sua coluna de hoje na Folha de São Paulo

"Na crista da crise mundial, sopram ventos de mudanças. No norte, banqueiros e executivos tornam-se vilões. Aqui, políticos sofrem um bombardeio.

Pelos seus traços fortes, caricaturais, os Parlamentos são alvo predileto. É perigoso concentrar só neles.

Às vezes, acho que o governo escapa, sobretudo porque é um grande anunciante. Mas, pensando melhor, não é esse o ponto.

O caso dos cartões corporativos ganhou grande espaço. Tanto ele como o escândalo das passagens são de fácil entendimento.

Licitações, editais, relações com ONGs são temas ásperos, que não se reduzem a falas de 30 segundos nem se traduzem na linguagem visual.

O que dizer da transparência no Judiciário, no Ministério Público? Não há demanda para saber como se comportam juízes e procuradores nem como é gasto o dinheiro com eles.

Não são eleitos pelo voto popular. Independem dessa confiança básica, renovável. Com suas limitações, o processo que o avanço social e técnico deflagrou é a semente dos novos tempos.

Na internet e entre os leitores, a sensação é a de que todos os políticos são iguais e deveriam desaparecer. É um equívoco.

Depois de uma explosão nuclear, nem todos desaparecem: as baratas sobrevivem. Um Congresso fantasma ou um Congresso fechado não interessam à democracia.

Vale um esforço para ajustar sua conduta agora e renová-lo em 2010. Quem dá um passo à frente?

A sociedade avançou, a política envelheceu. É uma crise de crescimento da democracia. Jamais alcançaremos a perfeição. Mas vai melhorar.

E os que estão por vir, como no poema de Brecht, serão compreensivos com os tempos sombrios que vivemos.

Resta trabalhar para que a energia dos escândalos não esgote a busca de soluções. Devem andar juntas, como luz e sombra".

Papa X Nietzsche 4

Nietzsche e o papa

Fonte: Antonio Cicero, Ilustrada, 18 abr. 2009

QUINTA-FEIRA da semana passada, por ocasião da Missa Crismal, o papa Bento 16 fa-°° lou da incompatibilidade entre o pensamento de Friedrich Nietzsche e o cristianismo. Segundo ele, o autor de "Assim Falou Zarathustra" desdenhou a humildade e a obediência como virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. O papa acusou Nietzsche também de ter colocado no lugar dessas virtudes "a ufania e a liberdade absoluta do homem". Ora, "no sim da ordenação sacerdotal", disse o papa ante os cardeais, bispos e padres em geral de Roma, "fizemos a renúncia fundamental a querer ser autônomos, à "autorrealização'".

As declarações do papa suscitaram viva reação, principalmente na Itália: o que não é de surpreender, considerando-se que é em Roma que fica o Vaticano e, nele, a Basílica de São Pedro, onde teve lugar a Missa Crismal. Assim, o filósofo católico Massimo Cacciari desconfia que seja ultrapassada a leitura de Nietzsche feita pelo papa.

O filósofo católico Gianni Vattimo, por sua vez, afirma que o papa não percebeu que "Nietzsche é um cristão inconsciente". Ao contrário deles, o também católico Giovanni Reale, autor de monumentais obras de história da filosofia, pensa que Bento 16 tem razão.

Também concordo com o papa. Repugnam-me esforços contemporâneos para conciliar com o cristianismo concepções de mundo que lhe são inteiramente antagônicas, como o pensamento de Nietzsche ou o de Marx.

Tais iniciativas me lembram outra coisa. Até pouco tempo era comum a tentativa de converter ou reverter ao cristianismo, no leito da morte, pensadores conhecidamente ateus ou deístas. Que digo? Até pouco tempo? Dez anos atrás isso ocorreu com um dos nossos maiores poetas.

Mas, a título de ilustração, vou citar o trecho de um livro em que o escritor piauiense Higino Cunha (de quem me orgulho de ser bisneto) descreve a morte de Voltaire:

"Os achaques da velhice vieram prostrá-lo com todo o seu cortejo de misérias. Entra em jogo a faina trevosa da conversão in extremis. Um padre se encarrega de confessá-lo e de fazê-lo assinar uma profissão de fé católico-romana. Propala-se a balela e os livres-pensadores motejam do caso incrível.

Mas o filósofo não morreu dessa vez; volta a si e ajuda os incrédulos a zombarem da suposta retratação com grande escândalo da gente religiosa. Poucos dias depois uma recaída perigosa; outro padre põe-se à espreita do momento fatídico para a realização do plano inquisitorial; quer, a todo transe, que o moribundo reconheça, ao menos, a divindade de Jesus Cristo, pela qual se interessa mais do que pelos outros dogmas. Aproveita uma ocasião de letargia e grita-lhe aos ouvidos: Credes na divindade de Jesus Cristo? Respondeu-lhe o interpelado agonizante: Em nome de Deus, senhor, não me faleis mais desse homem e deixai-me expirar em paz".

Pois bem, pior que a conversão fraudulenta de um filósofo é a conversão fraudulenta da sua filosofia a uma religião à qual ele sempre se opôs. Que pode resultar de semelhante empreendimento senão a diluição de todos os conceitos numa desprezível mixórdia?

É verdade que Nietzsche fazia pouco caso de se contradizer. Por isso mesmo, tenho para mim que, embora ele seja um grande pensador, Nietzsche é antes um artista do que um filósofo.

Assim, é possível achar trechos de seus escritos em que sua atitude ante o cristianismo não seja de pura rejeição. Já em 1938, o filósofo Karl Jaspers pinçou vários deles, ao falar sobre "Nietzsche e o cristianismo". E até teólogos, como Eugen Biser, têm feito o mesmo.

Entretanto não há como negar que Nietzsche escolheu o cristianismo como seu inimigo principal, nos pontos cardeais das obras mais importantes que escreveu. Ora, ele dizia que era mais importante escolher bem os inimigos do que os amigos. De fato, é naquilo a que uma filosofia se opõe que se percebe seu gume. Privá-la de seu inimigo equivale a embotá-la.

Em "O Anticristo", lê-se: "É necessário dizer QUEM consideramos nossa antítese -os teólogos e todos os que têm sangue de teólogo nas veias- toda a nossa filosofia...". Parece-me claro que, se Nietzsche soubesse dos teólogos que tentam cooptá-lo, com certeza os consideraria como seus mais infames inimigos.

