terça-feira, 27 de outubro de 2009

Caim - a conclusão

O comum dos dois textos é que ambos são criticas, só que uma ao livro Caim em si, e outra as próprias obras de Saramago. Também acho que Saramago desta vez pega meio pesado. Não sei porque, mas quando lia o pequeno passagem do livro que foi disponibilizada ontem na Folha, lembrei do texto do Contardo sobre a "Razão, a crença e a dúvida". O fanatismo tanto do ateísmo, quanto do crente (e esse crente não é a denominação que se dá ao evangélico e sim naquele que crê, independente de crença) fazem mal nas relações interpessoais. E parafraseando Contardo, transcrevo: "Onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?"  

Caim - parte 3

Ensaio sobre o fanatismo

JOÃO PEREIRA COUTINHO

O ATEÍSMO de Saramago faz lembrar uma história. Um dia perguntaram a Kingsley Amis por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis fez cara de enfado e, razoavelmente sóbrio, explicou: "Não é bem não acreditar em Deus; é mais detestá-lO".

Tal como Amis, Saramago não descrê em Deus; ele simplesmente detesta-O com uma força só comparável à devoção dos verdadeiramente fanáticos. Nos seus livros "heréticos", o Mal não está apenas na religião tradicional e organizada. O Mal está na fonte. Leiam "O Evangelho Segundo Jesus Cristo": Deus é o vilão, não Jesus. Pelo contrário: Jesus só merece a empatia do autor, que descreve o destino daquele homem, condenado a sofrer às mãos do Pai, com verdadeira caridade "cristã".

Deus, como sempre, é o supremo criminoso. A atitude é profundamente religiosa. E Saramago é, ironia, a criatura mais religiosa da literatura contemporânea. Não somos religiosos apenas porque amamos Deus. Somos religiosos até quando O detestamos: o nosso ódio, como Graham Greene mostrou no magistral "Fim de Caso", é também uma forma de afirmação. De afirmação pela negação. "Eu sou o espírito que nega!", exclama Mefistófeles ao dr. Fausto.

Saramago também. É por isso que Saramago e os fanáticos religiosos que ele tanto critica falam a mesma linguagem. Ainda que habitem pontos opostos do diálogo. Essa atitude está novamente presente no último romance, "Caim". Em termos literários, a narrativa é pobre e, sobretudo nas descrições sexuais, vulgar e risível. Razão tinha o escritor português Francisco José Viegas quando dizia há tempos que os lusos trepavam mal na literatura.

"Caim" revisita a história bíblica do irmão que mata o irmão. Por inveja? Por maldade? Saramago tem uma opinião diferente: porque Deus é caprichoso e, aceitando as ofertas de Abel, recusa as de Caim.

O Deus de Saramago é assim: uma caricatura das divindades pagãs. É um Deus colérico, mesquinho, traiçoeiro, cruel. E, em matéria de onipotência e onisciência, uma verdadeira anedota: ele não pode tudo, ele não sabe tudo. Ele é deus, sim, mas com minúscula. Ou, nas palavras do autor, um "filho da puta".

Esse rol de vícios é desfiado em "Caim" com uma infantilidade raramente vista na literatura. Depois de matar Abel por culpa exclusiva do divino, o inocente Caim vai viajando pelo Antigo Testamento como testemunha dos crimes de Deus.

Os episódios são escolhidos com precisão cirúrgica: temos o sacrifício de Isaac por Abraão, evitado "in extremis" por Caim, prova definitiva de que Caim é bom e Deus é mau. Tão mau que, por ciúmes, destrói a Torre de Babel; permite a crueldade infanticida em Sodoma e Gomorra; tortura Job; e submerge o mundo no episódio da arca de Noé, momento final que permitirá a Caim exterminar as criaturas e confrontar-se diretamente com o Criador.

Para Saramago, Caim é uma espécie de bolchevique "avant la lettre", um terrorista disposto a combater e a sabotar um sistema absurdo e demencial. Uma visão dessas só é possível na cabeça maniqueísta de um fanático.

Mas Saramago não assume apenas as vestes do fanatismo ateu. Ele partilha com os fanáticos religiosos o mesmo tipo de interpretação literalista dos textos sacros, incapaz de ver neles qualquer dimensão alegórica, metafórica ou evolutiva. Disse "evolutiva"? Reafirmo. O Antigo Testamento só será compreensível se o lermos como um todo. Porque só a leitura do todo permite cartografar a evolução da própria ideia de Deus: um longo processo de composição milenar que, sobretudo com as contribuições dos grandes profetas entre os séculos 6 e 8 a.C., oferece uma visão do divino que é o oposto da visão iletrada, maniqueísta e literalista de Saramago. Uma visão que seria complementada pelo Novo Testamento.

E Caim? Um mero executor de um crime autorizado e até precipitado por Deus? Não vale a pena tentar explicar que é impossível discutir Caim sem discutir primeiro o arcano problema do Mal. Mas é possível dizer que o problema do Mal é indissociável da liberdade constitutiva dos homens.

Para Saramago, o livre-arbítrio não existe. O que existe é a velha visão determinista que apresenta os homens como meros joguetes das forças inexoráveis da história. E, como joguetes, obviamente absolvidos de qualquer ato ou crime.

Enganam-se aqueles que afirmam que a ideologia política de Saramago deve ser separada da sua criação literária. Em Saramago, ideologia e literatura cumprem o mesmo papel. Doutrinar.

jpcoutinho@folha.com.br

Caim - parte 2

Apesar de trechos quase engraçados, obra é fraca e óbvia na birra com deus

LUIZ FELIPE PONDÉ

COLUNISTA DA FOLHA

Existem escritores que beiram a unanimidade. Chegam a ser vistos como "um bem da humanidade". Saramago é um desses. Alguns de seus títulos são mesmo pérolas. Viajei por Portugal lendo seu livro "Viagem a Portugal" e foi uma experiência fascinante.

Infelizmente, seu mais recente romance, "Caim", não faz jus a sua história. Mais do que isso, "Caim" aponta para alguns limites de sua interpretação de mundo, e isso é importante na obra de um escritor do porte de José Saramago.

