terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ancestralidade

Ancestralidade

 “Um judeu ateu é sempre um drama

maior do que qualquer ateu,

porque se assemelha à agonia de um vulcão”

LUIZ FELIPE PONDÉ

UM HOMEM deve reconhecer seus ancestrais. Existem várias formas de ancestralidade. Nossos autores prediletos são nossos patriarcas.

O primeiro texto que me marcou foi a Bíblia. Abraão e sua solidão diante de um Deus que armou sua tenda no deserto me deram um senso estético que nunca perdi. Seus profetas, num combate contínuo contra a estupidez do povo, fizeram de mim um cético com relação às virtudes populares.

Na medicina, Freud foi um encontro definitivo: o homem é um barco à deriva num mar de pulsões autodestrutivas. Vive como pode num mundo onde sua felicidade não parece fazer parte dos planos do Criador.

O Deus do ateu Freud é arrasador. Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão.

Já na filosofia, o viés trágico se impôs com a descoberta de Nietzsche e sua filosofia do martelo, cujo desprezo mortal pela covardia e pelo ressentimento se tornou em mim uma segunda natureza. Sua política, uma espécie de anarquismo aristocrático, é sempre perigosa para os amantes dos rebanhos.

O ceticismo dos gregos, de Montaigne e de David Hume abalou para sempre minha capacidade de fé na razão, não em Deus, como pensa a vã filosofia.

Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento.

Dostoiévski é sempre essencial. Para mim, uma de suas descobertas capitais é que, ao contrário do que diz nossa miserável ciência da autoestima, apenas quando encaramos o mal (a "sombra" de uma espécie abandonada ao próprio azar) em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia.

Entre Nietzsche e Dostoiévski, aprendi que o niilismo, "esse incômodo convidado para o jantar", veio pra ficar e é apenas diante dele que vale a pena exercer a filosofia.

E o judeu Rosenzweig? Definitivo para quem pressente que a metafísica nada mais é do que pensamento mágico a serviço do medo da morte. E que não é a esperança mágica que deve nos guiar, mas a percepção de si mesmo como milagre em meio ao pó que em nós estremece. Rosenzweig pensa como o homem bíblico.

Quando "decidi" que a academia era pequena sem a mídia, os "jornalistas filósofos" passaram a marcar meu horizonte profissional. Otto Maria Carpeaux descreveu a imagem máxima da relação entre espírito e corpo: quando o primeiro se levanta, o segundo se põe de joelhos.

Nelson Rodrigues, que estava certo em tudo que falava, escrevendo uma obra entre Santo Agostinho, Dostoiévski e Freud, iluminou um fato consumado: se o mineiro for solidário apenas no câncer, então tudo é permitido.

Paulo Francis, uma eterna falta entre nós, percebeu que o medo e a mentira pautariam a vida intelectual futura e que o "bem político" seria a nova face da estupidez do pensamento público.

E finalmente a praga da "fé política". Contra essa, Edmund Burke e Tocqueville são bálsamos essenciais. Tocqueville, principal referência para entendermos a democracia, nos alertou para a natural vocação que esta tem para uma nova forma de tirania, a tirania da maioria. Antes de tudo, a democracia fez os "idiotas" (expressão rodriguiana) descobrirem que são maioria.

Burke nos lembrou, contra os que "amam a moda", que a sociedade é uma comunidade moral de almas, que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. Para Burke, é apenas neste arco de ancestralidade que o homem se faz homem, contra a banalidade do presente que nos assola.

Enfim, quem conhece sua ancestralidade, mesmo quando caminhando no vale das sombras, nunca está só.

ponde.folha@uol.com.br   

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Frase do ano....

"Não nos tratem como artistas. Quero que continue me tratando como um trabalhador, como um mineiro", Mario Sepúlveda, o segundo mineiro a ser resgatado.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Deixem o palhaço legislar

Deixem o palhaço legislar

Sérgio Malbergier

Tiririca é o novo herói nacional. A expressão mais raivosa e consistente do voto de protesto contra o corpo político brasileiro. Que a Justiça esteja já acionada para cassá-lo por suposto analfabetismo revela como o palhaço/deputado federal mais votado do país ameaça o sistema. O deboche e o humor são armas poderosas.

E que boa piada: uma Justiça sem dentes para barrar os eternos abutres da política afia suas garras diante do palhaço nordestino que, como nosso consagrado presidente, veio de muito baixo na pirâmide social para afirmar-se de forma retumbante em São Paulo.

Quem conhece e representa melhor o Brasil profundo do que o palhaço Tiririca hoje na política? Só Lula. Que elitismo suspeito esse preconceito contra o suposto analfabetismo do palhaço. Quem melhor que um analfabeto ou semi-analfabeto para representar os milhões de mal educados do país? Analfabeto não é incapaz nem criminoso para ter direitos políticos limitados. Muito pelo contrário, é vítima da má gestão desta obrigação pública mais básica que é a educação.

Se a Wikipédia está certa, o palhaço Tiririca começou a vida no circo aos 8 anos, em Itapipoca, no Ceará, e estourou regionalmente com a música "Florentina", que a Sony Music tornou megahit nacional em 1996.

Ele já teve problemas com a lei naquela época por causa da música "Veja os Cabelos Dela", que lhe rendeu uma acusação de racismo, da qual foi inocentado. A letra, puro Tiririca, dizia: "Veja, veja, veja, veja, veja os cabelos dela/Parece bombril, de ariá panela/Parece bombril, de ariá panela/Quando ela passa, me chama atenção/Mas os seus cabelos, não tem jeito não/A sua caatinga quase me desmaiou/Olha eu não aguento, é grande o seu fedor".

Uau!

A singeleza sempre foi seu atributo. Os jingles e os spots de sua campanha, feitos de forma despretensiosa por amigos humoristas, devem ser estudados pelos caríssimos marqueteiros de plantão. São a maior lição de marketing político desta campanha.

Dançando daquele jeito nordestino, o palhaço canta meio preguiçoso: "O que é que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto", ou "Pior do que tá não fica, vote Tiririca". Bingo!

Os mais de 1,3 milhão de votos que Tiririca teve em São Paulo não podem ser desclassificados por essa Justiça incapaz de julgar os que deveriam ser julgados e que ainda por cima pode barrar a melhor notícia desta eleição: a lei da ficha limpa.

Deixem Tiririca legislar. Queremos vê-lo dançando no tapete do Congresso e discursando daquele jeito engraçado no microfone do plenário. Estará, legitimamente, representando muita gente. Dos que enfrentam as mesmas dificuldades e preconceitos que ele enfrentou e enfrenta aos que acham que a política brasileira é uma grande piada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

As minhas traições

As minhas traições

“Liguei o Kindle. Com enfado, li as instruções. Experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?”

JOÃO PEREIRA COUTINHO

SOU UM traidor. Sou um hipócrita. Não tenho defesa. Nem perdão. Mas guardar segredo é pior que partilhá-lo. Partilho.

Imagine o leitor: eu, num círculo de amigos literatos, discutindo as últimas novidades da "rentrée". Subitamente, alguém fala sobre o futuro do livro. E elogia as qualidades do livro eletrônico.

É nesse preciso momento que eu faço cara de nojo, limpo o suor da testa com meu lenço de renda e disparo um "jamais!" que faz tremer o salão. O meu mundo é o mundo de Gutenberg: o mundo arcaico do papel e da tinta, não de "pixels", "bits" e outras barbaridades linguísticas. Livro eletrônico? É como fazer amor com uma boneca insuflável.

"Um livro é um livro", disparava eu, em conhecido clichê. Nada substitui o objeto físico que transportamos, dobramos, sublinhamos. Tocamos. Cheiramos. Por vezes, rasgamos ou queimamos. A ideia de ler um romance, uma biografia, um mero ensaio em suporte eletrónico chegava para cobrir a minha costela conservadora de um horror herético. Nem morto.

Mas então aconteceu: uma oferta familiar em dia de aniversário. Bateram à porta. Entregaram a encomenda. Era o famoso Kindle da Amazon, com capa de pele, bonitinho. Perigosamente bonitinho.

Farejei o bicho com desconfiança primitiva. Cocei o crânio com pasmo neandertal e senti-me um dos macacos de Stanley Kubrick, na sequência inicial de "2001 - Uma Odisseia no Espaço".

Como se um objeto estranho tivesse vindo diretamente do futuro. Por milagre não quebrei o aparelho com a força das minhas ossadas. Um livro eletrônico era aquilo? "Jamais, jamais", gritava a minha pobre consciência.

Os dias passaram. O objeto, a um canto, mendigava a minha atenção sempre que passava por ele. "Jamais, jamais", repetia ainda. E sempre com menor convicção.

Uma tarde, aproximei-me. Tentei ignorá-lo, lendo ostensivamente as "Páginas Amarelas". O objeto soltou um suspiro de tristeza, quem sabe de abandono. E eu, com caridade cristã, decidi dedicar-lhe dois minutos de atenção, não mais.

Liguei o Kindle. Com enfado, fui lendo as instruções. E, por cada página lida, a pergunta mefistofélica: experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?

Experimentei. Diretamente do site da Amazon, fui importando livros grátis. Os clássicos gregos. Os clássicos romanos. Algum Maquiavel, algum Hobbes, algum Swift. Os pensamentos de Pascal. Uma edição completa das peças do bardo. Tudo a preço zero. Em 60 segundos, a Biblioteca de Alexandria viajava até minha casa.