Mais leal é um papa que reconhece como inimigo um pensador como esse que, ao se perguntar "o que é mais nocivo que qualquer vício", não hesita em responder: "A ativa compaixão por todos os malogrados e fracos - o cristianismo".

Papa X Nietzsche 3

O Papa e Nietzsche, duelo alemão

Fonte: IHU (http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21358 )

"Avante para vossos barcos, filósofos!", exclama em "Gaia ciência". E em "Aurora": "E aonde, portanto, queremos chegar? Além do mar?". Nietzsche e a ideia da liberdade. Do ir além de todo "refúgio miserável". Um pensamento que tem uma responsabilidade grande, reflete Bento XVI citando – como já o havia feito na encíclica Deus Caritas est – seu compatriota filósofo: "Friedrich Nietzsche zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem".

A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 10-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Palavras muito mais significativas se considerarmos que o Papa, na manhã da quinta-feira na Basílica de São Pedro, falava aos sacerdotes durante a Missa Crismal: diante de cardeais, bispos e presbíteros que "renovam as promessas" antes das celebrações da Páscoa. Uma homilia refinada sobre o sentido da "consagração" como "sacrifício" de si, um "tirar do mundo e entregar a Deus" que, para os sacerdotes, "não é uma segregação", mas um doar-se totalmente, como Jesus, "sacerdote e vítima", que "se entrega ao Pai por nós" e reza pelos discípulos: "Consagra-os na verdade".

É a esse ponto que Bento XVI levantou o olhar: "Como isso está se realizando na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? Ou, antes, o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Não são talvez as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos muitas vezes?". Daqui a referência a Nietzsche e ao desdenho da humildade em favor da liberdade absoluta. O Papa pede que aprendamos "de Cristo a reta humildade", certamente não "uma submissão errada, que não queremos imitar". E vê um perigo: "Há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência".

Problema: as coisas estão assim? E até que ponto Nietzsche seria responsável por isso? "O Papa tem perfeitamente razão em se irritar com as liberdades absolutas e as soberbas viris, mas temo que a sua leitura de Nietzsche é afetada por uma interpretação velha", comenta Massimo Cacciari, autor de um ensaio sobre o "Jesus de Nietzsche", um tema que aparece também na sua obra mais recente, "Della cosa ultima".

"A liberdade de Nietzsche é problemática, não é a dos modernos que, pelo contrário, ele critica: sua visão está presente em Schelling, que será retomada por Heidegger, a liberdade não como algo que "tu tens", mas que "te tem". Mas não é suficiente: "O Zarathustra tem páginas em que ele indica na figura do além-do-homem [super-homem] a capacidade de doar tudo, de não ter nada para si: amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, diz. Há passagens em que a afinidade entre o Além-do-Homem e Jesus é fortíssima. De resto, a polêmica de Nietzsche contra o cristianismo está voltada à teologia paulina, entretanto mal entendida, e não à figura sinótica de Jesus".

Segundo Cacciari, enfim, "a grandeza de um filósofo imprescindível para a contemporaneidade deveria ser compreendida em toda a sua complexidade, senão a polêmica danifica a própria pregação como capacidade de assimilar em si as vozes discordantes. Jesus andava com aqueles que o respeitavam, era um narciso? Ou pelo contrário se voltava aos publicanos, ao centurião? 'Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande!'. Por que a Igreja não se esforça em fazer o mesmo com Nietzsche e com a cultura contemporânea?".

Emanuele Severino, que dedicou ao filósofo alemão o livro "L'anello del ritorno", sorri: "Aos católicos, digo sempre que é preciso acertar seriamente as contas com a inevitabilidade desses pensamentos". De seu ponto de vista, entende o Papa: "Para a tradição, Deus está no centro da verdade, enquanto Nietzsche, precedido por Leopardi, mostra a impossibilidade de todo eterno e de todo divino. Consequência necessária é a negação de toda 'humildade' com relação ao divino. E a exaltação da liberdade e da soberba". Isso porém não tem a ver com as idéias correntes: "A liberdade de Nietzsche pressupõe que se saiba por que 'Deus está morto'. O ateísmo, o relativismo, o indiferentismo são eles mesmos superficiais e dogmáticos, não têm nada a ver com a radicalidade daquele pensamento. É necessário outra coisa para se chegar a Nietzsche e a Cristo!".

Em tudo isso, um estudioso nietzschiano como Gianni Vattimo reconhece que Bento XVI "tem razão sobre o desdenho da obediência", mas não o da humildade: "Nietzsche é um cristão inconsciente, ou que não queria reconhecer isso: um pouco pelo caminho do pai pastor protestante e um pouco porque amava o Evangelho, mas não a estrutura hierárquica da Igreja, como eu. Penso nas três metamorfoses que abrem o Zarathustra: o espírito do camelo se faz leão e se revolta contra as autoridades, mas no fim se muda em uma criança, 'é preciso uma santa afirmação'. E não era Jesus que dizia que devemos nos tornar como crianças?".

Pode ser, mas o filósofo católico Giovanni Reale não está convencido disso: "Nietzsche escreveu muitas coisas belas e coisas terríveis. O que ele apresentava como uma conquista se revelou terrível, Bento XVI tem razão. No fim, tivemos a liberdade absoluta. Mas, como dizia Bauman, ela chegou com um cartaz com preço, um preço muito salgado: o egoísmo, a solidão". Não é por acaso que o Papa tenha se voltado aos sacerdotes: "Eles têm a responsabilidade de dizer a Palavra. Eu não entendia: por que Jesus não deixou nada escrito? Eu entendi graças a Platão, no final do Fedro: não se escreve a verdade em rolos de papel, mas no coração dos homens".

Papa X Nietzsche 2

Contra Nietzsche: a acusação do Papa contra o filósofo niilista

Fonte: IHU (http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21357 )

O filósofo italiano Franco Volpi, em artigo para o jornal La Repubblica, 10-04-2009, comenta as recentes declarações de Bento XVI sobre Nietzsche. "Um dos problemas da Igreja atual é que a produção da felicidade escapou-lhe das mãos. Mas não é culpa de Nietzsche se a força dos Evangelhos se esvaece e a condição do homem ocidental é sempre mais paganizada", afirma. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Pobre Nietzsche! Foi o único filósofo ao qual coube o singular privilégio de ser considerado o responsável nada menos do que de uma guerra mundial. Durante o conflito de 1914-1918, em uma livraria de Piccadilly, estavam expostos na vitrine os 18 volumes das suas obras completas em inglês, com uma inscrição em letras enormes: "The Euro-Nietzschean-War: leiam o diabo para poder combatê-lo melhor!".