Sua fórmula para discutir a herança bíblica está esgotada e é hoje conhecida por qualquer criança no jardim da infância: o ressentimento contra Deus porque existe sofrimento no mundo. Trata-se de um caso derivado do ressentimento do qual fala Nietzsche: você não suporta o sofrimento, então culpa algo, o deus de Saramago (escrevo aqui com minúscula, como ele escreve no livro), pelo sofrimento e sonha com um mundo sem dor (o mundo dos homens bonzinhos de Rousseau e seus derivados). Saramago torna explícito o fato que a crítica a Deus pode ser ela mesma uma forma de covardia diante da dureza da vida.

Saramago parece não ter percebido ainda que não é o "fator Deus" que leva os homens a serem a besta fera que são, mas sim o "fator Homem" que gera a bestialidade histórica de que ele tanto reclama. Como todo ateu (será mesmo?), não consegue deixar Deus em paz.

Em poucas palavras, afora a escrita, como sempre em cascata, e trechos quase engraçados, o livro é fraco e óbvio na sua birra. A raiva e o ressentimento para com deus nos fazem pensar que estaríamos diante de um palavrório adolescente. Como em todo ressentimento, falta humildade.

Carência afetiva

Caim, famoso por matar Abel, os dois filhos de Adão e Eva, é seu herói, revoltado contra deus e sua descarada preferência pelo irmão. Depois de apresentar Abel como um irmão que humilha seu irmão mal-amado (o que não bate com a tradição bíblica), Caim porá o dedo na cara de deus e cobrará dele o que eu chamaria de "afetividade democrática": deus deveria amar a todos igualmente. O pobre Caim não consegue lidar com sua carência afetiva. Esse tipo de demanda dá sono.

Daí, Saramago se põe a reler vários eventos da Bíblia hebraica (ou Velho Testamento), tais como a torre de Babel, o dilúvio, o quase sacrifício do filho de Abraão, Isaac, entre outros, sempre a partir do ressentimento contra um deus que não ama a todos devidamente, assim como o irmão Chavez ama devidamente a todas as suas criaturas. Mesmo Lilith, figura máxima do feminismo bíblico ressentido, aparece como grande parceira de Caim nesta aventura que fala de como deus não é legal.

Saramago parece não perceber que grande parte do relato inicial da Bíblia fala da condição humana para além do que gostaríamos que ela fosse: somos frágeis, mortais, insuficientes, e por isso nos revoltamos. O sentido da vida é opaco para nossa inteligência.

A solução de Saramago parece ser supor que se "matarmos deus", nós deixaremos de ser frágeis, mortais, covardes, cruéis e entenderemos o sentido final da vida, e ela ficará então satisfatória. Talvez se ele não tivesse sido contaminado pelo blá-blá-blá marxista sobre a religião, perceberia que existe toda uma literatura de peso que discute isso.

Caro leitor, para entender a relação entre Caim e Abel (cujos sacrifícios eram bem recebidos por Deus), não precisa de muita retórica, e aí você verá como Saramago, e outros que insistem no ressentimento infantil quando discutem a tradição bíblica, perdem o foco da coisa.

Basta lembrar o seguinte: você já topou na vida com alguém que seja melhor do que você? Mais bonito, mais inteligente, mais forte, mais rico, mais sensível, mais generoso, mais amado pelos outros, enfim, melhor do que você? Alguém já o fez sentir sua própria mesquinhez, pobreza de espírito, estupidez, covardia, enfim, você já sentiu o negrume da inveja sufocar sua alma? Você já teve "vontade de matar" algum Abel na vida? Respire fundo e veja se você não vê a marca de Caim (a inveja) na sua testa.

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Avaliação: ruim

Caim - parte 1

Abaixo um pequeno fragmento do polemico livro de Saramago, Caim. Nos dois próximos post, estarei colocando a opinião de dois colunistas da Folha de São Paulo, no qual eu sou leitor de ambos. O primeiro é a critica que saiu um dia antes do lançamento oficial do livro, dia 18 de outubro, escrita pelo colunista Luis Felipe Pondé. A outra é uma coluna de hoje da Folha de São Paulo, do conterrâneo de Saramago, o escritor João Pereira Coutinho.

"Feliz vai também caim, já a sonhar com um almoço no campo, entre verduras, fugidios carreirinhos de água e passarinhos a sinfonizar nas ramagens. À mão direita do caminho, além, vê-se uma fila de árvores de bom porte que promete a melhor das sombras e das sestas. Para lá tocou caim o jumento. O sítio parecia ter sido inventado de propósito para refrigério de viajantes fatigados e respectivas bestas de carga. Paralela às árvores havia uma fileira de arbustos tapando o carreiro estreito que subia em direcção ao teso da colina. Aliviado do peso dos alforges, o jumento tinha-se entregado às delícias da erva fresca e de alguma rústica flor tresmalhada, sabores estes que jamais lhe tinham passado pela goela. Caim escolheu tranquilamente a ementa e ali mesmo comeu, sentado no chão, rodeado de inocentes pássaros que debicavam as migalhas, enquanto as recordações dos bons momentos vividos nos braços de lilith voltavam a aquecer-lhe o sangue. Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício. E continuaram a subir a encosta. Ora, enquanto sobem e não sobem, convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar.

Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que signifi ca que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.

Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.

O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim. O anjo resmungou, Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, Eis o que mandou dizer o senhor, Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-de dar-te uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou como as areias da praia e eles hão-de tomar posse das cidades dos seus inimigos, e mais, através dos teus descendentes se hão-de sentir abençoados todos os povos do mundo, porque tu obedeceste à minha ordem, palavra do senhor. Estas, para quem não o saiba ou finja ignorá-lo, são as contabilidades duplas do senhor, disse caim, onde uma ganhou, a outra não perdeu, fora isso não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida, A isso chamamos nós no céu obediência devida, disse o anjo.

Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se embora, abraão e o filho também já lá vão a caminho do lugar onde os esperam os criados, e agora, enquanto caim ajeita os alforges no lombo do jumento, imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis. Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou".

sábado, 24 de outubro de 2009

Raças e cotas

Raças e cotas

"As cotas só afirmam as diferenças com as quais sonham os racistas? Ou podem mudar algo?"