O meu entusiasmo começava a ser perigoso. Embaraçoso. Numa tarde, descarregara 50 livros. Outros 50 vinham a caminho.

E, pior, já começara a ler um: a autobiografia de Tony Blair, que comprei a preço reduzido. Lia. Inacreditavelmente, sublinhava. Mais inacreditavelmente ainda, escrevia notas. Aquilo não era um livro. Era melhor que um livro. Que foi mesmo que eu disse?

Hoje, levo uma vida dupla. Em público, passeio os meus grossos volumes da "Enciclopédia Britânica", em gesto de resistência ao mundo virtual. Finjo. Quando me falam nas virtudes do Kindle, ou do e-book, as minhas gargalhadas são jocosas, ofensivas, delirantes.

Mas são também forçadas e encenadas: chego em casa e chamo logo pelo meu Kindle como quem chama pelo gato. E ele vem, pronto para miar centenas e centenas de obras-primas. Se um dia a casa arder e eu estiver em estado delirante, o leitor já sabe o que significa "Salvem o gato! Salvem o gato!".

Moral da história? A internet foi a primeira grande revolução da minha existência literária. Mas o livro eletrônico será a segunda ao introduzir a mais importante divisão intelectual da vida.

Haverá sempre livros que desejarei ter; e "ter" no sentido tangível do verbo: como objetos físicos, artísticos, existenciais. Nesse sentido, as livrarias continuarão a ser os únicos templos laicos que frequento com religioso fervor.

Mas depois existirão os livros que quero ler. Simplesmente ler. Não amanhã, ou depois, ou um dia qualquer. Mas hoje. Agora. Já. O sonho de qualquer leitor curioso, insaciável, ditatorial.

Regresso ao início: sou um traidor. E no dia em que os meus amigos literatos, cansados de minhas mentiras, vierem buscar-me para a fogueira, nada peço em minha defesa. Espero apenas que poupem o gato.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Desmoralização

Desmoralização

por Marcelo Rubens Paiva

O fenômeno TIRIRICA agora incomoda.

Depois que se revelou que ele está em primeiro na pesquisa Ibope para Deputado Federal de SP, com quase 1 milhão de votos.

Seu lema de campanha é: “Pior que está, não vai ficar.”

No horário eleitoral da TV, ele aparece como se atuasse num quadro do ZORRA TOTAL:

“Minha mãe vai votar em mim, meu pai vai votar em mim, até a minha sogra!”

Em ainda termina com um bordão, típico dos humoristas de plantão:

“É que sou bunitinho.”

Sua popularidade tem cara de voto de protesto.

Como já aconteceu com ENEAS, CLODOVIL e tantos outros.

O problema é que, com isso, ele arrasta 5 ou mais candidatos da sua legenda para o Congresso.

Como por exemplo VALDEMAR COSTA NETO, um dos pivôs do escândalo do Mensalão, que renunciou para não ser cassado, e que no ano passado teve seu nome citado nas investigações Operação Castelo de Areia, que apurou crimes envolvendo executivos do Grupo Camargo Correa.

Acusam TITIRICA de desmoralizar a democracia brasileira.

PAULO SKAF entra com representação contra ele no TSE.

O palhaço tem todo o direito de ser candidato.

Sua campanha segue o seu estilo.

E, além disso, não é o horário eleitoral que por vezes tem a cara do ZORRA TOTAL?

Deve-se perguntar ao 1 milhão de eleitores por que desmoralizam a democracia.

Porque Zé Dirceu acaba de declarar que no Brasil tem liberdade de expressão em excesso?

Porque Collor sobe no mesmo palanque de Lula? Ou porque Maluf, o segundo na pesquisa Ibope para Deputado Federal de SP, só não vai preso por causa da idade?

Porque o ESTADÃO está há mais de 400 dias sob censura?

Censura imposta pelo filho do presidente do Senado?

Presidente que, mesmo depois do escândalo de desvio de dinheiro de seus subalternos, continua presidindo-o?

Ou porque Lula disse, na semana passada, que a denúncia da quebra de sigilo da Receita é desespero de campanha do adversário, e na semana seguinte, ontem, mandou seu ministro, Guido Mantega, regularizar o acesso aos dados da Receita?

Não é TIRIRICA quem desmoraliza a democracia.

Ela já está.

E parte do eleitorado manda sinais claros.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O animal amedrontado

O animal amedrontado

JOÃO PEREIRA COUTINHO

QUE SE PASSA com a América? No nono aniversário do 11 de Setembro não houve a paz de outros tempos. Houve ódio e provocações.

Começou com o centro islâmico que um imã pretende construir a duas quadras do Marco Zero. Parece falta de tato? É falta de tato. Se o 11 de Setembro foi provocado pelo terror islamita (e não por terroristas judeus ou cristãos), mandava o bom senso que se evitassem "construções controversas" em lugares que ainda não cicatrizaram de vez.

Mas a mesquita de Nova York foi apenas cabeça de cartaz no carnaval dos insultos. Pelo meio, existiu ainda um pastor fundamentalista, disposto a queimar o Alcorão.

O problema, note-se, não está na queima do Alcorão. Cada um queima o que entende: o Alcorão, a Bíblia, a Torá e, por favor, qualquer livro de Dan Brown.

O problema esteve na forma como um episódio bizarro, que nasceu em terra perdida da Flórida, foi usado e abusado por fanáticos diversos: contra o pastor, a favor do pastor, quando, no mundo da racionalidade, o pastor deveria ter sido ignorado em seus delírios.

Especialistas diversos garantem que o clima de guerrilha não é para levar a sério: Obama vai a votos nas eleições legislativas de novembro; e os republicanos, que já cheiram a vitória, pretendem radicalizar o discurso para obter um massacre.

Não estou convencido. E, em matéria política, sempre que existem dúvidas, melhor perguntar diretamente ao Mestre. O Mestre é Nicolau Maquiavel e, sim, eu sei que o nome do florentino tornou-se pior que a peste. Virou adjetivo. Maligno adjetivo.

Lamento. Maquiavel é um nome central, não apenas para entender a história do pensamento político, mas o papel do líder numa comunidade. E aqui Maquiavel não tem par: se o príncipe deseja uma sociedade harmoniosa e segura, ele não deve preocupar-se em ser amado. Deve preocupar-se em ser temido.

Esse conceito sempre alimentou polêmicas infindas e foi Leo Strauss quem vislumbrou no aforismo um "manual para gangstêres".

Strauss estava errado. Porque o príncipe não deve apenas ser temido pelos seus; ele deve ser temido pelos outros. Pelas outras Repúblicas que devem pensar duas vezes antes de alimentarem atos de hostilidade contra a nossa.

Maquiavel revelava algo de profundo sobre a psicologia das massas: a ideia de que elas têm no príncipe a primeira garantia da sua própria segurança. Paradoxalmente, só quando é temido o príncipe pode ser amado.

Barack Obama nunca leu Maquiavel. Obama quer ser amado, não temido. E não apenas amado pelos americanos, o que seria compreensível. Obama quer ser amado por todo mundo, inclusive pelos inimigos tradicionais da América.

Não foi por acaso que o seu consulado começou com declarações de amor: ao Islã, ao regime iraniano e à "nobreza moral" dos seus aiatolás.

Mas Obama não fez apenas declarações de amor. Ele saiu do Iraque sem vitória tangível. Ele retirará do Afeganistão, em data já estabelecida e em condições que se adivinham como humilhantes.

A retórica odiosa que surgiu nove anos depois do atentado de 11 de Setembro é o retrato de uma América com medo. E esse sentimento de insegurança é um produto direto de uma liderança política que projeta os sinais errados: sobre os americanos e sobre o mundo.

Sim, podemos escrever todas os insultos contra o abominável sr. Bush. E Bush, verdade seja dita, cometeu erros grotescos na sua lunática cruzada para "democratizar" o Oriente Médio: destruir o Iraque sunita e permitir que o Irã emergisse como potência regional incontestada é o maior deles.

Mas os anos de Bush, para o americano médio, resumem-se numa palavra: segurança. Depois do atentado de 11 de Setembro, Bush soube preservar a integridade física da República contra qualquer ameaça externa. E, internacionalmente, só por piada podemos dizer que o velho George desejava ser amado.

Obama é um anti-Bush. Há quem festeje com alívio o repúdio da herança. Mas, para o americano médio, esse repúdio trouxe rendição no exterior; e duas tentativas sérias de terrorismo no interior das fronteiras: um avião sobre Detroit e um carro-bomba na Times Square, no coração de Manhattan.

Os Estados Unidos de hoje são um animal amedrontado. E Maquiavel avisou, cinco séculos atrás, que não existe coisa mais perigosa do que um animal poderoso com medo das sombras.

jpcoutinho@folha.com.br  

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

'Muito político faz chorar com a mesma matéria-prima que o humor faz rir', diz Danilo Gentili

'Muito político faz chorar com a mesma matéria-prima que o humor faz rir', diz Danilo Gentili

DANILO GENTILI

ESPECIAL PARA A FOLHA

O Tribunal Superior Eleitoral está preocupado, pois entendeu que satirizar um candidato na TV gera desigualdade no processo eleitoral.