Depois, veio o nacional-socialismo, e algumas de suas doutrinas – o super-homem no sentido da seleção biológica, a vontade de poder, a antropologia do animal predador [1] e da "besta loira" [2] – foram consideradas, da mesma forma, como uma fonte de inspiração da ideologia racista e do totalitarismo.

Mais tarde, dado que ele diagnosticou algumas experiências negativas do século XIX como a "morte de Deus", a decadência dos valores tradicionais e o advento do niilismo, produziu-se uma singular transferência: trocou-se o seu pensamento pela causa da crise que ele, na realidade, queria só analisar e superar. Nietzsche se tornou, então, o destruidor da razão, o mestre do irracional, o teorizador do niilismo e do relativismo.

Todos esses estereótipos condicionaram fortemente a sua imagem e o seu destino. E por isso ele suscitou entusiasmos e atraiu anátemas, inspirou movimentos de vanguarda, modas culturais e estilos de pensamento, mas também provocou reações e rejeições também determinadas. Obviamente, também do lado católico.

Mesmo que notáveis intérpretes – padre Paul Valadier, por exemplo, ou o teólogo Eugen Biser – tenham procurado mostrar o contrário, não há dúvida de que, entre algumas doutrinas nietzscheanas e ensinamentos fundamentais do cristianismo, haja uma profunda incompatibilidade. Não admira, por isso, que o Papa considere Nietzsche um mau mestre e que remeta à sua filosofia alguns dos males do mundo contemporâneo. Nos últimos anos, ele não se cansou de denunciar o perigo do relativismo e do niilismo, fomentado por Nietzsche. Agora, ao criticar o ideal de humanidade predominante no mundo atual, baseado no valor da autoafirmação individual, egoísta e libertária, recorda a responsabilidade de Nietzsche: "Ele desdenhou a humildade e a obediência como sendo virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou a ufania e a liberdade absoluta do homem".

Ora, além do fato de que a obra de Nietzsche é um autêntico quebra-cabeças, repleto de fragmentos e aforismos cuja combinação em uma doutrina de conjunto é tudo menos comprovada, seria um erro não aprofundar os motivos que surgem dessas críticas com alguma pergunta. E é melhor tomar Nietzsche não pelas respostas que ele dá, mas pelas perguntas que coloca.

Primeiro: depois que a história nos ensinou que, muitas vezes, a possessão de Verdade produz fanatismo, e que um indivíduo armado de verdade é um potencial terrorista, surge a questão: o relativismo e o niilismo são verdadeiramente o mal radical que nos é apresentado? Ou talvez eles não produzem também a consciência e da relatividade de todo ponto de vista, portanto também de toda religião? E então não veiculam, talvez, o respeito do ponto de vista do outro e, por isso, o valor fundamental da tolerância? Há coisas bonitas também no relativismo e no niilismo: inibem o fanatismo.

Quanto à concepção aristocrática e libertária do homem, também aqui seria um erro limitar-se à superfície dos aforismos singulares de Nietzsche. Seria como, em um quadro impressionista, ver só os toques cromáticos e não o conjunto da obra. Bem, como trágico observador do vazio espiritual em que o mundo moderno desemboca, Nietzsche não quer ser um "pregador de morte".

Ele não pretende se debruçar sobre a negação dos valores e o "cupio dissolvi" [desejo dissolver-me, morrer]. Pelo contrário, quer superar o niilismo: quer, sim, fazer com que ele se cumpra de modo a "tê-lo atrás de si, debaixo de si, fora de si". É esse fim que um contra-movimento do qual nascem novos valores deseja, e ele o localiza na criatividade dionisíaca da arte.

A sua crítica da mentalidade e da moral "do rebanho", a sua defesa do que podemos definir como um "direito à excelência", é uma tentativa de superar a esterilidade da simples proibição, da abnegação e da renúncia, que mortificam a vida. Nietzsche quer que a vida se realize em todas as suas potencialidades. Porém, aconselha uma atitude "criativa" que dê à vida toda a sua plenitude, análoga à do artista que imprime em sua obra uma forma bela. Nesse sentido, a sua nova moral é uma espécie de "estética da existência", cujo imperativo recomenda: "Torna-te aquilo que és!". E mesmo que a vida não seja bela, cabe a nós procurar torná-la assim.

Um dos problemas da Igreja atual é que a produção da felicidade escapou-lhe das mãos. Mas não é culpa de Nietzsche se a força dos Evangelhos se esvaece e a condição do homem ocidental é sempre mais paganizada.

Notas:

1. Na genealogia dos sentimentos morais de Nietzsche está a vontade de poder, pois este homem que se diz humano, para Nietzsche, é um tipo de animal predador que se utiliza de uma linguagem racional para justificar e mascarar sua ânsia de domínio. Nietzsche desconfia das boas ações, pois no fundo delas há apenas uma espécie de vontade de poder.

2. A "besta loira", para Nietzsche, significava o homem que nada temia e para o qual tudo era válido e permitido desde que dai resultasse algo de útil. Devia, por conseguinte, eliminar todos aqueles que parecessem fracos ou doentes.

Papa X Nietzsche 1

Papa critica Nietzsche durante Missa Crismal

Bento XVI atacou conceito de “liberdade absoluta”

Fonte: Efe, CIDADE DO VATICANO

O papa Bento XVI celebrou ontem a Missa Crismal, na qual abençoou os santos óleos e em cuja homilia advertiu contra a visão que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche tinha da liberdade absoluta do homem - que, segundo o papa, "leva à soberba destrutiva e à violência". A Missa Crismal marca o começo do tríduo pascal, centro e ápice do ano litúrgico, e celebra a Quinta-Feira Santa, em que se lembra a instituição do sacramento da ordem sacerdotal por Jesus Cristo durante a Última Ceia, segundo a tradição cristã.