CONTARDO CALLIGARIS, Folha, 01 out. 2009

PERTENCEMOS A uma única espécie: a espécie humana. Quanto a isso não há dúvida, visto que procriamos alegremente sem que as diferenças étnicas ou raciais atrapalhem o bom funcionamento sexual e reprodutivo. Mas só 250 anos atrás, na América do Norte e na França, foi proclamado o princípio de que, por pertencermos à mesma espécie, temos todos os mesmos direitos, independentemente de etnia, cultura, religião, gênero, berço e cor (da pele, do cabelo ou dos olhos). Desde então, tal princípio vem se afirmando, aos trancos e, sobretudo, aos barrancos, por várias razões.

1) Há etnias e culturas que não topam aquela ideia proclamada 250 anos atrás.

2) Não conseguimos decidir se nossa igualdade de direito deve implicar ou não uma igualdade de fato. Depois de algumas tentativas desastradas, parece que concluímos que o importante é que todos tenhamos ao menos oportunidades parecidas no começo da vida. Estamos longe disso.

3) Mesmo acreditando na unidade da espécie e na igualdade dos direitos, adoramos pertencer a uma turma e continuamos enxergando um mundo dividido em nações, etnias, raças, classes, torcidas etc. Claro, prezamos nossa singularidade e, por isso, queremos ser contados um a um, como indivíduos, cada um diferente e único dentro da espécie comum. Mas também gostamos de privilégios, e os privilégios são mais "agradáveis" quando são negados a um grupo de excluídos: sala VIP só tem "graça" se os outros esperam no saguão do aeroporto. Em suma, no mínimo, a vontade de sermos singulares nos induz a criar grupos de discriminados, "diferentes" de nós.

4) As vítimas dessa discriminação, na hora de invocar o princípio da igualdade de todos para obterem os mesmos direitos dos demais, são obrigadas a se constituírem como grupo. Sem isso, sua reivindicação não teria chance alguma: o protesto de um negro discriminado será sem efeito se não existir algum "movimento negro".

Em tese, os grupos de vítimas da discriminação deveriam ser fundados em "identidades de defesa", ou seja, identidades que surgem provisoriamente, de maneira reativa. Por exemplo, "os negros" existem como grupo, aos olhos dos racistas, para serem discriminados; ora, a luta contra essa discriminação exige uma identidade positiva, de modo que os negros possam existir como grupo na hora de se opor à sua discriminação. No caso, eles afirmarão e valorizarão uma improvável ascendência racial comum. Problema: ao defender-se, eles darão crédito à mesma diferença inventada pelos racistas a fim de discriminá-los.

O perigo é que essas identidades, adotadas para lutar contra a discriminação e permitir, enfim, uma sociedade de indivíduos iguais, acabem consolidando as próprias diferenças que tratam de abolir. Por exemplo, uma política de cotas reservadas a negros e pardos (na universidade, no emprego público e mesmo no setor privado) é uma maneira de se opor à discriminação, mas, para funcionar, ela exige que a gente acredite nas diferenças raciais e as estabeleça como parte da identidade do cidadão -que é exatamente a situação com a qual o racismo sonha desde sempre.

Esse argumento é crucial no livro de Demétrio Magnoli, "Uma Gota de Sangue" (ed. Contexto), que é, ao mesmo tempo, uma excelente história e apresentação do racismo no mundo moderno e uma crítica das políticas de cotas por elas necessariamente confirmarem a existência de diferenças raciais que não têm realidade biológica e cujo fundamento histórico é o próprio racismo.

Isso, logo no Brasil, onde a mistura das cores deixaria esperar um enterro mais rápido da categoria de raça. Compartilho com Magnoli o sonho de uma sociedade em que a cor da pele seja indiferente. Mas minha avaliação das políticas de cotas é "matizada". Quando cheguei nos EUA, em 94, eu pensava como Magnoli, ou seja, previa que o sistema de cotas, instituído para "compensar" os efeitos da discriminação, dividiria o país, levando-o de volta para o século 19. Não foi o que aconteceu. Aos poucos, a presença de cidadãos de todas as cores na maioria das corporações (da polícia urbana ao corpo docente das universidades) se transformou num duplo valor compartilhado por todos ou quase: um valor estético (a diversidade é bonita) e um valor produtivo (a diversidade é funcional).

Até que um dia pareceu lógico, num país cujo sul inteiro foi racista e segregado, que um negro pudesse ser presidente.

ccalligari@uol.com.br

A memória do povo

A memória do povo

Marcelo Rubens Paiva, Estado de São Paulo

Muitos não se esquecem do primeiro gol, feito no pátio da escola. Ou do primeiro frango, quando se foi escalado à revelia para jogar debaixo das traves. Do primeiro beijo de língua, da primeira cicatriz, do primeiro fora e da primeira vez em que se ouviu "eu te amo", ninguém se esquece.

Também não nos esquecemos da primeira vez em que ouvimos "vou para a casa da minha mãe", do primeiro divórcio, da audiência na Vara da Família, do terno e do cinismo do advogado do outro, e do tédio do juiz, que já ouviu aquela ladainha tantas vezes...

Nem do primeiro reencontro casual com a ex, em que ela, sorridente, está mais bonita, mais loira, menos cacheada, mais magra, com um par de seios novos, maiores e um vestido bem mais curto que os anteriores, muito bem acompanhada por alguém mais bronzeado, simpático, gente fina e absurdamente mais sarado.

Ela também não se esquece do dia em que vê o ex saindo do restaurante mais caro da cidade - enquanto antes só a levava no pé-sujo mais barulhento -, abraçado a uma garota mais nova que os filhos deles, usando boné, tênis All Star, sem os cabelos brancos de antes, mas ainda com aquela eterna barriguinha, fumando (desde quando voltou a fumar?) e entrando num carro que daria para pagar a pensão alimentícia de todas as mulheres presentes no empreendimento gastronômico citado.

Ambos os gêneros não se esquecem do primeiro orgasmo, do dia do sim, da lua de mel e da primeira vez em que ele é obrigado a dizer "isso nunca me aconteceu". Também não nos esquecemos da primeira vez que ouvimos "não é isso que você está pensando", "o problema não é você", "o celular estava no vibracall" e "não bufa". Nem da primeira camisinha. Muito menos da primeira camisinha estourada.