Ufa! Agora os indefesos candidatos já podem respirar aliviados e se concentrarem na campanha onde, na mesma TV, durante o horário eleitoral gratuito, um terá 10 minutos a mais que o outro para expor suas ideias. Isso sim é democrático, igualitário e... Droga... Aqui caberia uma piada, mas não posso fazê-la.

Agora é contra a lei ridicularizar o candidato. Então, lembre-se: por mais ridículo que ele seja, guarde segredo.

Exemplo: Ainda que Collor ridiculamente ligue pra casa de um jornalista o ameaçando de agressão, por mais tentador que seja não mire sua lupa cômica nisso. Ele é candidato, e candidato aqui não fica exposto, fica blindado.

O TSE não é o feirante japonês que deixa a mercadoria exposta para que possamos apalpar e cheirar antes de levar. Ele é o coreano do Paraguai que a deixa na vitrine. Você não toca, não cheira. Apenas paga. Quando chegar em casa, reze antes de abrir a caixa.

E a discussão se essa censura é ou não constitucional? Tenho fé que em breve teremos uma resposta sensata. Logo após eles chegarem à conclusão de outra discussão que há anos os perturbam: afinal, o fogo é ou não quente?

O humorista pega a verdade e a exagera. Ao contrário do político, a verdade é imprescindível para o sucesso de seu trabalho. E esse é o problema. Num País onde culturalmente é bonito lucrar com a mentira, a verdade não diverte. Assusta. Indigna.

Onde já se viu um coronel permitir que manguem de sua cara em sua província? Então censuremos! Por isso, recentemente, tivemos imprensa brasileira censurada, jornalista estrangeiro expulso, repórter agredida e, agora, humorista amordaçado.

É melhor que o Estado defina o que pode ou não ser passado para o público, assim o público continua passando o que interessa para o Estado.

Aristófanes, pai da comédia antiga, exercia abertamente sua função de fazer o público rir, criticando instituições políticas e seus representantes. Se fosse brasileiro, hoje, Aristófanes não poderia realizar seu ofício. A visão democrática do TSE está mais atrasada que a da Grécia de 400 A.C.

Henri Bergson, filósofo francês, afirmou que "não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Comicidade dirige-se à inteligência pura". Filosoficamente, o pessoal do TSE não é humano nem inteligente o bastante para compreender o que foi escrito há quase um século atrás.

Freud, pai da psicanálise, entendeu que "rir estrondosamente, satirizar personagens e acontecimentos, fazem parte da nossa experiência cotidiana e é crucial pra nossa condição humana".

Um século depois, temos uma lei que impede a manifestação do cômico num evento tão importante para sociedade como a eleição. Psicossocialmente falando, a democracia brasileira encontra-se retardada.

Estudos observam que primatas riem de boca aberta para manifestar raiva e hostilidade. A evolução preservou o instinto do riso no ser humano para que fosse a válvula de escape substituta à agressão física. A lei eleitoral quer abafar o instinto compulsivo da piada e do riso (e sabe lá Deus aonde isso vai pode explodir). Biologicamente, eles estão forçando um passo atrás na escala evolutiva.

Enquanto o Brasil se orgulha de dialogar com países desenvolvidos o suficiente para que nenhuma forma de comunicação seja restrita, a gente fica aqui rindo das imitações de Silvio Santos, porque é o que se pode fazer no momento. Claro, enquanto o Silvio Santos não for candidato.

Muito político faz chorar. Com a mesma matéria-prima o humorista faz rir. Para o TSE a segunda opção é uma ameaça e precisa ser contida.

A liberdade de expressão aqui tem o mesmo conceito de liberdade do Zoológico. Faça e fale o que quiser. Você é livre! Desde que não passe os limites da sua jaula.

Não me multem, por favor. Isso não foi uma piada.

DANILO GENTILI é comediante stand-up e repórter do CQC da Band

terça-feira, 10 de agosto de 2010

As bombas desejam explodir

As bombas desejam explodir

65 anos depois de Hiroshima, volta o perigo atômico

ARNALDO JABOR

Há 65 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Todo ano me repito e escrevo artigos parecidos sobre a bomba nessas datas, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade, não, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento.

Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar e além de Obama. Do outro, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.

Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico, em que já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações", sim (sei do simplismo da análise do Huntington em 93, mas estamos diante do simplismo da realidade), formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar. Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte, do Paquistão, Índia, Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a hiperdireita de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"?

"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.

Tudo leva a crer que algo terrível acontecerá. A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a invasão do Iraque. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.

Estamos às vésperas de uma brutal mudança histórica. Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Surge a fome por algo que ponha fim ao "incontrolável", a coisa que o Ocidente mais odeia. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova.

Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima. Lá e em Nagasaki, três dias depois, inaugurou-se a "guerra preventina" de hoje. Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, motivado ainda por contradições do século XIX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.

Auschwitz e Treblinka eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.

O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".

Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes".

A bomba agiu como um detergente, um mata-baratas, a guerra, como "limpeza", o típico viés americano de tudo resolver, rápida e implacável... E continua cozinhando na impaciência dos generais israelenses e dos falcões do Pentágono.

A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.

Uma das razões reais era que o presidente e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!..." O clima era lúdico e alucinado... o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio, exterminando 40 mil crianças em 15 segundos.

Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som e luz, uma superprodução em cores do novo Império.

O Holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor da vitória. Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.

Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter os fatos. Vale lembrar o poema de William Yeats, "The Second Coming", de 1919, diante do horror da Primeira Guerra...

"Tudo se desmancha no ar. O centro não segura/ a imensa anarquia solta sobre o mundo./ Terrível maré de sangue invade tudo e/ as cerimônias da inocência são afogadas./ Os homens melhores não têm convicção;/ e os piores estão tomados pela intensa paixão do mal.

(...)

Alguma revelação vem por aí;/ sem dúvida, é a Segunda Vinda.

(...)

Voltou a escuridão; e eu vejo que 20 séculos de sono de pedra/ Querem se vingar do pesadelo que lhes trouxe o berço de um presépio./ A hora chegou por fim;/ Que monstruosa fera se arrasta para Belém para renascer?/ É isso aí, bichos... Os grandes poetas são profetas".

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Desconversão Humana

A Desconversão Humana

Fonte: Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo, 31 jul. 2010

Tentou a noite toda escrever algo. A tela em branco imprimia a sua crise duradoura. Um escritor sem ideias. Café, cigarro, doses de uísque, nada serviram.

Tentara já vinho, conhaque, charuto, macrobiótica. Há meses, o bloqueio criativo apareceu. Noites em busca de inspiração. Precisava escrever, era o seu ganha-pão, seu dom, sua vida, se dedicara anos. Nada.

Deixou o computador ligado e foi dormir.

O que leva um escritor a parar de escrever? Por que Rimbaud, depois de criar a poesia moderna, sumiu? E Salinger, que escreveu apenas quatro livros? Autoexigência? Atração pelo nada?

"Escrever também é não falar, é se calar, uivar sem ruído", dizia Marguerite Duras.

Síndrome de Bartleby é a paralisia que atormenta os escritores. Inspirada no personagem de Melville (Moby Dick), copista de um cartório que fica na sua mesa sem fazer absolutamente nada, sem ir a lugar algum. Nem mesmo se alimentava.

No dia seguinte, lá estava a frase metafísica na tela do seu computador: "O tempo só corre para quem se preocupa com a perda dele." Quem digitou?

Heráclito? Sim, lembrava os pensamentos circulares do pré-socrático. Será que digitara num delírio torturado pelo sono e desespero? Surto de sonambulismo?

Sua diarista digitou? Sua diarista não aparecia há dias.

Olhou para o lado e viu seu gato vira-lata deitado no canto da mesa, com as orelhas em pé, encarando-o de relance. Não é possível!

O gato costumava passear pela mesa sempre que tentava escrever. Por vezes ficava em frente do monitor, tapando a visão. Às vezes brincava com o cursor do mouse. Em outras passeava sobre o teclado. Suas patas apertavam e digitavam apenas frases como "procslxkdjshsdh gfgfggf czvc".

Foi você? Ele miou de volta.

Repetiu a experiência à noite. Deixou o computador ligado, fechou a porta do quarto, deitou-se. Não conseguia dormir. Tentava escutar os passos do gato pela casa. Mas o silêncio era o maior ruído.

Na manhã seguinte, outra frase digitada: "Esperar é também realizar."

Olhou para o gato. Parecia dormir profundamente. Sua respiração, ofegante. O batimento cardíaco dos gatos é superior. Ou estava exausto?

Mas para quem contar que desconfiava que seu gato mandava mensagens quando ele ia dormir? Não podia para o seu editor, pois fugia dele, que cobrava um romance cujo adiantamento já fora pago. Nem ao melhor amigo, que esperava há meses o prefácio não escrito de um livro quase no prelo.

Ninguém sabia da sua síndrome. Vivia o tormento inventando desculpas, "já estou terminando", "deu pau no computador e perdi tudo".

Esperava o milagre da criação, a voz de Deus ou do Diabo falando através dele, o despertar do inconsciente, emitindo sinais que chegariam aos seus dedos para movê-los em busca de uma história.