Durante o rito, no começo da manhã na Basílica de São Pedro, foram renovadas as promessas sacerdotais (pobreza, castidade e obediência) e Bento XVI destacou o que significa ser sacerdote: entregar-se a Deus é representar os outros, um modo de unificação com Cristo e a renúncia a impor a vontade própria. Acrescentou que o sacerdócio não significa "segregação" e que os padres devem saber dizer "não" às opiniões nas quais "predomine a mentira".

Bento XVI referiu-se então a Nietzsche, que, segundo o pontífice, "zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem".

"Existe uma caricatura de uma humildade e de uma submissão equivocada que não queremos imitar, mas existe também uma soberba destrutiva e uma jactância que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência", continuou.

Não é a primeira vez que Bento XVI, doutor em teologia, cita um filósofo não associado à Igreja.

Em um texto divulgado em 2007, ele escreveu que "Karl Marx descreveu de maneira drástica a ?alienação? do homem. Mesmo que não tenha atingido a verdadeira profundidade da alienação - porque raciocinava apenas em âmbito material -, forneceu uma imagem clara do homem vitimado por bandidos".

Na Missa Crismal de ontem, Bento XVI convidou os sacerdotes a aprender com Cristo a "reta humildade". Abençoou o óleo dos catecúmenos, dos enfermos e do santo crisma, apresentados em jarras de prata. Esses óleos são benzidos pelos bispos e utilizados para ungir os que se batizam, os que se confirmam e para a ordenação sacerdotal.

Bento XVI celebrou também, na Basílica de São João de Latrão, catedral de Roma, a missa da Última Ceia, na qual são lavados os pés de 12 presbíteros. Ele determinou que o dinheiro recolhido durante a missa vá para a comunidade católica do território palestino da Faixa de Gaza.

Hoje, ele volta à Basílica de São Pedro para celebrar a Paixão de Cristo e à noite vai ao Coliseu de Roma para presidir a Via-Sacra (mais informações nesta página). Na noite de amanhã, Sábado de Aleluia, Bento XVI realiza na Basílica de São Pedro a Vigília Pascal, a noite na qual a Igreja permanece à espera da ressurreição de Cristo. No domingo, o pontífice preside, na Praça de São Pedro, a Missa da Ressurreição, após a qual pronuncia a tradicional mensagem pascal e dá a bênção Urbi et Orbi - à cidade de Roma e ao mundo.

HOMILIA

"(Nietzsche) zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem"

"Pois bem, existe uma caricatura de uma humildade e de uma submissão equivocada que não queremos imitar, mas existe também uma soberba destrutiva e uma jactância que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência"

Bento XVI

Papa

Um urubu pousou na minha sorte

Na minha também!

XICO SÁ, na Folha de hoje.

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, dedicado no momento à Libertadores e às ligas internacionais, o corvo Edgar passou em cartório, em regime de procuração, a Copa do Brasil ao urubu de Augusto dos Anjos, ave que costuma pousar na nossa sorte e promover um estrago assombroso e miserável.

Assim o primo-irmão agourento, nesta semana de aniversário de 125 anos do poeta paraibano, elegeu de cara o maior favorito da rodada, o Santos Futebol Clube, o mais épico de todos os times do Universo, o único com o poder de cessar-fogo em guerras d'África e reunir tribos inimigas para apreciar o esporte. Coube ao CSA das Alagoas, sob risco de rebaixamento no Estadual, protagonizar o macabro episódio na Vila Belmiro. Bem na semana em que o alvinegro começa a decidir o certame tido como o mais importante do país. Jogasse a noite toda naquela fatídica quarta, o Peixe não vazaria o gol do azulão do Mutange.

O urubu do poeta que se declarou filho do carbono e do amoníaco ainda avisou ao garoto do placar santista: "Vai para tua casa, ô bom menino, é um tento solitário do visitante e never more, nunca mais, ninguém sentirá aqui a tua falta". Os gols só voltarão no domingo, no clássico em preto e branco, teria confidenciado o primo-irmão do corvo ao deixar a Baixada. Próximo destino: Maracanã, Rio, Flamengo x Botafogo. É rubro-negro, óbvio, como o urubu do Henfil, seu camarada, mas diz que a missão é particularíssima. Tenta, há algum tempo, desfazer os azares da vida de Cuca, excelente técnico que teima em mascar o jiló da metafísica.

Só mesmo contra o clube da estrela solitária, julga a ave augustiana, será possível vê-lo trocar o vinilzão do Nelson Cavaquinho ("Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor") por uma faixa mais leve do Cartola ("A sorrir, eu pretendo levar a vida,/ pois chorando eu vi a mocidade perdida"). Boa viagem, urubu, câmbio, desligo, até a próxima rodada e parabéns ao velho Dos Anjos por mais um aniversário. Ao povo do Engenho Pau d'Arco e de Sapé, aquele abraço. Correria. O corvo Edgar me chama no telepático. Sua curtição agora, sopra, é o grupo da morte da Libertadores. Nada mais a seu gosto. Esteve no Recife, conta, na Ilha de Lost, para ajudar o Leão a enfeitiçar "El Cacique", o freguês Colo Colo.

Agora viaja para Santiago do Chile, onde espera o Palmeiras com um bom vinho dos Andes e uma misteriosa criatura descendente dos mapuches, as fêmeas dos olhos mais envenenados das Américas. Vais secar quem?, indaguei. "Depende do comportamento do Luxa até a hora do jogo", respondeu com cinismo. "Sabe como é, meu amo, se tem pecado capital que não perdoo é a tal da soberba", grasnou. Repara quem fala em pecado, tiro uma buena onda com o agourento, logo tu, Brutus, que só aprecia o que é ilegal, imoral ou engorda.

"Não quer meu palpite para Santos x Corinthians?", disfarça e chora o Edgar, mudando de assunto. Ah, não tinha deixado o Paulistinha, por quem nutrias só desprezo? A província agora é da alçada do urubu do Augusto, mas como não resisto a um vaticínio, deixo aí o meu pitaco: 2 a 1 Peixe. E quer saber mais: no Rio dá Fogão 2 a 0. Xô, uruca!

quinta-feira, 23 de abril de 2009

É a gente que tem de se levar à sério

Gosto muito das colunas que sai na Folha, principalmente os que dizem respeito ao Caderno Ilustrada. Esta semana, dois colunistas (Joao Pereira Coutinho e o Contardo Calligaris) tratam do mesmo assunto, Susan Boyle, este fenômeno do INTERNETÊ. Por caminhos diferentes (afinal, um é psicanalista e o outro jornalista), chegam a conclusões maravilhosas.

