quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cura-se qualquer doença

Cura-se qualquer doença

RUY CASTRO

Certa vez, meu amigo Fernando Pessoa Ferreira propôs fundarmos uma igreja, o Umbandismo Marxista do Oitavo Dia, instituição sem fins lucrativos, com renda destinada a uma associação de órfãos em Miami. Mas arranjamos emprego e a idéia foi abandonada. Outro dia, Fernando repassou-me e-mail que circula pela internet, com exemplos de homens que, ao contrário de nós, mantiveram acesa a chama da fé desinteressada. Um deles, o profeta Luís Cláudio, de Matosinhos, Portugal, anuncia-se como "ex-travesti, ex-presidiário, ex-bruxo e ex-portador do vírus da Aids, agora casado com uma mulher que não tinha útero e tendo dois filhos com ela". Promete milagres. A conferir. Mais impressionante é o brasileiro Carlos Magalhães, "engenheiro, matemático, psicólogo, filósofo, poeta e compositor", que diz ter sido indicado para o Prêmio Nobel de Fisiologia pela descoberta da quarta parte da mente humana, denominada de "essência". Descobriu também como transformar a água do mar em água doce e potável, "evitando com isso a extinção da humanidade" - terá sido boa idéia? Seguem-se no anúncio os dados bancários para depósitos. Outro benemérito é José Cosmo da Silva, que oferece "garrafadas" salvadoras para "diabete, colesteró, bronquite, presão alta, grastite, enflamação no últero, esmagrece, enflamação da prosta, menopalza, levanta a moral e disgasto físico". Falta-lhe um pouco de português, mas, se precisar, vou recorrer a uma dessas garrafadas. Afinal, no meu tempo, bebi coisas muito piores. Mas meu favorito é o Pai Ambrósio: "Resolvo problemas amorosos e profissionais. Curo qualquer doença (até viadagem). Curo qualquer vício. Encontro cão perdido. Tiro unha encravada e fimose. Jogo cartas, bingo e bilhar". A quem quiser, posso passar o telefone.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Deus existe?

Deus existe?

“Até mesmo uma opção resoluta

pelo ateísmo pode envolver ambiguidades”

MARCELO COELHO, Folha de São Paulo

QUANDO A pergunta é simples demais, o santo desconfia. A editora Planeta lançou recentemente um livro fascinante e curto (125 páginas), que, sob o título "Deus Existe?", transcreve um diálogo público entre um filósofo ateu, Paolo Flores d'Arcais, e ninguém menos do que o cardeal alemão Joseph Ratzinger.

O encontro se deu num teatro, em Roma, em fevereiro de 2000 -cinco anos antes, portanto, de Ratzinger tornar-se Bento 16.

Apesar do título do livro, a questão sobre a existência de Deus não se coloca de forma direta -e talvez seja melhor assim. O debate entre um ateu e um cardeal pode ser bem mais complexo do que sugere a pergunta. Uma formulação muito sumária, do tipo "Deus existe?", pode provocar respostas simples demais: "Sim", "não sei" ou "não".

Pessoalmente, desde criança marco a terceira alternativa. Mas até mesmo uma opção resoluta pelo ateísmo pode envolver ambiguidades. Posso dizer, por exemplo: "Não acredito que Deus exista". Ou: "Acredito que Deus não exista".

Posso, porém, observar apenas: "Quem diz que Deus existe não tem prova nenhuma do que está dizendo", e acrescentar: "Só acredito no que pode ser provado".

E, nesse momento, o bom Ratzinger já estará esfregando as mãos de contentamento apostólico. Pois é inegável que acredito em muitas coisas que não sei bem como poderiam ser provadas cientificamente. Acredito que exista uma coisa chamada beleza, por exemplo.

Se me pedirem para apontá-la, posso citar uma série de exemplos, uma série de manifestações da beleza no cotidiano; o crente pode apontar outras tantas manifestações de Deus, e ninguém provou nada com isso.

No seu diálogo com Paolo Flores d'Arcais, entretanto, Ratzinger dá um passo a mais. Certo, diz o cardeal, a existência de Deus não pode ser provada pelo "método positivo", isto é, científico. Mesmo sem ter provas, entretanto, a fé em Deus não é puramente irracional. Ao contrário, a razão está do lado dos católicos nesse caso.