Fez as malas. Encheu a casa com potes de água e ração da melhor qualidade. Deixou o computador ligado. Escondeu os brinquedinhos do gato, para que não houvesse distração. Até limpou a mesa, para que seu suposto ghost writer felídeo tivesse a ordem necessária. Despediu-se com carinho. E foi para um flat pulguento do centro da cidade.

Passou quatro noites sem sair do quarto, fumando sem parar, ansioso pelo resultado da experiência. E preocupado. Seria seu gato um escritor que precisava da presença do dono para criar? Ou, como a maioria dos gênios, a paz, o silêncio e a solidão são o fogo que ferve as ideias e cozinha a arte?

Ao voltar para casa, encontrou-a toda revirada, resultado da solidão de um vira-lata carente: sofá arranhado, livros derrubados, papel higiênico desenrolado. Seu pequeno animal correu para saudá-lo, miou muito, trançou por suas pernas, saudoso.

Passo a passo, caminhou até a mesa de trabalho. Tela em branco. Apertou o Ctrl home. Mais de 78 páginas escritas em formato Word, letra areal, tamanho 12. A Desconversão Humana, chamava-se a obra. Que título pretensioso, pensou.

Riu sozinho. O que está acontecendo? Quem é você? Perguntou para o bichano que se acomodava no seu colo e ronronava.

Leu. Um tratado sobre a solidão e de como todas as possibilidades de busca pela fé e um sentido para a vida criaram um efeito contrário, tornando o homem isolado e inapto a conviver com a própria consciência.

Segundo o gato writer, a criação de uma moral, a absorção de deveres e tabus, embrulharam a nossa essência. "Deve-se viver o nada", escreveu.

Maravilhado, apesar de não ter bagagem para compreender tudo, enviou por email, sem nenhum comentário, apenas escrito "livro novo" no assunto, para o seu editor.

A resposta veio no dia seguinte: "Virou autor de autoajuda?" Que tosco e insensível editor. Que encaminhou para o selo deste gênero da editora, que aprovou o manuscrito, revisou e entregou para o Departamento de Marketing, que preparou o lançamento em quatro meses.

Resenhas? Apenas num jornal de bairro e numa revista literária cristã. Porém, pouco a pouco, o boca a boca interferiu no processo.

A Desconversão Humana em oito meses entrou para a lista de best-sellers, categoria não ficção. Em oito semanas, atingiu o topo da lista.

Seu telefone não parou mais. Queriam entrevistas, palestras, explicações. Editoras e agentes estrangeiros o procuraram. O livro foi traduzido e publicado em 65 países. Em todos eles, sucesso.

Logo começaram a surgir explicações e versões resumidas. Um escritor pilantra irlandês lançou Como Entender a Desconversão Passo a Passo. A editora propôs uma versão infantil ilustrada. Um poeta de Mato Grosso lançou O Bê-á-bá da Desconversão. Um indiano escreveu A Desconversão Tântrica. Um sueco, A Desconversão Líquida.

Sua vida não teve mais sossego. Por onde andava, tinha que dar autógrafos e tirar fotos em celulares.

Seu email estava entupido: pedidos de entrevistas, seminários e casamentos. Seus amigos literatos o ignoraram, dominados por preconceitos contra livros de sucesso. Familiares vieram pedir dinheiro emprestado.

Estressado, decidiu se isolar e mudar para uma praia deserta, para um bangalô sem luz elétrica, e viver recluso. Claro. Levou o gato com ele. Que nunca mais pôde escrever. Mas se esbaldou: natureza e peixes.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Amém e saravá meu padim

Amém e saravá meu padim

Fonte: Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo

A espiritualidade do brasileiro é intrincada. Muitas forças pairam sobre nós, combatem e seduzem a razão das nossas almas.

Aportou nas praias uma Companhia de Jesus, que chegou para catequizar os "selvagens", missão árdua que tirou o sono de Anchieta. Que depois de vestir os índios e fazê-los plantar, ajoelhar e rezar, descobriu que continuavam seguindo o próprio juízo.

Apenas para agradar aos colonizadores e pararem de apanhar obedeciam as regras daquele culto "exótico", organizado em torno de um pobre homem preso numa cruz.

Anchieta no fim da vida chegou a escrever que sua missão fracassara, e que só a ferro e brasa seria possível a conversão.

Vieram os africanos com um culto sofisticado, elaborado e orixás que remetem a arquétipos - milênios de lendas faladas em torno de fogueiras, capazes de definir detalhes da nossa psique.

Para aplacar o furor da Inquisição, candomblé virou umbanda, Orixás se transvestiram como santos, o sincretismo foi adotado em todas os cantos e terreiros.

Iemanjá mora no coração de cada brasileiro. Círio de Nazaré arrasta milhões em torno de uma corda. Padim Padre Cícero é celebrado de norte a sul. Uma iconografia própria se elevou.

Chegaram os italianos para tocar as plantações sem escravos e uma indústria que nascia. Na bagagem, manuais anarquistas e marxistas, um saudável paradoxo, já que conviveram intimamente com o poder na Igreja.

Meus avós italianos me assustavam quando cantavam, na mesa, ainda no primo piatto: "Avanti o popolo alla riscossa, bandiera rossa trionferà. Per gli sfruttati immensa schiera, la pura innanzi rossa bandiera, o proletari alla riscossa?" Pois terminavam pregando "Il santo papa sará inforcato!", enquanto eu era catequizado na escola.

Pobre Pio XII, papa frágil, complexo, carinha de santo, que teve uma relação controversa com o nazi-fascismo.

No mais, minha avó Olga contava que, quando pequena, fora assediada por um padre, que a sentava no colo com segundas intenções.

Para apimentar esta feijoada espiritual, cada brasileiro tem um signo e ascendente - a lua rege paralelamente -, um orixá, sua visão do Evangelho, a crença pessoal, aceitando ou não os mandos do Vaticano, eventualmente comparecendo a pajelanças ou a rituais criados pelos povos da floresta, como o Daime.

E se as ordens de cima são anacrônicas e proíbem o uso da camisinha, o casamento gay e o aborto, olhamos de lado.

Aqui nasceu a Teologia da Libertação, uma busca da essência do Cristianismo: luta contra a injustiça e pela igualdade social. Combatida por João Paulo II, aquele que querem transformar em santo, anticomunista ferrenho.

A religiosidade do brasileiro é tão complexa, única, independente e criativa, que fascinou de Lévi-Strauss, Darwin a Sartre.

E quando um gringo desembarca por essas terras, não está atrás apenas de Havaianas legítimas. Quer também vibrar com os tambores e a riqueza do nosso "paganismo".

domingo, 18 de julho de 2010

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sobre vacas, porcos e bolas...

Sobre vacas, porcos e bolas...

RUBEM ALVES

“Não é raro que um jogo de futebol termine

em tourada e que seja manifestação

de espírito de porco”

EU HAVIA acabado de me mudar de Minas para o Rio de Janeiro, no ano de 1945. Caipira, desconhecia as regras de sociabilidade da capital. Foi então que um colega do curso de admissão chegou-se a mim sorrindo e, num gesto de amizade, me disse: "Eu sou Flu. E você?"

Fiquei abobalhado. Ele era "Flu". "Flu" deveria ser uma coisa muito importante, ao ponto de ele me confessar ser "Flu". Mas eu não sabia o que era "Flu". Diante do meu silêncio ele se dirigiu a um outro colega e lhe disse a mesma coisa. "Eu sou Flu", ele repetiu. "Eu sou Mengo", o outro respondeu. Iniciavam-se assim as relações sociais, não com a troca de cartões de visita, mas trocando nomes de times. Eu não tinha nome a dizer. Portanto não existia...

Contaram-me de um palmeirense roxo que odiava o Corinthians. Já velho, na cama, aguardava o apito do Grande Juiz que o expulsaria de campo. Chamou o filho e com voz trêmula lhe disse: "Estou morrendo. Quero que você faça a minha última vontade. Vá lá no Corinthians e inscreva-me como torcedor".

O filho achou que o velho já estava tendo alucinações. Argumentou. Mas o pai foi irredutível. O filho fez, então, a vontade do pai. Voltou com a carteirinha de torcedor do Corinthians. O velho, vendo o seu rosto na carteirinha, sorriu um sorriso angelical e disse: "Oh, a suprema alegria de ver mais um corintiano morrer..." Ditas essas palavras, entregou a alma.

Sou indiferente ao futebol, exceto quando o Brasil está jogando. Essa indiferença tem sido a causa de muitos embaraços, e cheguei mesmo a levar esse problema à minha psicanalista.

"Por que é que todo mundo se entusiasma com futebol e eu não me entusiasmo?" Ela me sugeriu que deveria haver algum trauma infantil não resolvido no início dessa perturbação. Sugeriu-me entregar-me às associações livres da mesma forma como os urubus se deixam levar pelo vento. Voei. E eis que, de repente, uma cena esquecida me apareceu.

Era um campo de futebol de roça, um pastinho. Dois times estavam jogando. Meu irmão me levara até aquele lugar. Eu nada entendia do que estava acontecendo, com todos aqueles homens em calções correndo para chutar uma bola. Tudo ocorria sem maiores percalços quando, de repente, veio pela estrada de terra um cavaleiro conduzindo uma vaca.

A vaca, vendo aquele alvoroço, a bola que era chutada para lá e chutada para cá, resolveu entrar no jogo. Arremeteu contra a bola, de cabeça abaixada como os touros na arena.