Abaixo, os dois textos, primeiro o do Coutinho (Ilustrada, 21 abr. 2009) e em seguida do Calligaris (Ilustrada, 23 abr. 2009)

Boa leitura!

Senhora das tempestades

JOÃO PEREIRA COUTINHO

TODA A gente fala de Susan Boyle. Quem? Bom, talvez você, leitor, tenha vivido em Marte nos últimos dias. Mas Susan Boyle está nas bocas do mundo precisamente desde o momento em que abriu a boca.

Susan é escocesa. Tem 47 anos.

Desempregada. Solteira. Nunca foi beijada. Cuidou de mãe moribunda até 2007. Vive com um gato. Frequenta a igreja. E o coro da igreja. O aspecto não é promissor. Simplória. Aldeã.

E com demasiados sonhos na cabeça: quando entrou no palco do programa "Britain's Got Talent", mais um desses shows de TV para revelar talentos musicais anônimos, a audiência riu com seus modos um pouco grosseiros.

Um dos membros do júri, em pose condescendente, começou as hostilidades com um "What's your name, darling?", e "darling", no presente contexto, é de um paternalismo arrepiante. Susan Boyle respondeu: o nome e, depois, o nome que ela gostaria de ser na música. Elaine Paige. Nem mais. A diva dos musicais londrinos que já trabalhou com toda a gente que é gente. Risos mil.

Então soltaram a música. A audiência e o júri prepararam-se para o pior. E o pior veio, mas não exatamente como eles esperavam.

Susan Boyle cantava. Bem. Demais. A música, "I Dreamed a Dream", tema do musical "Les Misérables", era agora servida por capacidade vocal impressionante. Mas não apenas por capacidade vocal impressionante. A interpretação de Susan Boyle conferia à canção uma intensidade que fez desabar o teatro em choros e aplausos. De Londres a Nova York, passando pelos milhões de internautas no YouTube, Susan Boyle é apresentada como a nova Elaine Paige.

Opinião pessoal? Não, Susan Boyle não é Elaine Paige. Nem poderia. Acredito em talento natural. Não acredito apenas em talento natural.

Mesmo Mozart, um caso sem aparente explicação humana, não seria possível sem a família e o meio musical onde nasceu e cresceu, capaz de fazer florescer o que já era puro gênio no pequeno Wolfgang.

Não se iludam, preguiçosos e indolentes: o talento natural pode ser o primeiro passo. Mas ainda existem todos os outros para dar, em anos infindos de trabalho e solidão pessoal.

Susan Boyle é um caso de talento natural evidente. Mas o que verdadeiramente me impressionou em toda essa história não foram apenas os dotes naturais daquela voz. Também não foi o gritante abismo entre a forma e o conteúdo -ou, se preferirem, o clichê romântico do patinho feio que se revela um cisne. O que impressionou foi a escolha da canção e as palavras que a canção encerra, um pormenor que parece ter sido ignorado pela humanidade circundante.

"I Dreamed a Dream", uma das raras canções audíveis de "Les Misérables", não é apenas um tema sobre sonhos desfeitos. É um tema sobre a "sorte", essa terrível palavra que os gregos conheciam bem mas que a nossa modernidade racionalista eliminou do léxico filosófico.

De acordo com a ideologia reinante, o que somos, o que temos e o que fazemos depende unicamente de nós. A felicidade humana é uma construção pessoal que exige método e esforço. O que implica, inversamente, que a infelicidade é o resultado da nossa incapacidade para sermos felizes. Haverá pensamento mais perverso?

Não creio. E, no entanto, ele é repetido, dia após dia, numa sociedade que se sente infeliz por não ser feliz, como se a felicidade não fosse também um produto de contingências várias, que escapam ao controle dos homens. O produto, no fundo, de oportunidades que vieram ou não vieram; da ação ou da inação de terceiros; e das mil vidas que poderíamos ter tido.

Como no tema musical que Susan Boyle canta com a intensidade própria de quem explica a sua biografia, os nossos sonhos não dependem só da nossa autonomia.

Dependem dos "tigres da noite" ou das "tempestades imprevistas" que tantas vezes os envergonham e despedaçam.

Quando a febre passar e Susan Boyle regressar à aldeia e ao anonimato, a memória que deve ficar não é a de um talento escondido que teve os seus 15 minutos, ou 15 horas, ou 15 dias de fama.

O que deve ficar é a lição grandiosa de uma mulher que, na sua tocante simplicidade, disse a cantar o que provavelmente aprendeu com a vida. Que o inferno ou o paraíso, longe de serem prêmios exclusivamente humanos, repousam também nas mãos do destino.

I love Susan Boyle

CONTARDO CALLIGARIS

NA TERÇA-FEIRA, eu estava com minha coluna pronta (escrevo entre domingo e segunda) e, ao abrir o jornal, descobri que João Pereira Coutinho, neste mesmo espaço, também tinha-se apaixonado por Susan Boyle.

Tudo bem, não sou ciumento. Mesmo assim, por um momento, pensei escrever, na última hora, outra coluna. Mas, lendo Coutinho, percebi que a gente pode se apaixonar pela mesma pessoa por razões diferentes. Aqui vai.

Em poucos dias, dezenas de milhões de pessoas, pelo mundo afora, assistiram ao vídeo de Susan Boyle cantando "I Dreamed a Dream" (eu sonhei um sonho). Assistiram e choraram lágrimas comovidas.

Acesse a internet e veja uma das versões (por exemplo, www.youtube.com/watch?v=8OcQ9A-5noM ). Se quiser mais, assista à entrevista de Susan Boyle à rede americana CBS, durante a qual Boyle canta um trecho da música a capela (watching-tv.ew.com/2009/04/susan-boyle-cbs.html).

Provavelmente, Susan Boyle gravará um CD, e o comprarei. Talvez, um dia, ela venha ao Brasil, e estarei no show, mesmo a preço de cambista. Mas nada disso se comparará com o momento extraordinário registrado no vídeo que está hoje no YouTube. Por quê?