Seu interlocutor resiste bravamente a esse golpe. Tolerante e ateu, Flores d'Arcais aceita que alguém simplesmente diga, como o velho teólogo Tertuliano, "acredito porque é absurdo". Ou que lembre Kierkegaard: "A fé começa justamente onde termina o pensamento".

Mas Ratzinger não quer limitar a crença em Deus aos porões sentimentais da alma. A tradição católica, diz ele, foi uma espécie de "pré-Iluminismo" contra as irracionalidades pagãs.

E a ideia de um Deus criador do céu e da Terra, prossegue, é indispensável para qualquer pessoa que preze a razão. Sem um logos, um verbo que está na origem de tudo, teríamos de admitir que o mundo, a natureza, o destino humano, não passa de fruto do acaso, não tem sentido nenhum, é puramente absurdo. Como então preservar qualquer "racionalidade" com esses pressupostos?

Num artigo incluído nessa edição, Ratzinger formula o problema com mais eloquência: "Pode a razão renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à existência original do logos sem abolir a si mesma?" Meu ateísmo -e meu racionalismo- respondem que sim. A medicina sabe perfeitamente que, com todos os seus avanços, não elimina o fato de que todos irão morrer. Reconhecer a "prioridade" da morte não faz com que a medicina esteja pronta a "abolir-se a si mesma"...

Flores d'Arcais não sai vitorioso, entretanto, do debate com Joseph Ratzinger. Quando se trata de defender princípios universais e inalienáveis, como os direitos humanos, nosso ateu de plantão cai na armadilha do relativismo: muitas sociedades admitiram o homicídio, a antropofagia...

Ratzinger insiste, com razão, que se muitas sociedades fizeram coisas detestáveis, isso não torna casuais, contingentes, os direitos humanos. D'Arcais também não gostaria que isso acontecesse, mas se confunde no debate.

O problema, a meu ver, teria de ser definido de outra forma. Se existem direitos universais, e se um termo como "dignidade humana" precisa ter sentido, a questão é saber como lhes dar fundamento. Mas esse fundamento, que deve ser a-histórico, absoluto, transcendente, não precisa fazer apelo ao "sobrenatural" -e negar o sobrenatural é algo que, pelo que li, não está nas cogitações de Ratzinger, com tudo o que concede às conquistas do Iluminismo.

coelhofsp@uol.com.br

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Yes, nós também tivemos Woodstock

Yes, nós também tivemos Woodstock

Grandes bandas desconfiaram, mas acabaram vindo ao Brasil e abrindo rota

Fonte: Jotabê Medeiros, Estado de São Paulo

A iluminação de todos os shows era a mesma, emprestada pelo Queen. O cenário do show dos Paralamas do Sucesso era composto de apenas um vaso de plantas. O local era um terreno emprestado. Erasmo Carlos foi mal escalado e tocou hostilizado por milhares de metaleiros. O grupo Whitesnake foi convidado de última hora para substituir o Def Leppard, cujo baterista tinha sofrido um acidente e amputado um dos braços.

Apesar dos percalços, o primeiro Rock in Rio, cuja realização completa 25 anos hoje (ocorreu entre 11 e 20 de janeiro de 1985), reuniu 1.380 milhão de pessoas (quase três vezes o público do festival de Woodstock) em Jacarepaguá, colocando o Brasil definitivamente no mapa geopolítico do rock-n"-roll. Tornou-se um grande (e único) caso de franchising de rock, inspirando outros aventureiros - já se fala em trazer o festival americano Lolapalloza ao Brasil.

"Não era um projeto megalômano. Ele nasceu megalomaníaco porque se você não botasse 1 milhão de pessoas na plateia o festival não se pagava", disse ao Estado na semana passada o publicitário Roberto Medina, criador do festival, que tinha 35 anos na época. Ele lembra que quando procurou o agente da banda inglesa Queen, Jean Beach, foi inicialmente visto como uma piada. "Ele me disse que, se nem os americanos tinham como fazer o que eu pretendia, muito menos um rapaz brasileiro. E me deu uma champanhe como prêmio de consolação."