Os jogadores e o juiz fugiram espavoridos. Muitos subiram em árvores. Eu, menino pequeno, não conseguiria subir numa. Meu irmão, para me salvar, arrastou-me para um chiqueiro cheio de porcos e colocou-me lá dentro.

A vaca, não contente em chifrar a bola, dispunha-se a chifrar tudo o que se movesse. Mas eu, dentro do chiqueiro, nada via, a não ser aqueles porcos peludos que grunhiam grunhidos que davam medo.

Minha analista, comovida com o meu relato, concluiu que minha indiferença ao futebol se devia a essa experiência em que o jogo aparece ligado a uma vaca desembestada e a porcos mal cheirosos.

Concordei. Minha primeira experiência com o futebol foi traumática: mistura de bola, vaca e porcos. E está certo: não é raro que uma partida termine em tourada e que seja manifestação de espírito de porco...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Relacionamento ideal?

Relacionamento ideal?

por Marcelo Rubens Paiva

Um quiosque vermelho, patrocinado por uma marca de cerveja.

Mesinha de plástico sem guarda-sol. Poucas pessoas.

Carioca não vai à praia quando os termômetros estão abaixo dos 20.

O paulistano lia um jornal da sua cidade, bebia um coco. Na mesa ao lado, ela se sentou, pediu caipirinha. Depois, pediu emprestado os cadernos já lidos. Era paranaense, mas assinava jornais paulistas. São melhores, justificou.

A primeira afinidade entre eles.

A segunda?

Ambos na cidade praiana, hospedados em hoteis em frente à orla; duas torres vizinhas.

Fugiram do inverno e da rotina de suas cidades. Fora de temporada. Nem era feriado.

No papo, as diferenças.

Ele, recém-separado.

Ela, casada há 15 anos, sem filhos, cujo marido ficara em Curitiba.

Ele descrente das relações duradouras dos dias de hoje.

Ela era a prova de que, sim, há esperança.

Ele enumerou suas separações. E como há sempre uma barreira intransponível, que bloqueia a felicidade de um casal, defeitos que aprisionam o amor.

Ela discordou, mas escutou.

Citou a ex-alcoólatra com quem foi casado. Tudo era perfeito, mas tinha esta doença presente. Impossível lidar com a vodca no café da manhã e as posteriores.

Depois, citou a relação cujo tesão acabara em dois anos. Como manter um casamento com a frieza e o sintoma de uma dúbia amizade?

Citou o casamento com a ciumenta obsessiva. Ciúmes de amigos, família, vizinhos, controladora desesperada, que invadia e-mails, extratos bancários, revistava carteiras, sempre à procura de pistas. Não deu.

E lembrou a bipolar, que acordava de um jeito, tomava café-da-manhã de outro, e não se sabia como chegaria em casa depois do expediente.

Concluiu.

Sempre haverá um ponto limite. Qual o segredo, perguntou, para que um casamento não tenha uma barreira intransponível, como o seu.

Ela não soube responder. Nem formular a receita. Pois a vida toda esteve casada apenas com um cara, que amava acima de tudo.

Conversavam como amigos de longa data. Riram das trapalhadas amorosas dele. Trocaram celulares, pois, sozinhos na cidade, combinariam programas, um teatro quem sabe…

Almoçaram no restaurante do hotel dela, com vista para o mar. Subiram até o quarto dela, também com vista para o mar. Ele queria checar se era melhor que o dele, para na próxima vez se hospedar lá.

À noite, foram juntos ao teatro a três quadras. Uma comédia sobre mulheres neuróticas. Rasa, mas engraçada.

Embebedaram-se no botequim da esquina. Ambos pediram a mesma caipirinha de lima com vodca sem açúcar. Ambos de deliciaram pelos petiscos tão famosos dos bares cariocas.

Aquela amizade inesperada empolgou. Que sorte, o encontro casual.

Ela ria da vida amorosa confusa e instável dele. Ele via nela a chance de desabafar, realizar um balanço. E de entender os espinhos do amor.

“Como faziam nossos avós?”, perguntou.

“Toleravam a alcoólatra, a ciumenta, a bipolar, a frígida, tiveram netos, foram mais felizes do que a gente?”

“Ou não”, ela respondeu, e riram.

Ele a deixou no hotel e foi para o seu.

Chuva e frio no dia seguinte, paisagem desanimadora. Trocaram mensagens pelo celular. Combinaram um almoço. Num tailandês.

Outra tarde voou. Mais caipirinha sem açúcar. Mais histórias divertidas: a da namorada que chorava toda vez que gozava; a que gritava muito, o que o levou a comprar um aparelho de som e instalar no quarto; a que pedia para ele morder com força; a contorcionista que era uma pedra na cama.

Na volta, ela o convidou para subir para o quarto dela, para matar uma garrafa de champanhe. Serviu assim que entraram.

Viram juntos a paisagem invernal, a ressaca violenta do mar, a ventania arrastando os poucos esportistas.

Ele se confundiu.

Mas percebia que, quando se aproximava dela, ela se afastava. Quando se sentaram na cama, ela colocou travesseiros entre eles. E decidiu. Na despedida, tentaria algo.

Se levantou, preciso ir, estou bêbado, preciso me deitar, dormir um pouco. Ela o acompanhou até a porta. Então, ele passou o braço ao redor dela e tentou beijá-la.

Ela disse não. Ele sorriu. Se desculpou. Ela disse que nunca traiu o marido. Ele se surpreendeu, nunca? Que lindo…

Caminhou até o hotel invejando aquele marido. Entrou no seu quarto, quando o primeiro torpedo chegou:

Vc vai deitar por mto tempo?”

Ele não soube o que responder. Tomou um banho, se deitou. Chegou o segundo torpedo:

“Vamos tomar um vinho antes de dormir, please.”

Ele respondeu que ia visitar um amigo.

“Tá ventando mto pra vc sair.”

Ele respondeu: “Olha, vc viu que as mulheres me confundem, vc está me confundindo. Mudou de opinião? Só pra eu entender…”

Ela respondeu: “É que fiquei meio mal e me sentiria melhor se pudesse falar. Esperar até amanhã? É tortura.”

Ele respondeu: “Tá tudo bem, eu que não devia ter feito aquilo. Mas te ligo.”

Não ligou. Ela não escreveu mais. Ele, idem.

Domingo. Ela sabia que ele partiria naquela noite. E finalmente mandou, no começo da tarde: “Vai embora sem se despedir?”

Ele não respondeu, evitou cruzar a orla e a calçada em que ela poderia estar. Almoçou num lugar fechado. Andou com cuidado pela sombra.

No começo da noite, entrava num táxi com a sua mala, quando ela apareceu correndo:

“Você é um filho da puta, só quis me comer?”

A reação agressiva o surpreendeu. O taxista esperando.

Teria sido a aventura perfeita de um romântico fim de semana, que não seria esquecida, mas abandonada. Ele respondeu apenas:

“Adorei te conhecer.”

Nunca mais se viram. Nem se falaram. Nem se escreveram. E ela, atormentada pelo não ocorrido.

No fundo, ele não quis manchar um relacionamento ideal. Existe?

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Resquício x monopólio

Resquício x monopólio

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Dez razões que comprovam por que esta Copa é a

melhor de todas as eras, dentro e fora de campo

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XICO SÁ, hoje na Folha

AMIGO TORCEDOR, amigo secador, abaixo relaciono algumas razões, com ajuda espírita do corvo Edgar e do brother Chico Bacon, estimadas criaturas deste vagabundo cronista e do bravíssimo Caco Galhardo, para mostrar como esta Copa é a melhor de todas as eras, dentro e fora de campo, ora bolas:

1) Foi-se o tempo em que torcer contra o Brasil era coisa de comunista. O exercício ficou bem mais democrático, por razão moral ou pendor estético;

2) Temos um belo duelo no momento: o resquício autoritário do treinador contra o vício exclusivista e solitário dos detentores do monopólio - Dunga x Globo ou até que o patriotismo triunfal nos una para sempre de novo. Louve-se, no episódio, a elegância do Alex Escobar, que não tirou proveito do bafo como personagem da história;

3) Futebol e religião se discutem sim, senhor. Vide Kaká, a Renascer em chuteiras, provocando jornalistas. Caiu no conto da guerra santa dunguista;

4) A bola sempre procurando Maradona na margem. Vai lá qual um gato para o seu dono e o cheira inteiro, da gravata aos sapatos. O reconhecimento, milonga para um amor eterno;

5) As tantas zebras. Até a Coreia do Sul está no jogo. Quem quer futebol bonito tem que descer para a Vila Belmiro, não ficar esperando que a espetacular câmera lenta da cobertura resolva a parada;

6) O domínio latino-americano, com a Celeste vivíssima e El Loco Bielsa com a chance de chegar ao limite da irresponsabilidade, o que é lindo, o céu azul de qualquer esporte;

7) Raymond Domenech, técnico francês quase homônimo do meu conhaque, eliminado precocemente. Místico, não convocou escorpianos. O inferno astral são os outros. Faltou existencialismo aos enfants de la patrie, danem-se;

8) É uma torcida feminina vestida até o pescoço, tudo bem, faz frio n'África, mas as dinamarquesas fizeram um milagre em minha vida: voltei a gostar de loiras, isso é magnífico;

9) O mundo finalmente descobre Elano. Fenômeno universal do futebol mais ou menos;

10) Pode rolar Brasil x Argentina, na final mais radical de todas as Copas. Nesse dia, provavelmente, Apolo e Dionísio terão um papo sério sobre tudo isso. Os dois times têm um pouco de cada um dos mitos. Tomara que dê mesmo! Depois eu conto.

xico.folha@uol.com.br

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Quem gosta das putas?