Diz o pensador Washington Olivetto, que uma garota não se esquece do primeiro sutiã. O que as garotas não sabem é que nós, garotos, não nos esquecemos da primeira vez em que prendemos o bem mais precioso no zíper da calça. Vemos estrelas. É como se o big-bang se repetisse bilhões de anos depois.

Elas nunca se esquecem da primeira curetagem, e eles, do primeiro exame de próstata. Acho que poucos se lembram da queda do primeiro dente de leite. Mas ninguém se esquece da primeira extração do primeiro siso. Ou da primeira operação para extrair as amídalas. Ou da primeira dentadura.

Não nos esquecemos também quando o limite de colesterol passou para o nível inaceitável, ou quando ouvimos pela primeira vez a pergunta: "Você tem caso de diabete na família?"

Da primeira vez em que o time de coração ganhou a Libertadores, alguém se esquece? Nem os corintianos, da quantidade de vezes em que o time foi eliminado perto das finais. Nem em qual churrasco estava nas finais das Copas do Mundo de futebol. Nem do pênalti perdido pelo craque do time na decisão. Ou da primeira vez que entrou num estádio. Ou dá última, em que passou mal, depois de jantar o dogão com purê e maionese da rua em frente.

Ninguém se esquece da primeira vez em que andou de bicicleta sem rodinhas, da primeira vez em que boiou sem a ajuda dos braços do avô, do primeiro tombo do cavalo. E do primeiro e indigesto fio de cabelo branco, alguém se esquece?

E do tamanho do primeiro celular? E da primeira bicicleta? E do primeiro carro? E da cara do primeiro instrutor da autoescola? E de todas as casas em que morou? E do primeiro cachorro? E de todos os outros? E dos gatos? Da babá? Da primeira escola? E da última? Da primeira namorada? E da última?

Tudo bem se esquecer do número do PIS/Pasep, ou do passaporte, que muda a cada cinco anos. Mas alguém se esquece do número do próprio celular, RG, CPF ou do telefone da mãe? Do aniversário?

Alguém se esqueceu da reação que teve quando soube que o Senna, o Tancredo, a Diana, o John Lennon, os Mamonas e o Michael Jackson morreram? E por qual canal assistiu à queda das Torres Gêmeas no 11 de setembro? E da primeira greve? Do primeiro voto? Da primeira vez diante da urna eletrônica? Da primeira vez que voou de avião, ou helicóptero, ou para o espaço?

E a Zélia anunciando pela tevê que cada brasileiro teria o direito de sacar apenas R$ 50? E das Diretas Já? E dos caras pintadas? E do Collor dando adeus? E do que estava fazendo no dia do blecaute? E do dia em que o PCC parou a cidade?

Alguém se esquece do cheiro da avó? Do perfume do amante? Do gosto da manga, da água de coco, do caju, do figo? Do cheiro do mar? De dizer "feliz ano-novo"? De curar soluço? Do primeiro vestibular? Do homem chegando na Lua? Do primeiro porre?

Depois dizem que somos um povo sem memória.

Intelectuais fazem manifesto contra CPI do MST

Intelectuais fazem manifesto contra CPI do MST

Assinam o documento personalidades como Antonio Candido, Luis Fernando Veríssimo e Emir Sader

Fonte: Roldão Arruda, de O Estado de S.Paulo

Intelectuais do Brasil e do exterior divulgaram nesta sexta-feira, 23, um manifesto em defesa dos Movimento dos Sem-Terra (MST) e contra a CPI criada nesta semana para investigar supostas irregularidades na repasse de verbas públicas para a organização. De acordo com o documento, está em curso no Brasil "um grande operativo político das classes dominantes objetivando golpear o principal movimento social brasileiro, o MST". No fundo, diz o texto, "prepara-se o terreno para mais uma ofensiva contra os direitos sociais da maioria da população brasileira".

Entre os signatários do manifesto aparecem os escritores Eduardo Galeano, do Uruguai, e Luiz Fernando Veríssimo. Também estão na lista o crítico literário e professor aposentado Antonio Candido, o cientista político Chico de Oliveira e o filósofo Paulo Arantes. Até o final da tarde de desta sexta-feira, cerca de cem pessoas já haviam assinado o manifesto, que está circulando por diversos países. Em Portugal ele ganhou a adesão do sociólogo Boaventura de Souza Santos, um dos ideólogos do Fórum Social Mundial.

O manifesto critica a cobertura dada pela mídia à destruição de um laranjal da empresa Cutrale por militantes do MST, semanas atrás, no interior de São Paulo. "A mídia foi taxativa em classificar a derrubada de alguns pés de laranja como ato de vandalismo. Uma informação essencial, no entanto, foi omitida: a de que a titularidade das terras da empresa é contestada pelo Incra e pela Justiça", diz o texto. E mais adiante acrescenta: "Na ótica dos setores dominantes, pés de laranja arrancados em protesto representam uma imagem mais chocante do que as famílias que vivem em acampamentos precários, desejando produzir alimentos."

O manifesto foi redigido por um grupo de apoiadores do MST no Rio. Quando começou a circular ganhou rapidamente adesões em universidades brasileiras e do exterior. Segundo o sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, um dos signatários do documento, o MST é respeitado internacionalmente como um dos movimentos sociais mais importantes do mundo. "É inaceitável a iniciativa de criminalizá-lo e empurrá-lo para a clandestinidade", disse ele ao Estado. "É inaceitável também que este Congresso, que chegou ao fundo do poço e cujo presidente tenta cercear o trabalho da imprensa, impedindo a divulgação de informações sobre sua família, se julgue no direito de policiar e tentar sufocar o movimento."

O texto endossa a tese defendida pela liderança do MST de que o principal objetivo da CPI é tirar do foco o debate sobre a revisão dos índices de produtividade no País, que estão em vigor desde 1975. "A revisão dos índices evidenciaria que, apesar de todo o avanço técnico, boa parte das grandes propriedades não é tão produtiva quanto seus donos alegam e estaria, assim disponível para a reforma agrária."