Mas quando a coisa pegou, o Queen veio. E muito mais: Iron Maiden, AC/DC, Ozzy Osbourne, B-52"s, Scorpions, Nina Hagen, George Benson, James Taylor, Al Jarreau, Gilberto Gil, entre outros. De lá para cá, ele realizou três edições no Brasil (1985, 1991 e 2001), três em Portugal (Lisboa) e uma na Espanha (Madri). Em 1985, naquele ano pioneiro, foram dez dias, 90 horas e 5.400 minutos de música, doideira, lama e excitação. Veio gente do mundo todo.

Hoje, em 25 anos de existência, a mostra já colocou 650 bandas em seus palcos. E deve voltar ao Brasil em 2011. "Tá na hora de trazer de volta", diz Medina, falando por telefone do Rio de Janeiro. O publicitário vive há dois anos em um tranquilo bairro madrilenho, Las Rozas, e só contava trazer o Rock in Rio de volta em 2014, mas resolveu antecipar. Ele estava havia 20 dias em negociações com a prefeitura do Rio de Janeiro, que espera estabelecer uma grande agenda de eventos na cidade preparando-a para a Copa de 2014 e a Olimpíada. E conta que já tem propostas de quatro patrocinadores de um mesmo setor para bancar o retorno da mostra ao Brasil.

Após três edições em Portugal e uma na Espanha, o festival vai instalar-se também em Poznan, na Polônia, no ano que vem. Em Lisboa, já é um item da agenda nacional, tão aguardado quanto a Eurocopa e a Expo. Em Madri, o primeiro Rock in Rio, em 2008, cerca de 300 mil pessoas compareceram a Arganda del Rey, a cidadezinha nas imediações da capital espanhola, para ver Bob Dylan, Franz Ferdinand, Lenny Kravitz, The Police, Shakira e Amy Winehouse.

Ao longo de sua história, o Rock in Rio enfrentou adesões insólitas (Axl Rose veio em 2001 após anos recluso, e ele mesmo pediu para voltar) e deserções em massa (em 2001, cinco bandas, incluindo o Jota Quest, saíram protestando contra a organização). A primeira edição do festival foi corajosa também em escalar (e ajudar a construir) as bandas do incipiente rock nacional, que dava seus primeiros passos naqueles tempos pós-Raulzito e Mutantes. Barão Vermelho, Blitz, Kid Abelha, Lulu Santos, Paralamas do Sucesso e até os veteranos Rita Lee e Erasmo Carlos estavam presentes, ao lado de medalhões da MPB, como Alceu Valença, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Moraes Moreira e Gilberto Gil.

O segundo Rock in Rio não é o que Roberto Medina mais gosta de lembrar. Transferido para o Maracanã, foi transmitido pela Rede Globo ao vivo para 55 países e, patrocinado pela Coca-Cola, levou 700 mil pessoas ao Maracanã nos seus nove dias de duração. Num estádio, virou campo de guerra e o saldo foram três mortes e brigas no gramado, que resultaram em prisões e inquéritos. Foi um festival predominantemente pop, com artistas e grupos como A-Ha (um dos maiores públicos de rock da história), Dee-Lite, Information Society, INXS, Lisa Stanfield, George Michael, Billy Idol e New Kids on the Block. Do rock, estiveram lá (entre outros) o velho Santana, Joe Cocker, Judas Priest, Megadeth, Faith No More, Happy Monday, Run DMC e uma banda que faria história, o Guns N" Roses.

sábado, 9 de janeiro de 2010

As minorias que estão por dentro

As minorias que estão por dentro

Descrição de astrologia por Adorno
aplica-se bem a outras ideologias,
religiosas e laicas
ANTONIO CICERO

NO LIVRO "AS ESTRELAS Descem à Terra", o filósofo Theodor Adorno observa que aquele que conhece a astrologia já se considera acima do homem comum, isto é, do homem que aceita acriticamente o senso comum sobre o mundo existente.

"A astrologia", diz Adorno, "à maneira de outras crenças irracionais, como o racismo, oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".

Essa descrição da astrologia aplica-se bem a inúmeras outras ideologias, religiosas e laicas. Como pretendo dizer algo tanto sobre aquelas quanto sobre estas, mas não há espaço para isso tudo numa só coluna, falarei apenas das religiosas neste artigo, deixando as laicas para o próximo.