Quem gosta das putas?

LUIZ FELIPE PONDÉ

"Todo mundo que teme a nova esquerda é chato,
castrado, não tem originalidade e é medroso"

"A HIPOCRISIA é a homenagem que o vício presta à virtude", dizia o moralista francês La Rochefoucauld. "Moralista", em filosofia, quer dizer anatomista da alma e não alguém que cospe regras em nossa cara.Hoje a hipocrisia é moeda corrente de grande parte da chamada crítica social. Neste caso, o vício não se vê como vício (o vício aqui é a má-fé em si), mas como consciência social, termo que descreve uma das maiores falácias chiques de nossa época. Quer ver?

Peguemos o caso do filme baseado em "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água", de Jorge Amado, e o debate ao redor da felicidade como "vida safada" ou realização livre do desejo que critica e expõe a hipocrisia pequeno-burguesa.

O personagem era um homem com vida medíocre e "respeitável". É comum criticar a chamada pequena burguesia por sua hipocrisia miserável: emprego medíocre, poupança medíocre, amor medíocre, cotidiano medíocre, em que todos são lobos desdentados, devorando uns aos outros num ritual de opressão mútua. Quincas tem uma vida sem graça e uma mulher típica da pequena burguesia (infeliz, sem sexo, uma megera).

De repente esse homem "se revolta" e mergulha naquilo que muitos intelectuais de então (numa mistura de marxismo de folhetim e Sade popular) veem como crítica social: sua recusa da hipocrisia pequeno-burguesa se materializará num cotidiano de cachaça, mulheres, prostitutas, jogo, enfim, vida mundana.

Suspeito que, se a crítica social, conhecida como uma crítica fincada no tripé "gênero (feminismo e movimento gay) classe e raça", tivesse surgido há 2.500 anos, não teríamos Aristóteles, santo Agostinho, Shakespeare, Dostoiévski ou Kafka (para citar apenas alguns gigantes que teriam preconceitos de gênero, classe e raça).

Provavelmente, seriam todos monótonos, sem originalidade, castrados, chatos e medrosos, como todo mundo que teme essa turba da crítica social da nova esquerda, uma das piores farsas que já se arrastou pela Terra.

Por que estou dizendo isso? Porque, apesar de dizer por aí que personagens assim "são o máximo" porque caem na "noite de pobre", Quincas não se salvaria da crítica social hipócrita que domina parte do cenário "culto" contemporâneo.

Afora sua correta farra de pobre, ele é machista (faz uso das mulheres como objeto comprando as "coitadinhas" das putas -acredito que a maioria das putas escolhe essa vida porque gosta da coisa mesmo), "opressor" de sua "esposa vítima" para quem nega a "justa" satisfação de suas necessidades de mulher (ela seria uma vítima do desinteresse de um marido incapaz de amá-la tal como se "exige" dos casais) e alienado, sem questionar a "sociedade injusta que o gerou". Hoje em dia, o ideal estético da crítica social seria um Quincas castrado.

Outro erro é assumir a hipocrisia como traço "exclusivo" da pequena burguesia. A pequena burguesia tem um modo específico de hipocrisia. Mas maior má-fé é supor que criticar a hipocrisia da pequena burguesia seja superar a hipocrisia porque esta seria um fenômeno "de classe". Toda a "dialética da luta de classes" se resume na dinâmica que reúne a inveja (dos pobres) e o egoísmo (dos ricos) num rito ancestral de sangue.

A hipocrisia é um elemento intrínseco da dinâmica civilizada (como reconhecem os moralistas franceses, sem por isso fazer o elogio dela). Negar isso (o caráter universal da hipocrisia) é fundar um novo tipo de má-fé, mais falsa ainda, porque se traveste de pureza d'alma.

A necessidade da hipocrisia como elemento da vida civilizada se dá porque os seres humanos não se suportam plenamente. E não há como ser diferente. A "verdade" pode ser mortal na vida social. Alguns sobrevivem graças aos seus vícios, outros perecem graças às suas virtudes. A força desse personagem não está em seu caráter crítico da pequena burguesia, mas sim em seus vícios (mulheres, bebida, jogos), sem perdão. Fazer dele um herói da "virtude política" seria como lhe dar um enterro "respeitável", pequeno-burguês, em vez de levá-lo, mesmo que morto, ao bordel, para "ver" suas deliciosas putas.

ponde.folha@uol.com.br

O 13º TRABALHO

O 13º TRABALHO

Por RAFAEL KLEIN* (texto publicado no Blog do Juca Kfouri)

Era um belo dia de sol no Olimpo. Hércules, feliz da vida, assava uma ovelha para acompanhar os jogos do dia na Copa do Mundo. No momento em que se preparava para dar um gole no seu néctar, Hércules foi surpreendido por Zeus, que descia apressado de cima de uma nuvem:

- Meu filho, tenho um trabalho para você.

- Mais um, pai? Já não bastaram os outros doze?

- É exatamente por isso. Preciso de alguém de confiança e que possa ser capaz de segurar o rojão.

- Eu passo. Já aposentado desde o fim do império helênico, se o senhor não se deu conta.

- Olha o respeito, menino. Se você não fizer o que estou mandando, eu falo com meu irmão Hades e mando você para passar uma temporada sem fim lá no inferno.

Vendo que a sua oliva estava assando e que no fundo não tinha muita escolha, Hércules falou:

- E então, pai? Qual é dessa vez?

- Meu filho, esse é um dos maiores desafios da sua existência.

- Tranquilo, velho. Já matei uma hidra de nove cabeças, já capturei um javali indomável e desviei dois rios para lavar um estábulo gigante. Nada pode ser impossível para mim. Manda.

- É o seguinte: quero que você vá até a África do Sul e ajude a Grécia a vencer a Argentina, garantindo a nossa classificação para a segunda fase.

Hércules, ficou em silêncio por alguns instantes. Em seguida olhou com pesar para Zeus e sentenciou:

- Liga pro tio Hades e avisa que eu estou descendo.

*Rafael Klein é publicitário.

sábado, 19 de junho de 2010

Ensaios...

"Ele nos mostrou que somos um mundo de cegos, de gente sem nome, de história sem tempo, de países sem fronteiras, um mundo em que é preciso morrer."

Flavio Gomes, sobre José Saramago

Legal o filminho.....

Imaginem um pit stop feito pela dupla....

Saramago, um comunista a favor da democracia

Saramago, um comunista a favor da democracia

Por Jair Stangler

Além de grande escritor, o português José Saramago, morto nesta sexta-feira, 18, também sempre assumiu que era um comunista convicto. Mas também sempre procurou deixar claro sua opção pela democracia em detrimento dos governos totalitários. Independente de apreciarmos ou não suas posições ideológicas, Saramago foi um homem de ideias que tomou partido nas principais questões de seu tempo.

Leia também: Saramago era conhecido por opiniões polêmicas e língua afiada
“Sou comunista e por isso sou tratado como inimigo da democracia. Pelo contrário, eu quero é salvar a democracia e para isso é preciso criticar esse simulacro de democracia em que vivemos”, afirmou em entrevista concedida em 2006 à revista francesa Le Nouvel Observateur.

Na mesma entrevista, Saramago esclarece que o comunismo “jamais existiu em nenhum país e em tempo algum. Mesmo na ex-União Soviética, o que havia não era nada senão um capitalismo de Estado”.

Para o escritor português, democracias do ocidente “são fachadas políticas do poder econômico”. “Foi o poder econômico que enfiou nas consciências que o mercado deve agir de mãos livres e, assim fazendo, levou à conclusão de que o pleno emprego é um obstáculo”, afirmou.

Foi por essa sua visão sobre a democracia em vigor nos principais países do mundo hoje que Saramago escreveu, em 2004, o livro “Ensaio sobre a lucidez”, uma autocitação que faz referência ao seu clássico “Ensaio sobre a cegueira”, de 1995.

Em ‘Ensaio sobre a cegueira’, um surto de cegueira atinge uma cidade indeterminada, e a partir daí o escritor constrói sua história, base para uma reflexão mais profunda sobre o homem, a ética e a moral. Já em ‘Ensaio sobre a lucidez’, os políticos são surpreendidos com mais de 70% de votos em branco em uma eleição, o que põe em xeque as instituições e todo o sistema democrático.

Seu livro foi entendido como uma defesa do voto em branco. O escritor negou. Mas entendia que esta é uma atitude política, diferente da abstenção.

Apesar de ser defensor da democracia, Saramago era amigo de Fidel Castro e se posicionou muitas vezes em favor do ditador cubano. Assinou em 2006 um manifesto apoiando a transferência do poder de Fidel, que renunciara, para Raúl Castro, seu irmão e atual presidente. Além disso, sempre defendeu o fim do embargo a Cuba. Em 2003, em episódio que culminou no fuzilamento de dissidentes cubanos, Saramago criticou o governo cubano.