Leia a íntegra do manifesto

Manifesto em defesa do MST

Contra a violência do agronegócio e a criminalização das lutas sociais

As grandes redes de televisão repetiram à exaustão, há algumas semanas, imagens da ocupação realizada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em terras que seriam de propriedade do Sucocítrico Cutrale, no interior de São Paulo. A mídia foi taxativa em classificar a derrubada de alguns pés de laranja como ato de vandalismo.

Uma informação essencial, no entanto, foi omitida: a de que a titularidade das terras da empresa é contestada pelo Incra e pela Justiça. Trata-se de uma grande área chamada Núcleo Monções, que possui cerca de 30 mil hectares. Desses 30 mil hectares, 10 mil são terras públicas reconhecidas oficialmente como devolutas e 15 mil são terras improdutivas. Ao mesmo tempo, não há nenhuma prova de que a suposta destruição de máquinas e equipamentos tenha sido obra dos sem-terra.

Na ótica dos setores dominantes, pés de laranja arrancados em protesto representam uma imagem mais chocante do que as famílias que vivem em acampamentos precários desejando produzir alimentos.

Bloquear a reforma agrária

Há um objetivo preciso nisso tudo: impedir a revisão dos índices de produtividade agrícola - cuja versão em vigor tem como base o censo agropecuário de 1975 - e viabilizar uma CPI sobre o MST. Com tal postura, o foco do debate agrário é deslocado dos responsáveis pela desigualdade e concentração para criminalizar os que lutam pelo direito do povo. A revisão dos índices evidenciaria que, apesar de todo o avanço técnico, boa parte das grandes propriedades não é tão produtiva quanto seus donos alegam e estaria, assim, disponível para a reforma agrária.

Para mascarar tal fato, está em curso um grande operativo político das classes dominantes objetivando golpear o principal movimento social brasileiro, o MST. Deste modo, prepara-se o terreno para mais uma ofensiva contra os direitos sociais da maioria da população brasileira.

O pesado operativo midiático-empresarial visa isolar e criminalizar o movimento social e enfraquecer suas bases de apoio. Sem resistências, as corporações agrícolas tentam bloquear, ainda mais severamente, a reforma agrária e impor um modelo agroexportador predatório em termos sociais e ambientais, como única alternativa para a agropecuária brasileira.

Concentração fundiária

A concentração fundiária no Brasil aumentou nos últimos dez anos, conforme o Censo Agrário do IBGE. A área ocupada pelos estabelecimentos rurais maiores do que mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades com menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. As pequenas propriedades estão definhando enquanto crescem as fronteiras agrícolas do agronegócio.

Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2009) os conflitos agrários do primeiro semestre deste ano seguem marcando uma situação de extrema violência contra os trabalhadores rurais. Entre janeiro e julho de 2009 foram registrados 366 conflitos, que afetaram diretamente 193.174 pessoas, ocorrendo um assassinato a cada 30 conflitos no 1º semestre de 2009. Ao todo, foram 12 assassinatos, 44 tentativas de homicídio, 22 ameaças de morte e 6 pessoas torturadas no primeiro semestre deste ano.

Não violência

A estratégia de luta do MST sempre se caracterizou pela não violência, ainda que em um ambiente de extrema agressividade por parte dos agentes do Estado e das milícias e jagunços a serviço das corporações e do latifúndio. As ocupações objetivam pressionar os governos a realizar a reforma agrária.

É preciso uma agricultura socialmente justa, ecológica, capaz de assegurar a soberania alimentar e baseada na livre cooperação de pequenos agricultores. Isso só será conquistado com movimentos sociais fortes, apoiados pela maioria da população brasileira.

Contra a criminalização das lutas sociais

Convocamos todos os movimentos e setores comprometidos com as lutas a se engajarem em um amplo movimento contra a criminalização das lutas sociais, realizando atos e manifestações políticas que demarquem o repúdio à criminalização do MST e de todas as lutas no Brasil.

Assinam esse documento:

Eduardo Galeano - Uruguai

István Mészáros - Inglaterra

Ana Esther Ceceña - México

Boaventura de Souza Santos - Portugal

Daniel Bensaid - França

Isabel Monal - Cuba

Michael Lowy - França

Claudia Korol - Argentina

Carlos Juliá - Argentina

Miguel Urbano Rodrigues - Portugal

Carlos Aguilar - Costa Rica

Ricardo Gimenez - Chile

Pedro Franco - República Dominicana


Brasil:

Antonio Candido

Ana Clara Ribeiro

Anita Leocadia Prestes

Andressa Caldas

André Vianna Dantas

André Campos Búrigo

Augusto César

Carlos Nelson Coutinho

Carlos Walter Porto-Gonçalves

Carlos Alberto Duarte

Carlos A. Barão

Cátia Guimarães

Cecília Rebouças Coimbra

Ciro Correia

Chico Alencar

Claudia Trindade

Claudia Santiago

Chico de Oliveira

Demian Bezerra de Melo

Emir Sader

Elias Santos

Eurelino Coelho

Eleuterio Prado

Fernando Vieira Velloso

Gaudêncio Frigotto

Gilberto Maringoni

Gilcilene Barão

Irene Seigle

Ivana Jinkings

Ivan Pinheiro

José Paulo Netto

Leandro Konder

Luis Fernando Veríssimo

Luiz Bassegio

Luis Acosta

Lucia Maria Wanderley Neves

Marcelo Badaró Mattos

Marcelo Freixo

Marilda Iamamoto

Mariléa Venancio Porfirio

Mauro Luis Iasi

Maurício Vieira Martins

Otília Fiori Arantes

Paulo Arantes

Paulo Nakatani

Plínio de Arruda Sampaio

Plínio de Arruda Sampaio Filho

Renake Neves

Reinaldo A. Carcanholo

Ricardo Antunes

Ricardo Gilberto Lyrio Teixeira

Roberto Leher

Sara Granemann

Sandra Carvalho

Sergio Romagnolo

Sheila Jacob

Virgínia Fontes

Vito Giannotti

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A wikipédia me casou

A wikipédia me casou

No começo, eu intervinha nos tópicos que se referiam a mim porque havia datas equivocadas ou notícias erradas. Porém, logo desisti, pois cada vez que, por curiosidade, ia ver minhas informações, encontrava novas besteiras, postadas por sabe-se lá quem.