Vamos com calma. Susan Boyle se qualificou nas preliminares para participar de "Britain's Got Talent" (a Grã-Bretanha tem talento), que é mais uma versão (inglesa) de "American Idol", o programa de televisão que começou nos EUA e foi repetido em vários países -no Brasil, "Ídolos", na TV Record. Trata-se, a cada ano, de premiar um cantor ou uma cantora, descobrindo novos talentos.

Na verdade, a seleção para chegar até à final talvez seja o que mais diverte as plateias, nos teatros de gravação ou em casa: o vexame da maioria dos concorrentes funciona como um bálsamo para todas as covardias que nos impedem de correr atrás de nossos sonhos. Algo assim: "Olhe o que aconteceu com quem ousou. Ainda bem que eu não fui!".

Susan Boyle entrou no palco como uma espécie de anticlímax; ela era tudo o que não se espera de uma aspirante a estrela: quase 48 anos, solteirona, desempregada, vestida (disse um amigo estilista) como a rainha Elizabeth se ela fosse pobre, "gordinha" e "feinha". Os diminutivos indicam que sua aparência não era extraordinária nem negativamente, mas a tornava transparente: aquela figura papel de parede, de quem ninguém se lembra se ela estava na festa ou não. Para completar, respondendo às perguntas de Simon Cowell (que preside o júri), ela pareceu quase tola e um tanto vulgar, balançando os quadris para dar mostra de sua juventude de espírito.

Quando Susan Boyle anunciou que seu sonho era ser cantora como Elaine Page (a inesquecível Grizabella de "Cats", em Londres, em 1981), o júri e a plateia não esconderam seu desdém.

Aí Susan Boyle começou a cantar. A performance foi propriamente incrível; por um instante, pensei que Boyle estivesse apenas mexendo os lábios enquanto tocava uma gravação: uma voz forte, limpa, segura e expressiva, fiel às emoções que se alternam ao longo das letras.

Também a música que Susan Boyle escolheu (letras de Alain Boublil) contribuiu para transformar sua performance numa espécie de exemplo moral: fala de um sonho antigo, sonhado quando "a esperança falava alto e a vida valia a pena", na época em que "os sonhos são criados, usados e desperdiçados"; mas há "tempestades" que "transformam nossos sonhos em vergonha", e, no fim, em regra, a vida massacra os sonhos que sonhamos. Então, qual é a moral da performance?

Para Coutinho, a moral é que, na vida, não basta se esforçar: é preciso ter sorte. Entendo assim: Susan, até aqui, não teve sorte, a gente se comove porque é tarde demais ou porque, enfim, o destino a encontrou em sua aldeia perdida.

Para mim, a moral é outra. Não sei se Susan teve sorte ou não. Cuidar longamente da mãe doente e cantar com os amigos no karaokê da vila é uma vida que pode valer a pena, talvez mais do que uma vida nas luzes da ribalta. O que me comoveu tem mais a ver com a coragem e a resistência de seu sonho.

Os entrevistadores da CBS perguntaram a Susan Boyle como ela conseguiu se concentrar e cantar, embora percebesse que o júri e a plateia não a levavam a sério e já estavam antecipando a zombaria. Ela respondeu, com simplicidade: "É a gente que tem de se levar à sério".

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Biblioteca Digital Mundial

Fonte: Veja

A Unesco lançou oficialmente, nesta terça-feira, o site da Biblioteca Digital Mundial, em que é possível navegar pelo excepcional acervo de livros, manuscritos e documentos visuais e sonoros procedentes de bibliotecas e arquivos do mundo todo. Reproduções das mais antigas grafias e fotografias estão entre os vários documentos raros apresentados em sete idiomas (árabe, chinês espanhol, francês, inglês, português e russo). O lançamento aconteceu na sede parisiense da Unesco, na presença de seu diretor-geral Koichiro Matsuura, e de James H. Billington, diretor da Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos, idealizador do projeto.

Veja alguns exemplos do que pode ser encontrado na Biblioteca Digital Mundial:

Crônica de Terras Estrangeiras (1623)

Trata-se de um mapa do mundo em chinês produzido pelo missionário italiano Matteo Ricci, em 1574. O mapa, que seguia os princípios ocidentais da cartografia, então desconhecidos na China, passou por várias revisões entre 1574 e 1603. Os sacerdotes compatriotas de Ricci, Diego de Pantoja e Sabatino de Ursis, foram instruídos, por ordem imperial, para compor um livro explicando o mapa. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos.

O Códice Huexotzinco (1531)

Coleção de oito páginas de documentos em linguagem pictográfica de parte do testemunho em um processo jurídico contra representantes do governo colonial no México, dez anos após a conquista espanhola em 1521. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos. 

Evangelho de Miroslav (1180)

Manuscrito do evangelho de Miroslav é uma obra litúrgica considerado o mais importante e o mais belo dos livros manuscritos Sérvios. Acervo: Biblioteca Nacional da Sérvia.

Cópia do Mapa do Novo Mundo (1562)

Desenhado pelo cosmógrafo Diego Gutierrez a mando do rei da Espanha. Acervo: Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos.

Imperatriz Thereza Christina Maria

Mulher do último imperador do Brasil, D. Pedro II. A foto faz parte do acervo de mais de 21 mil fotografias reunidas pelo Imperador D. Pedro II. Acervo: Biblioteca Nacional.

Pragmática (1584)

é o primeiro documento impresso da América do Sul sobre a mudança do calendário juliano para o gregoriano, Lima, Peru. Acervo: Biblioteca John Carter Brown (Estados Unidos).

Evangelho de São Mateus (1840)

Tradução Aléute (referente ao povo nativo das ilhas Aléutas - próximas ao Alasca) feita pelo missionário russo Ioann Veniamiov. Acervo: Biblioteca Nacional da Rússia.

Ilustrações da China (1874)

Conjunto de 200 fotografias e cartas descritivas feitas pelo geógrafo escocês John Thomson durante a primeira incursão fotográfica feita sobre a China e seu povo. Acervo: Biblioteca da Universidade de Yale (Estados Unidos)

Até tu, Gabeira?

Fonte: Clóvis Rossi, hoje na Folha

Sou um admirador de Fernando Gabeira desde muito antes de seu envolvimento com a política partidária. É um extraordinário repórter, escreve muitíssimo bem -e quem, como eu, vive há 45 anos de fazer reportagens e escrever (não tão bem quanto ele), só pode admirar os mestres. Na política, ele manteve alta a cota de admiração, pelo que diz, pelo que faz, pelas teses que levanta, pela combinação de sensatez e firmeza com que as defende.