Polêmicas

Muito em função de sua posição ideológica, Saramago se envolveu em diversas polêmicas.
Em 2003, em entrevista ao jornal O Globo, o escritor causou polêmica ao criticar a postura dos judeus na Palestina e declarar que “eles não aprenderam nada com o sofrimento dos seus pais e avós” no Holocausto. Pela declaração, foi chamado de ‘antissemita’ por lideranças judaicas.

Mas provavelmente sua principal adversária foi a Igreja Católica. A primeira grande polêmica com a instituição veio quando outra obra clássica, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, que retrata o fundador do Cristianismo como um homem comum, altamente relutante em aceitar os desígnios divinos e em situações bastante humanas, como ao fazer sexo com Maria Madalena.

Saramago parecia se comprazer em provocar a Igreja: “Sobre o livro sagrado, eu costumo dizer: lê a Bíblia e perde a fé!”. Em entrevista concedida ao Estado em 2009, Saramago declarou que ‘deus não existe fora da cabeça das pessoas’.

Após o lançamento de seu último livro, ‘Caim’, em 2009, muitos católicos voltaram a criticar Saramago.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dia dos namorados?

Dia dos namorados?

por Marcelo Rubens Paiva

Nunca entendi o Dia dos Namorados.

Casados comemoram?

Amantes?

E ficantes?

Almoça-se com um ou uma ex?

E solteiros choram a falta de um ou uma namorada ou comemoram?

Arrumam 1 neste 12 de Junho?

Se agora a maioria FICA, como agendar e com quem jantar num restaurantezinho charmoso?

Sou um romântico [ou um demagogo].

Disse outro dia, para a MTV, que me pegou se surpresa no canto do CLUB BERLIM:

“Todo dia é dia dos namorados…”

Meus amigos atrás das câmeras riram, me chamaram de canalha.

Mas não á?

O que vejo é que menos e menos pessoas namoram.

Mais e mais priorizam uma rotina sem controle e compromissos, 100% livre.

Liberdade, o que é isso?

Livre de cenas de ciúmes, livre para viver um hedonismo excitante, livre para dominar os sentimentos.

Livre para evitar sofrimentos.

O FICAR foi uma inteligente criação adolescente, que contamina.

A vida já é dura demais para se enroscar no imponderável.

Triste [ou não], vivemos no EU eterno.

EU em primeiro lugar.

EU sem repartir.

EU, MEU, MINHA, MEUS.

EU = EGO.

Haverá o Dia do Eu?

Ou todo dia é dia dele?

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Os inimigos

Os inimigos

Flavio Gomes

Já repararam que a imprensa virou a grande inimiga de todas as seleções? Que técnicos e jogadores não aguentam mais os jornalistas? Acham insuportáveis as entrevistas coletivas, as zonas mistas, as perguntas, os comentários?

É uma relação curiosa, e sempre turbulenta, esta da imprensa com as seleções. Na Argentina e na Itália, por exemplo, são históricas as guerras francas e abertas, como em 1982, naquela Copa que a Azzurra ganhou depois de fazer greve de silêncio contra a imprensa da Bota. Aqui do lado, Maradona, quando ainda não era técnico, deu até tiro de espingarda em jornalistas na frente de sua casa. Outro dia, passou com o carro sobre o pé de um fotógrafo. Acho que era fotógrafo. Nas eliminatórias, quando se classificou, mandou todos chuparem alguma coisa. Chupem! E, na África do Sul, deixa os caras do lado de fora da cerca e não quer nem saber.

Dunga ainda não chegou ao ponto de distribuir bordoadas de verdade em ninguém, nem atropelou colunistas ou repórteres, não se sabe se andou dando tiros de espingarda em alguém. São apenas verbais, seus petardos. Abre suas entrevistas, sempre, cuspindo marimbondos.

O resultado é que a cobertura da seleção brasileira nunca foi tão sem sal como nesta Copa. O exército de jornalistas que lá se encontra precisa se contentar com coletivas e mais nada. Não vê treinos, não conversa com ninguém. O goleiro titular está com dor nas costas faz uma semana e o médico ainda não apareceu para dizer o que está acontecendo. Na folga, o que de mais emocionante aconteceu, ontem, foi um passeio por um shopping. Não teve farra, noitada, puteiro, álcool e fumaça. Não há curandeiros, pais-de-santo, onde anda o Vicente Matheus?

É um verdadeiro seminário, essa seleção.

Aí a imprensa, coitada, é obrigada a apelar para as estatísticas mais inúteis do mundo para preencher espaço. “Kleberson só jogou 49 minutos na era Dunga!”, grita um pasquim. “Robinho já fez 19 gols em 49 jogos com o Dunga!”, berra outro. Putz, bela merda.

Dá pena dos colegas. São tratados como inimigos. E a maioria, Dunga que não se engane, torce desesperadamente para a seleção. Ou porque torce mesmo, ou porque “é bom para a imprensa” se o Brasil ganhar, ou porque se o time for eliminado a viagem fica mais curta. E esse comportamento besta vai para as entrevistas, claro. Os caras se acham no direito não de perguntar, mas de cobrar o técnico, perguntar opinando, essas coisas — com as exceções de sempre, claro.

E Dunga devolve com suas patadas dos pampas, porque é chato, mesmo, alguém apontar o dedo para você e dizer o que você tem de fazer, por que não coloca o Ramires?, por que convocou o Doni?, e essas perguntas são feitas não como perguntas, mas sim como acusações, e é por isso que o Dunga não aguenta a imprensa e ninguém aguenta o Dunga.

Em resumo, Dunga é um pentelho. Mas a imprensa também é chata. E, com isso, tem-se a fórmula ideal para se chegar ao que estamos vendo nestes dias de preparação da seleção: zero de notícia. “Saldo de gols depois das substituições é de 23 contra 15 dos titulares!”, me informam as folhas de hoje, desesperadas com a falta de assunto. Putz, caguei. Queria saber é se alguma loira gostosa invadiu o clube de golfe e catou alguém.

sábado, 5 de junho de 2010

Decálogo de um homem feio

Decálogo de um homem feio

por Xico Sá

Dez coisas que um homem feio deve saber para tirar mais proveito da vida, essa ingrata:

I) Que a beleza é passageira e a feiúra é para sempre, como repetia o mal-diagramado Sérge Gainsbourg – o tio francês que pegava a Brigitte Bardot e a Jane Birkin, entre outras deusas. Sim, aquele mesmo francês cabra-safado autor do maior hino de motel de todos os tempos, “Je t´aime moi non plus”, claro.

II) Que as mulheres, ao contrário da maioria dos homens, são demasiadamente generosas. E não me venha com aquela conversinha miolo-de-pote de que as crias das nossas costelas são interesseiras. Corta essa, meu rapaz. Se assim procedessem, os feios, sujos e lascados de pontes e viadutos não teriam as suas bondosas fêmeas nas ruas. Elas estão lá, bravas criaturas, perdendo em fidelidade apenas para os destemidos vira-latas.

III) Que o feio, o mal-assombro propriamente dito, saiba também e repita um velho mantra deste cronista de costumes: homem que é homem não sabe sequer a diferença entre estria e celulite.

IV) Que mulher linda até gay deseja e encara, quero ver é pegar indiscriminadamente toda e qualquer assombração e visagem que aparecer pela frente.

V) Que homem que é homem não trabalha com senso estético. Ponto. Que não sabe e nunca procurou saber sequer que existe tal aparato “avaliatório’’do glorioso sexo oposto.

VI) Que as ditas “feias” decoram o Kama Sutra logo no jardim da infância.

VII) Que para cada mulher mal-diagramada que pegamos, Deus nos manda duas divas logo depois de feita a caridade.

VIII) Que mulher é metonímia, parte pelo todo, até na mais assombrosa das criaturas existe uma covinha, uma saboneteira, uma omoplata, um cotovelo, um detalhe que encanta deveras.

IX) Que me desculpem as muito lindas, mas um quê de feiúra é fundamental, empresta à fêmea uma humildade franciscana quase sempre traduzida em benfeitorias de primeira qualidade na alcova.

X) Saiba, por derradeiro, irmão de feiúra, que a vida é boxe: um bonitão tenta ganhar uma mulher sempre por nocaute, a nossa luta é sempre por pontos, minando lentamente a resistência das donzelas. Boa sorte, amigo esteticamente prejudicado, nesse grande ringue da humanidade!

terça-feira, 1 de junho de 2010

A bola da vez

A bola da vez

“Não há dúvida de que o Brasil tem o direito

de reivindicar um novo papel internacional”

BENJAMIN STEINBRUCH, Folha de São Paulo, hoje

PODE-SE CONCORDAR ou não com a iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao lado da Turquia, de participar diretamente dos esforços em busca de uma solução para a séria crise gerada pelo programa nuclear do Irã. Dependendo do analista, a atitude foi considerada ingênua, precipitada ou ousada.

Não há, porém, como negar que a governança mundial precisa de novas estruturas e novas lideranças.

Uma frase de Lula diz muito a respeito dessa questão: "O mundo já não é o mesmo do tempo em que as decisões eram tomadas por Churchill, Stálin e Roosevelt".