Fonte: Umberto Eco, Diario do Comercio, 09 out. 2009

Todos nós, quando trabalhamos e precisamos checar um nome ou data, consultamos a Wikipédia na internet. Para os raríssimos que ainda não sabem, informo que a Wikipédia é uma enciclopédia online, na qual os usuários escreverem e reescrevem continuamente. Quer dizer, se você pesquisar a palavra "Napoleão" e ver que as informações estão incompletas ou erradas, você as corrige e sua versão é salva.

É lógico que isso permite aos mal-intencionados ou  loucos difundir notícias falsas, mas a garantia está precisamente no fato de que o controle é realizado por milhões de usuários. Se um mal-intencionado  corrigir que Napoleão não morreu em Santa Helena, mas em São Domingo, imediatamente milhões de usuários bem-intencionados vão intervir para corrigir a correção errada (além disso, creio que após algumas ações legais por parte de pessoas que se consideraram caluniadas por anônimos, criou-se uma espécie de redação que exerce algum controle, pelo menos, sobre o tipo de correções que se apresentam claramente como difamatórias).

Nesse sentido, a Wikipédia seria um bom exemplo do que o filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce denominava A  Comunidade (científica), a qual por meio de uma homeostácia agradável apaga os erros e legitima as novas descobertas, levando adiante, como ele dizia, a tocha da verdade.

Se é possível que esse controle coletivo funcione com Napoleão, poderia funcional com um John Smith qualquer? Peguemos como exemplo uma pessoa mais conhecida do que John Smith e e menos do que Napoleão – isto é, eu mesmo. No começo, eu intervinha nos tópicos que se referiam a mim porque havia datas equivocadas ou notícias erradas (por exemplo, uma dizia que eu era o mais velho de treze irmãos, mas isso se refere a meu pai). Porém, logo desisti, pois cada vez que, por curiosidade, ia ver minhas informações, encontrava novas besteiras, postadas por sabe-se lá quem.

Agora, alguns amigos me avisaram que a Wikipédia diz que eu me casei com a filha de meu editor,  Valentino Bompiani. A notícia não é de forma alguma difamatória,  mas talvez fosse para minhas queridas amigas Ginevra e Emanuela, então intervim para eliminá-la.

Nesse meu caso, sequer se  pode falar em um erro compreensível (como na história dos 13 filhos) nem na aceitação de um boato recorrente: ninguém jamais pensou em tal casamento. Assim, o coautor anônimo da Wikipédia interveio para tornar pública uma fantasia particular, sem nem checar a informação com alguma fonte.

Então até que ponto podemos confiar na Wikipédia? Afirmo logo que confio porque a utilizo com a técnica de um pesquisador profissional: consulto a Wikipédia sobre determinado assunto e depois vou comparar com outras duas ou três páginas na web. Se a notícia aparece três vezes, há boas chances de ser verdadeira (ainda que  se deva prestar atenção para que os sites consultados não sejam parasitas da Wikipédia e repitam o erro).

Outra forma é consultar o tópico em pelo menos duas línguas (se você tem dificuldades com o urdu, haverá pelo menos um correspondente em inglês): frequentemente as versões coincidem (uma é tradução da outra), mas às vezes diferem e pode ser interessante observar uma contradição que poderá induzí-lo (apesar de toda  sua fé no mundo virtual) a se levantar da cadeira e consultar uma enciclopédia de papel.

Contudo, dei o exemplo de um estudioso que aprendeu um pouco de como de trabalha cotejando as fontes entre si. E os outros? Os que confiam? Os garotos que recorrem à Wikipédia para fazer as tarefas do colégio? Note-se que o problema é válido também para qualquer outro site.

Assim faz muito tempo que eu aconselho, também para grupos de jovens, que se faça um centro de monitoramento da internet, com um comitê formado por especialistas confiáveis, para cada tema, para que as páginas sejam analisadas (online ou numa publicação impressa) e julgadas no que se refere a sua credibilidade e integridade.

Entretanto, tomemos outro exemplo que não seja um personagem histórico, como Napoleão (para qual o Google me dá 2,190 milhões de sites), mas o de um jovem escritor que, famoso há um ano – desde que ganhou o Prêmio Strega 2008 –, Paolo Giordano, autor de "A Solidão dos Números Primos". São 522 mil páginas na internet. Como é possível verificar todas?

Uma solução seriam monitorar unicamente os sites referentes a só um autor sobre o qual os estudantes procuram informações frequentemente. Mas se tomarmos Peirce, que citei acima, como exemplo, as páginas que tratam dele são 734 mil.

Eis um problema que, por enquanto, não tem solução.

Umberto Eco é escritor, autor de "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", "Baudolino", "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault".

Tradução: Rodrigo Garcia

quinta-feira, 8 de outubro de 2009


 
 
 



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Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?

Acho que já comentei aqui neste espaço um pouco sobre o que acho da racionalidade humana...e também sobre a obra do evolucionista Richard Dawkins e sua seu best seller "Deus- Uma Delírio".

Defendo toda a forma de pensamento, toda a forma de crença. Acho que somos responsáveis pelos nossos atos. Vejo também o ateísmo como uma dogmática, onde o que impera e se defende o confronto com outras crenças religiosas. Deus existe ou não??? No meu modo de ver, isso pouco importa. Importa sim, como pensamos e principalmente como agimos com relação ao meio.

Abaixo um texto de hoje de Contardo Calligaris onde ele discute um pouco sobre a razão dos ditos “racionalista”, trazendo no plano de fundo a obra e os leitores de Richard Dawkins.

Uma boa leitura!

Razão, crença e dúvida

Onde se manifesta a razão?

Na arrogância de certezas absolutas

ou na capacidade de duvidar?

Fonte: CONTARDO CALLIGARIS, hoje na Folha

MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).

Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses.

A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia.

Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.

Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.

Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.

Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.

Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.

Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.

O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira.

Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?

ccalligari@uol.com.br          

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O papel pode morrer; a leitura, não

O papel pode morrer; a leitura, não

por Daniel Piza, 06 out. 2009

Nunca se produziram tantos livros no mundo. O maior sucesso recente da literatura mundial foi uma série de romances juvenis, Harry Potter, cujos volumes têm mais de 700 páginas cada um. O índice de leitura no Brasil aumenta ano a ano. O melhor livro de ficção nacional do último decênio, Dois Irmãos, de Milton Hatoum (2000), já soma cem mil exemplares vendidos; é um sucesso de crítica e público. Feiras literárias como a de Paraty unem grandes autores em salas lotadas. Imprensa? As duas mais sofisticadas revistas de língua inglesa, The Economist e The New Yorker, que se caracterizam pelos textos extensos e análises críticas, hoje têm a maior circulação de sua história: mais de 1 milhão de exemplares cada uma. No Brasil, nunca se falou tanto em jornalismo literário, nome de uma coleção de livros (que teve títulos como A Sangue Frio, de Truman Capote, e Hiroshima, de John Hersey, na lista dos mais vendidos em não-ficção), e nunca se tentou praticá-lo tanto. Entre os estudantes, o jornalismo cultural passou a ser o mais procurado, em vez do político e do econômico.

Quem diz que textos em papel estão morrendo, portanto, está desdenhando fatos. Se há uma queda geral no nível cultural, se hoje vemos até pessoas das artes e das idéias com formação geral deficiente, não é por causa de alguma incompatibilidade fundamental entre o homem contemporâneo e a superfície impressa. O que há é uma perda do valor desse conceito, “formação”, num mundo tão bombardeado de informações e de tantas horas perdidas em trânsito, distração e consumismo. Pois quem deseja tomar contato com o que se escreveu de melhor no passado tem ampla oferta de produtos e eventos. Editoras como Cosac Naify, Companhia das Letras, 34 e L&PM têm feito ótimo trabalho de reedições e novas traduções de clássicos, inclusive com vendas em bancas de jornal a menos de R$ 10 o exemplar. Assim como CDs, DVDs e os sites com vídeos e áudios, o acervo de textos antigos é hoje maior do que já foi em qualquer era anterior; temos Shakespeare a um clique no mundo todo.

Sim, a circulação de jornais tem caído nos últimos anos, sobretudo nos países ricos, como EUA, e boa parte disso pode ser atribuída à concorrência de outros meios de comunicação; a televisão, por sinal, está tão preocupada com a internet quanto a imprensa escrita. Para o sujeito que trabalha e tem família, há uma sensação de que está informado ao longo do dia: escuta rádio no caminho, fica diante do computador o dia inteiro, há TVs com canais de notícia 24h em todos os lugares, volta para casa e ainda consome mais jornalismo até pelo celular. Como não querer que nesse mundo pulverizado o jornal diário em papel não perca espaço? Isso, porém, não significa que ele não vá continuar a ser lido por uma minoria, ainda que em suporte digital (em aparelhos como o Kindle, que foi redesenhado justamente para baixar jornais), nem que a leitura de livros e revistas vá deixar de ser um hábito distintivo do Homo sapiens. Na convergência de mídias, nada elimina o que houve antes: apenas absorve e transforma – e, se a humanidade quiser, pode até ser para melhor.

Letterman no confessionário

Letterman no confessionário

“Quando a audiência aplaude,

o infeliz sabe que o perdão existe.

E a audiência aplaudiu”

Fonte: JOÃO PEREIRA COUTINHO, hoje na Folha

CONVERTEU-SE EM clichê afirmar que a psicanálise substituiu o confessionário. Reza a lenda: antigamente, o pecador entrava na igreja, conversava com o padre de serviço e, depois das penitências, regressava ao mundo da luz e dos vivos. Com a alma limpa, intata, renascida.

Hoje, com o recuo do cristianismo na vida dos cosmopolitas, não há pai-nossos ou ave-marias para ninguém. Só divãs. O paciente entra, confessa os seus "pecados" aos clérigos seculares e, com alguma sorte, encontra redenção para si próprio. Simplifico? Claro que simplifico. Pior: deturpo sem um pingo de vergonha. Qualquer leitor de Freud, o patrono da "ciência" e um pessimista inestimável, sabe que a psicanálise não procura salvar os homens. Desde logo porque, seguindo ainda o doutor Sigmund, os homens não têm salvação.

O que resta? Apaziguamento. Reconciliação. Um programa mais modesto. O que não significa que não existam confessionários modernos. Existem. Mas eles não estão nos divãs urbanos onde os urbanos desfiam o seu rosário. Os confessionários estão na televisão. Todas as semanas, os mais notáveis infelizes surgem em grande plano para partilharem com o mundo as sujidades mais íntimas, os horrores mais privados. Como nos divãs da psicanálise? Exato.

Mas, ao contrário do que sucede nos divãs, os infelizes não procuram apenas apaziguamento ou reconciliação. Eles querem mais. Eles desejam perdão. E, na ausência de um Deus superior que os redima ou ame incondicionalmente, sobram as audiências. Quando a audiência aplaude, o infeliz sabe que o perdão existe. E a audiência aplaudiu David Letterman. Eu vi. Uns dias atrás, quando assistia ao "Late Show", Letterman surgiu em tom grave para confessar pecadilhos graves. Nas palavras do próprio, ele dormira com empregadas do "staff" do programa.

Repetidamente. Ao longo de anos e anos e anos. A audiência ria do monólogo, pensando que o monólogo era piada. Não era. Chantageado por um produtor da CBS, Letterman contava a verdade.

A primeira leitura parece simples: a melhor forma de terminar com a chantagem é revelá-la. Letterman foi perfeito na execução, desarmando assim o criminoso que exigia US$ 2 milhões para não tornar públicas as intimidades sexo-laborais de Letterman. O criminoso foi preso e aguarda julgamento.

Mas existe uma segunda leitura, que se resume na pergunta: por que expor uma confissão que, no limite, apenas interessaria à sra. Letterman? Mais: se a intenção de Letterman era expor o criminoso pela revelação da chantagem, não seria mais edificante contar a história à polícia e esperar que a polícia fizesse o seu trabalho? O resultado não teria sido igual, com vantagens para a dignidade pessoal de Letterman?