Por tudo isso, imaginei que ao menos ele não se deixaria levar pela onda de abusos que toma conta do Congresso Nacional.

Os mais condescendentes dirão que o pecado de Gabeira (usar passagens da Câmara para parentes) é menor. Dirão também que ele admite o que chama de "erro".

De acordo, é melhor do que a absoluta e indigna cara-de-pau que vestem todos os demais pilhados em algum tipo de irregularidade, em geral bem mais gorda.

O triste no caso Gabeira é o que revela da, digamos, cultura da Casa. Os congressistas habituaram-se, primeiro, com privilégios de corte, que não fazem o menor sentido.

Depois, como decorrência do anterior, habituaram-se a abusar até dos privilégios.

Já escrevi aqui que o que os mortais comuns consideramos absurdo, obsceno, cínico, revoltante, os congressistas consideram normal -e, pior, espantam-se ou se revoltam com o espanto e a revolta de massa de nós outros.

Não creio que Gabeira tenha usado indevidamente passagens para parentes por má-fé. Errou porque está inserido em uma cultura podre. É preciso estar muito alerta para não cair em erro.

Agora, anuncia a renúncia à política se não conseguir derrubar alguns dos privilégios dos congressistas. Uma colossal maioria de brasileiros já renunciou à política faz tempo. Não resolve nada, mas que dá vontade, dá.

crossi@uol.com.br

 

 

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Um aniversário infernal

Depois do jogo de sábado, me dou o direito de fazer uma postagem sobre futebol, afinal, na semana que passou, foi aniversario do Glorioso Alvinegro da Vila Belmiro (e não por acaso, meu time, o SANTOS)....o texto saiu no Blog do Torero e achei bem bacana.....

Apreciem com moderação...

Um aniversário infernal

(Como ontem foi aniversário do Santos e eu não postei nada, tentarei me redimir publicando um profético texto que saiu na Folha sete anos atrás)

Recebi por esses dias um misterioso e-mail escrito em letras vermelhas. O remetente pedia que eu colocasse seu texto nesta coluna. Num primeiro momento decidi não atendê-lo, mas, quando li seu endereço virtual, julguei ser mais prudente ceder meu espaço. Eis o texto:

"Caro colunista, gostaria muito que o senhor publicasse esta carta. E nem pense em negar-me este pedido. Pelo que você tem feito aí em cima, sei que vamos nos encontrar mais cedo ou mais tarde aqui em meus domínios, e você não gostaria de me ver de mau humor. Quando estou bravo, solto fogo pelo nariz. E isso não é uma metáfora.

O melhor seria que minha carta saísse no domingo, dia 14, mas como sei que sua coluna só sai às terças e sextas, fiquemos com a sexta, mais próxima do aniversário do meu time, o Santos.

Imagino que, ao ler a linha acima, você deve ter dito: "Mas como pode o demônio gostar de um time chamado Santos?".

E eu respondo ao previsível amigo: "Ora, não é porque sou um anjo caído que deixo de ser um anjo e, na condição de anjo, não poderia torcer para outro time".

É bem verdade que aí em cima me associam ao América carioca. Realmente admito que tenho simpatia por esse time, mas, torcer por ele, convenhamos, já é comer o pão que eu amassei.

Aliás, é muito lógico que eu torça para o Santos. Não houve time que mais tenha infernizado as defesas rivais. Você não imagina como eu ficava envaidecido ao ouvir os adversários dizerem: "Esse Santos é um time do capeta!".

Poucos sabem, mas eu, o Anhangá, o Beiçudo, o Cão Tinhoso, o Jurupari, o Maligno, o Rabão, o Sapucaio, o Tisnado, estive atrás de muitos daqueles gols endiabrados, de muitas daquelas jogadas demoníacas, de muitas vitórias diabólicas dos anos 60.

E aproveito a ocasião para contar-lhe um segredo sobre aquela época de glórias. Certa vez, em 1954, eu estava sossegado tomando uma sauna seca quando fui chamado por um dirigente santista -não adianta, não revelarei nomes. Esse sujeito não aguentava mais ser roubado pelas arbitragens e perder dos times da capital em condições suspeitas e me propôs trocar sua alma por uns campeonatos. Eu cocei meu cavanhaque com o rabo e disse: "Acho que posso fazer alguma coisa".

E fiz! Ou você acha que foi coincidência o Pelé jogar justo no Santos. Isso sem falar no resto da legião: Coutinho, Pagão, Pepe, Dorval, Zito, Toninho Guerreiro, Lima, Gilmar...

Aquele esquadrão que brilhou por exatos 20 anos e fez o mundo se curvar ante o seu poder. Porém, como, por princípio ético e convicção moral, nunca faço nada de graça, que o diga o doutor Fausto. O Santos está tendo que passar por um período de relativa amargura. Sou um admirador do time, mas também sou um profissional e não posso deixar de cobrar meus devedores. Isso pode parecer triste para alguns de vocês, mas explica muita coisa, não é?

Mas não quero terminar essa carta sem uma boa notícia de aniversário. Sendo assim, aviso-lhe faltam poucas prestações para que o Santos resgate sua dívida e volte ser um vencedor. Aí, com mil eus!, voltarei a ser mais um torcedor aqui das profundezas, um torcedor que, como você e como tantos outros, quer apenas ver o Santos sendo campeão.

É tudo. Aceite, por favor, um caloroso abraço deste seu futuro anfitrião, Lúcifer".

(PS: Curiosamente, alguns meses depois da publicação deste texto o Santos foi Campeão Brasileiro.)

Verissimo

Antiutopia

Fonte: Estado de São Paulo, Caderno 2, 19 abr. 2009

Em inglês eles usam "dystopia" mas em português "distopia" tem outro sentido. Como se chamaria o oposto de Utopia? "Antiutopia" é óbvio, mas serve. A Utopia original, a sociedade perfeita onde tudo dava certo, foi imaginada por Thomas Morus no século 16. Dizem que ele se inspirou nas primeiras notícias do descobrimento do Brasil para inventar seu paraíso racional e situá-lo numa ilha do Atlântico Sul. Um pouco da idealização de Thomas Morus sobrevive no imaginário europeu, como se vê a cada vez que eles fantasiam uma das nossas peculiaridades, seja a alegria de viver, a sensualidade ou o Lula.