De fato, o sistema de governança mundial montado no pós-guerra, que, aliás, teve extraordinária eficiência na Europa e na Ásia, é mantido até hoje, como se as forças políticas e econômicas não tivessem mudado nos últimos 65 anos. Alemanha e Japão, que perderam a guerra e foram beneficiados pelos planos de reconstrução, transformaram-se em potências econômicas, mas continuam fora do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, ainda hoje dominado pelos cinco grandes países vencedores da Segunda Guerra Mundial: Estados Unidos, China, Reino Unido, França e Rússia.

Os quatro grandes emergentes, conhecidos como Brics, responderam por metade do crescimento global de 2000 a 2008 e, segundo as previsões, serão responsáveis por dois terços da expansão de produção esperada para os próximos cinco anos. Apesar disso, dois dos quatro Brics -Brasil e Índia- não têm voz nem voto proporcionais ao seu tamanho e importância nos dias de hoje.

Os organismos de governança na área financeira, como o FMI e o Banco Mundial, também criados no pós-guerra, são impotentes para enfrentar as crises dos tempos de globalização. Só para ter uma ideia, o BNDES brasileiro empresta hoje mais recursos do que o Banco Mundial. Na crise americana de 2008 e na atual da Europa, o FMI teve participação secundária, por falta de influência e recursos financeiros.

Na área social, a ineficiência da governança mundial é literalmente dramática. Milhões de pessoas passam fome diariamente em países pobres, principalmente na África, sem que a FAO, organização da ONU que cuida de agricultura e alimentação, tenha condição de fazer alguma coisa para distribuir os excessos de produção de alimentos que existem pelo mundo.

Em vários outros setores, há fragilidade dos organismos multilaterais. A OMC (Organização Mundial do Comércio) impõe sanções contra países que desrespeitam as regras do livre comércio, mas essas punições não são cumpridas e continua tudo do mesmo jeito. As negociações na área ambiental são um fiasco, e grandes países simplesmente ignoram a vontade da maioria sobre um problema que tem potencial para levar à destruição do planeta.

Imigrantes em busca de oportunidades de emprego são discriminados e maltratados sem que nenhum organismo internacional cuide de exigir que pelo menos sejam respeitados como seres humanos.

Há, portanto, importantes tarefas a serem cumpridas pela nova comunidade internacional do século 21, como o combate à fome, a manutenção do livre mercado, a abertura comercial, a batalha contra o aquecimento global, a contenção das armas nucleares e o enfrentamento do terrorismo. Essas tarefas não podem ser assumidas apenas por meia dúzia de nações, como se faz desde 1945.

O mundo claramente está a demandar uma administração mais moderna, eficiente e representativa das atuais forças políticas e econômicas. A comunidade internacional não é mais constituída pela voz dos EUA e da Europa. As crises financeiras que atingiram ambos deixaram isso muito claro.

Os críticos de Lula o chamaram de ingênuo. Alguns o acusaram de ter agido em nome dos Estados Unidos. Pode ser que exista um pouco de ingenuidade na atitude do presidente. Não há dúvida, porém, de que o Brasil tem o direito de reivindicar um novo papel internacional, adequado à sua condição de potência emergente.

BENJAMIN STEINBRUCH , 56, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

bvictoria@psi.com.br  

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Mais respeito ao sexo

Mais respeito ao sexo

A cartilha moral tomou conta do futebol. A Copa só torna mais histérico o que já rola nos clubes

XICO SÁ

AMIGO TORCEDOR, amigo secador, para começo de conversa, dos itens da cesta básica da seleção argentina, eu só dispenso a sobremesa, mesmo sendo doce de leite. Sexo e vinho, pelo amor de Deus, queremos a vida inteira, independentemente dos atributos estéticos da moça, da safra e do buquê.

Engraçado como as cartilhas morais tomaram conta do futebol. A Copa só torna mais histérica uma situação que já rola nos clubes. Outro dia bastou umas Fantas a mais para que Ganso & companhia fossem expostos como os meninos baladeiros da Vila. Se isso for balada, eu já morri há séculos.

Um castigo exagerado, baita queimação de filme para o futuro dos garotos. Agora, pode quebrar o time inteiro que o sargento Dunga, cuja seleção é patrocinada por cerveja e banco, não chama -não que o pobre cronista condene a cerveja, mas sabe como um banco faz mal à saúde de uma família.

Sorte nossa é que existem os hermanos para salvar o ambiente moralista. O próprio médico da seleção dirigida por Maradona foi lá e quebrou a cadeia da hipocrisia copeira. Condenou apenas o que chama de "aditivos", e cada um entenda de acordo com as suas respeitáveis dependências.

O chato foi que, para saciar a sede hipócrita dos jornalistas -somos a pior raça nesse sentido-, o doutor Villani, de modo acaciano, ainda foi levado a dizer frases como "o sexo faz parte da vida social".

Da mesma forma, sublinhou, com a caneta fosforescente dos bons costumes, a fidelidade. Sexo puede, boludo, desde que a parceira seja tradicional. Mesmo entendendo o que ele quis dizer, fiquei pensando que raios seria uma parceira tradicional, quanto tempo ela deveria estar casada com o sujeito e, pasme, se haveria a chance de um mesmo hermanito ostentar mais de uma tradição mulherística na praça.

Quanta bobagem o futebol nos põe a ruminar com os seus ridículos estatutos. Para completar, ainda me vem o técnico brasuca e diz, em resposta aos argentinos, que "nem todo mundo gosta de sexo, de vinho ou de sorvete".

Meia-boca esse mundo em que somos obrigados a morar hoje, hein? Uma vida assim feito azulejo, escorregadia e quadrada.

Um deve explicar a repórteres que sexo faz parte da existência. E o outro desconfia de quem gosta das raras boas coisas, com ou sem Copa.

Parece até que ninguém aqui foi feito em uma noite de muita sacanagem. A propósito, de onde vêm os repórteres?

xico.folha@uol.com.br

sábado, 22 de maio de 2010

Dr. Freud Futebol Clube

Dr. Freud Futebol Clube

XICO SÁ, Folha de São Paulo

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São Paulo e Grêmio exibiram como o inconsciente
das equipes pode agir para o bem
ou para o mal nos gramados
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AMIGO TORCEDOR , amigo secador, uma das coisas mais belas e clicherosas do futebol é que os times agem como se pessoas fossem altamente impressionáveis pelo que dizem deles, por suas caricaturas ou imagens públicas. Diria até, se os freudianos mais chatos me permitem um trago do vosso cachimbo, que o jogo é jogado mais com o inconsciente das equipes do que com os esquemas táticos e com os pés.

Repare no São Paulo. Fez um Paulistinha medíocre, começou engatinhando como uma débil criança na Libertadores da América, aí, do nada, veio o estalo, epa, e o tricolor derruba o favorito Cruzeiro. Sem querer tirar mérito profissional de ninguém, mas aí agiu o inconsciente são-paulino como esquadrão vencedor-mor desta copa cucaracha.

Tudo bem, o amigo pode dizer que o Fernandão é um gênio, um craque -só Fernandão salva!-, e sozinho arrumou um bando desconjuntado que não vinha bem das pernas. É a tese óbvia dos cavalheiros das mesas-redondas. Faz um pequeno sentido, mas não explica. O SPFC renasceu e recobrou o inconsciente de vencedor latino-americano na hora de um grande aperto, como nós, homens de todos os quilates.

Foi no triunfo dos pênaltis, em que Rogério Ceni dialogou com a tragédia e a glória nas cobranças, que o tricampeão sentiu que podia de novo, de novo e de novo, pedir o bis. A torcida sofreu e voltou para a vida junto, inconsciente coletivo no grau último, mr. Jung.

O inconsciente, amigo, insisto qual um mala de balcão de boteco, nos faz dizer ou fazer coisas sobre as quais não temos o total controle, porém são coisas que estavam ali guardadas, quicando na marca do pênalti do nosso cocoruto, pedindo "me chuta, me chuta". Para o bem ou para o mal, me chuta, desgraçado.

Repare, amigo, no que aconteceu ao Grêmio. Nem vou falar hoje do Santos, minhas retinas estão fatigadas de tanta beleza e videoteipe. O time gaúcho, sob o comando do Silas, jogou bonito e para cima, moçada, no primeiro tempo da batalha decisiva na Vila Belmiro. Era o Grêmio do técnico, não era o clube e o seu repertório da força bruta de quem peleia cegamente.

Aí veio o segundo tempo. O honrado tricolor do alegre porto caiu no conto inconsciente da braveza, rebateu bolas para as margens do Guaíba, sentou a pua nos meninos, acreditou na lenda que se esconde sob a falsa premissa de que "futebol arte é coisa de viado", como diz meu amigo Eduardo Bueno, o Peninha, no começo do livro sobre o Grêmio (coleção Camisa 13, ed. Ediouro).
Era o inconsciente gremista sabotando a Copa do Brasil, ao contrário do que desejava o bom Silas, como nós, pobres guiados pela mesma doideira latente no juízo, sabotamos amor, trabalho, amizade, histórias.

O Santos levar aquele golzinho também diz tudo. Dracena e Durval, caubóis envelhecidos nos barris de tantos faroestes, jogaram bem, incríveis. Quem pode, porém, com a mística de que o Peixe é um time que, na história, sempre fez muitos gols, mas inevitavelmente leva?

É a cabeça, irmão, é a cabeça irmão, como cantava o Silvio Brito.

Seja isolada ou coletiva, é a cabeça, irmão, é a cabeça, irmão, quem manda no jogo da vida.