Dúvidas sem sentido: ao confessar a sua vida íntima na televisão, Letterman não se limitou a desmontar uma conspiração contra ele. Ironicamente, Letterman fez o que fazem os seus convidados: procurou nas audiências uma forma de reconhecimento e perdão. Com sucesso. Nessa mesma noite, ao presenciar o monólogo de Letterman, tive a desagradável sensação de ser um voyeur que assiste a um suicídio ao vivo. Como dizia o impagável H.L. Mencken, os americanos perdoam tudo, exceto a evidência de que alguém, algures, se diverte mais do que a média.

Erro meu. Nos dias seguintes ao número, os jornais foram benévolos com Letterman. O público também. De acordo com a opinião pública ou publicada, as confissões de Letterman foram "corajosas". E, como sucede nos processos de expiação, a honestidade do apresentador só serviu para o tornar mais "humano".

Eu não sei se Letterman ficou mais "humano". Mas sei que, nas aparições televisivas seguintes, havia nele a leveza própria dos indultados: a leveza de quem se liberta de um fardo depois da ovação anônima e coletiva.

Voltamos ao início: a psicanálise substituiu o confessionário? Longe disso. O divã pode ter relembrado os conflitos essenciais que existem nos homens. Mas só a televisão, na sua vulgaridade exibicionista, consegue dissipá-los pelo julgamento efusivo das massas.

Houvesse David Letterman nas civilizações antigas e, imagino, Édipo, sentado no sofá, confessando aos tebanos os seus dilemas: "Sim, gente, matei o meu pai, comi a minha mãe. Mas será que devo sofrer por causa disso?" Um banho de aplausos teria salvo o jovem rei.

jpcoutinho@folha.com.br

A vovó das Havaianas

A vovó das Havaianas

“Palmas para a agência;

um baile nos chatos contra

a autorregulação em propaganda”

LUIZ FELIPE PONDÉ, Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 05 out. 2009

CARA LEITORA , você fala de sexo com sua avó? Se ela falasse com você sobre que tipo de cara é bom pra você ir para a cama, você ficaria à vontade? Ou do alto de seus 20 anos e do blábláblá sobre sua geração ser "sexualmente mais emancipada", você ficaria vermelha e, num reflexo ancestral, fecharia as pernas de vergonha?

Pesquisas consideram as mulheres como índice significativo em termos de "progresso" nos comportamentos. Mulheres que transam fácil e falam disso com desenvoltura, isso seria indicação de "sociedades mais avançadas". Ainda que eu, como a cara leitora já sabe, não acredite muito nesse blábláblá de sociedade mais avançada. Africanas transam muito e a África está longe de ser avançada.

Por que faço esta pergunta indiscreta? Perguntas sobre sexo são difíceis porque se mente muito nesse assunto. Não acredito que hoje se faça mais e melhor sexo do que se fazia antes. A dita revolução sexual é puro marketing de comportamento. Serve pra produzir comportamentos superficiais que vendem coisas relacionadas ao sonho de consumo sexual. No íntimo, a maioria continua insegura, solitária e mal resolvida, só que agora sabe falar bonito sobre a tal liberação sexual.

Em setembro, estreou um comercial de um modelo de Havaianas onde uma jovem conversa com sua avó em um restaurante. Sua avó reclama de suas sandálias num local chique como o que elas estavam. Ela responde algo do tipo "deixe de ser antiga vovó". Entra um cara famoso e bonito no restaurante e elas olham.

A vovó diz pra neta que aquele é o tipo de cara que ela deveria arranjar. A neta responde que casar com gente famosa não é bom. Aí vem o tiro da vovó, quando ela diz mais ou menos assim: "Estou falando de sexo e não de casamento menina!".

Após reclamações do "público sensível", a agência de publicidade criadora do comercial colocou outro filme no ar, em que a atriz que faz a vovó, com um laptop no colo, faz referência explícita às reclamações e diz que a agência decidiu fazer esta segunda versão (que não encobre, e mais do que isso, assume o mal-estar causado pela primeira) em respeito aos ofendidos, mas que, ao mesmo tempo, mantém a primeira na internet em respeito aos que gostaram da "versão maldita". E ainda dá um olé: "Depois digam que não sou moderninha", e acrescenta "isso não é muito democrático?"

Palmas para a agência e para o produto. Um baile nos chatos que não reconhecem a importância da autorregulação em publicidade e querem legislar sobre como as pessoas lidam cotidianamente com a banalidade e a falta de sentido da vida miúda. O problema da repressão à publicidade é que ela pode facilmente criar uma propaganda "frouxa" que só diz o que os chatos acham que pode ser dito. Um chato é uma pessoa que normalmente não tem muita criatividade e atrapalha quem tem. Não há como ser criativo sem correr riscos na vida.

Entretanto, ainda que os envolvidos na criação do comercial tenham se saído muito bem dando uma lição de autorregulação e de como se deve agir numa sociedade difícil como a nossa, sem desistir da ideia "reprimida" pela hipocrisia do público ofendido, esse fato revela mais do que a vitória da criatividade sobre a repressão burra. O fato revela como somos todos reféns do que pessoas banais pensam, em seus apartamentos de classe média.

A ideia de que o público seja mera vítima na sociedade de consumo conta apenas parte da história desta sociedade de consumo. E a fala da vovó, "isso não é muito democrático?", revela exatamente uma das agruras da democracia, sistema necessariamente aberto a estupidez pública. O consumo pode ser de fato uma ferramenta de enorme poder nas mãos do cidadão-consumidor.

Esse "case" Havaianas revela a inteligência adaptativa da propaganda e como ela é uma fronteira na sociologia contemporânea. Uma personagem vovó brinca com o senso comum de que jovens "estão adiante de seu tempo" -uma bobagem que só tem valor quando utilizada pra vender alguma coisa. Jovens são "conservadores" com tudo o que dão valor e "progressistas" com tudo o que não dão valor, assim como todos os mortais. O personagem jovem como agente de mudança é um mito.

Fora o mito, são repetidores de (novos) preconceitos, (novas) fofocas e (novas) repressões em meio às (velhas) baladas. Vou sair e comprar uma Havaianas dessas pra minha filha de 17 anos. Mesmo se for tudo uma grande criação de marketing, ainda assim, um show de bola.

ponde.folha@uol.com.br