Num artigo sobre o pintor Jacques-Louis David reproduzido pela recém-lançada revista serrote, Carlo Ginsburg propõe que a derrubada do Muro de Berlim em 1989 marca o fim do ciclo histórico iniciado com a Revolução Francesa em 1789, exatamente 200 anos antes. A ideia atrai pela simetria simbólica mas a conta não é precisa. A era das revoluções começou antes da queda da Bastilha, com o Iluminismo e com a Revolução Americana (ou, se quiserem uma mais antiga, com a revolução cromwelliana na Inglaterra) e acabou antes da queda do Muro, com o Gorbachev trocando sorrisos com o Reagan. Mas como gostamos de simetria, ainda mais quando ela simplifica a História, nada nos impede de pegar emprestada a data de 1989 para marcar o fim do pensamento utópico e o começo do pensamento antiutópico.

Durante mais de 200 anos de aspiração utópica, a ideia de transformar o ser humano e a sociedade criou maravilhas e horrores quase que em doses iguais: a democracia e o fim das monarquias absolutas (pelo menos no Ocidente), o crescimento dos direitos individuais, o Terror que quase afoga a Revolução Francesa em sangue, a arregimentação social do fascismo, a perversão do socialismo pelo totalitarismo soviético - enfim, tudo anunciado ou mascarado como progresso.

O pensamento antiutópico não começou apenas com a desilusão de utopistas de esquerda com a queda do Muro e o fracasso do sistema soviético. Tem uma raiz apolítica na percepção do que estamos fazendo com o planeta, do que o progresso tem de suicida. Há uma desilusão com o capitalismo também, agravada com a crise atual. A tecnologia não nos salvará, ela é parte do problema. Só ajudará se, como resultado da nossa adaptação à antiutopia que vem por aí, aprendermos a comer telefones celulares e baterias descartadas. Hoje se especula não como aperfeiçoar o ser humano e a sociedade mas como o humano e o social sobreviverão num mundo pós-crise terminal, entregue, literalmente, às feras. Já é grande a literatura antiutopista sobre como será a vida numa sociedade tornada selvagem pela privação e o desespero.

Mas acalmemo-nos. As antiutopias previstas podem ser tão fantasiosas como a Utopia de Thomas Morus. E o Obama não disse que as coisas estão melhorando?

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A Loucura! 4

Alguns desdobramentos que saiu no Painel do Leitor nos dias 15 e 16 da Folha de São Paulo. Como disse na postagem anterior, este é um assunto que tem várias frentes....o nos cabe debate-las.

"A sobriedade de Ferreira Gullar em sua coluna é rara nos jornais ("Uma lei errada", Ilustrada, 12/4).

Os hospitais-dia e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) têm sua função e devem atender a pacientes psiquiátricos cuja patologia permita parte da jornada em suas próprias casas, contudo o fechamento indiscriminado de leitos psiquiátricos na rede pública impede a abordagem de pacientes nos quais a ação médica deve ser incisiva.

A internação prolongada é prescindível com as medicações de que dispomos atualmente. A classe média merece refletir sobre a questão psiquiátrica sem vieses políticos e de classe."

LUÍS FERNANDO DE ARAÚJO, psiquiatra (São Paulo, SP)

"Como pai, a dor expressada por Ferreira Gullar merece todo o respeito. Mas, como pessoa pública, ele faz exatamente aquilo que crítica em seu artigo: adere sem refletir e examinar detidamente o problema que apresenta.

Sua opinião carece de fundamentos científico e empírico sobre as formas de atenção a pessoas com sofrimento mental e sobre as políticas públicas nessa área. O autor desconhece a história dos movimentos pela extinção dos manicômios e pela reforma psiquiátrica brasileira, que defendem a internação, quando necessária, em serviços preocupados com reabilitação (hospitais gerais, entre outros), ao contrário das instituições asilares, que cronificam sofrimentos e intensificam a segregação.

Os problemas que vimos enfrentando, como ele menciona, e que tanto nos afligem são efeitos de um conjunto muito mais complexo de fatores do que de uma lei que nem sequer foi aprovada na íntegra."

IANNI REGIA SCARCELLI, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro da Associação Brasileira de Saúde Mental -Abrasme (São Paulo, SP)

"Parabenizo Ferreira Gullar pelo artigo "Uma lei errada", Ilustrada, 12/4). O poeta provocou durante toda a semana uma discussão sobre o tema "doentes mentais". Na próxima semana, outros assuntos ocuparão o espaço e este cairá no esquecimento. Infelizmente, é assim que funciona.

As leis são feitas para serem cumpridas. Porém, na prática, a teoria é outra. Faço parte de uma instituição filantrópica, quase centenária, que trata de doentes mentais e onde o dia a dia é ver o sofrimento de toda a família envolvida com o seu ente querido.

Costumo dizer que somos o fim da linha, pois a família já sofreu muito até chegar aqui. Os caminhos percorridos são de muita dor e desespero. Fazemos a nossa parte com muito amor e carinho, procurando dar um tratamento digno aos nossos pacientes e tendo a comunidade como grande parceira."

WANDERLEY CINTRA FERREIRA, presidente do Hospital Psiquiátrico Allan Kardec (Franca, SP)

"Tenho acompanhado a repercussão sobre a coluna de Ferreira Gullar e discordo piamente dos argumentos desse admirável poeta. Sou estudante e há alguns anos estou envolvido nesse emaranhado que é a questão da loucura.

Tive a oportunidade de conhecer outros modelos de tratamento, tal como o italiano, que muito difere do brasileiro.

Porém, apesar das discordâncias, acredito que, ao polarizar o debate, os maiores prejudicados serão justamente as pessoas que vivem em sofrimento psíquico. Durante muitos anos, foram submetidas a tratamentos sub-humanos e, com a lei, passaram a ter esperança num outro modelo, que, infelizmente, depois de quase duas décadas, se encontra à deriva, ou seja, sem grandes avanços nos cuidados ao dito "louco".

É necessário um espaço para debates sem essa disputa de saberes "psis" que vemos nas cartas."

DANIEL FERNANDO FISCHER LOMONACO, estudante de psicologia da PUC-SP (São Paulo, SP)