Lembremo-nos, por exemplo, do cristianismo primitivo. Segundo seu verdadeiro fundador, o apóstolo Paulo, Deus disse: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes". Paulo pergunta: "Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?" E explica, adiante: "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus [...]. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe como eles são fúteis". No lugar da sabedoria deste mundo, Paulo propõe a fé, que, como diz, não se baseia na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

Com essas penadas são varridas, entre outras coisas, a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas. As obras de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Cícero, Homero, Hesíodo, Píndaro, Virgílio e inúmeros outros são cassadas, entre as quais (segundo a sabedoria dos sábios, a inteligência dos inteligentes e a erudição dos eruditos, tanto da época de Paulo quanto da nossa) algumas das maiores preciosidades jamais produzidas pelos seres humanos.

Nesse caso, os que estão "por dentro" da palavra de Deus não apenas se sentem superiores ao homem comum, como diz Adorno, mas também -e sobretudo- aos "sábios", aos "inteligentes" e aos "eruditos". Vingam-se assim -de novo, nas palavras de Adorno- de se sentirem excluídos dos privilégios educacionais.

Foi indignado com as palavras de Paulo acima citadas que Nietzsche afirmou que a religião cristã, sendo "inimiga mortal da sabedoria do mundo, isto é, da ciência, aprovará todos os meios pelos quais a disciplina do espírito, a integridade e o rigor em ciências do espírito puderem ser envenenados, caluniados, desacreditados. A fé como imperativo é o veto contra a ciência -na prática a mentira a todo custo... Paulo compreendeu que a mentira, que a "fé" era necessária; mais tarde a Igreja compreendeu Paulo".

Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica é assumida- quanto para os que deles eram excluídos.

Isso não quer dizer que não tenha havido seitas que se considerassem acima do senso comum e se rebelassem contra a sabedoria deste mundo, inclusive contra a pretensa sabedoria da doutrina católica. Durante a Idade Média, proliferaram seitas de hereges, milenaristas, salvacionistas etc. a manifestar seu ódio contra toda sabedoria humana e, em particular, contra a razão.

Assim também fizeram os líderes da reforma protestante. Não admira que Lutero, declarado discípulo de Paulo, tenha chamado a razão de "puta amaldiçoada". "A razão", diz, "tem que ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que pisar toda razão, senso e entendimento".

Em que essas ideologias religiosas são próximas da astrologia, tal como descrita por Adorno? Em se considerarem acima do senso comum e em proporcionarem aos seus adeptos a sensação de pertencerem a uma minoria que está "por dentro".

Mas não é toda ciência assim? A diferença, para Adorno, é que a astrologia consiste numa "crença irracional". Falarei disso no próximo artigo.

E em que são distantes da astrologia? Em desprezarem não só o senso comum, mas toda sabedoria humana, inclusive a razão. Nesse sentido, as ideologias laicas, de que falarei também no próximo artigo desta coluna, estão bem mais próximas da astrologia.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Trapalhões x Monty Python

Trapalhões x Monty Python

O nosso Brasil x Inglaterra,

disputado em uma praia alagoana,

foi o jogo mais feio que (não) vi na minha vida

XICO SÁ, hoje na Folha

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, acabei de humilhar uns ingleses em uma pelada na praia de Japaratinga, Alagoas. Escrevo ainda resfolegante, desculpa aí, gente, pelos maus-tratos com a gramática e a prosódia, vai assim mesmo, vale a vida que o vento leva.

Foi o jogo mais feio que vi e joguei na história. Nem aquele Íbis x Santo Amaro, que cobri nos anos 1980 no Recife, em uma Quarta-Feira de Cinzas, chegou aos pés.

Seis contra seis. Brasil x Inglaterra, com dois alagoanos beatlemaníacos reforçando o time da rainha. De uma dúzia de marmanjos, oito usávamos óculos com graus nas alturas.

Primeiro acerto: todos devem se livrar das lentes e jogar cego mesmo. A regra é clara, o futebol é no escuro.

Na primeira disparada como falso ponta-esquerda, caí no colo de uma tiazinha que brincava inocentemente de castelo de areia com as crianças. Colo macio, justiça seja feita, nestes tempos de mulheres com barrigas duras como as de travestis.

Brasil x Inglaterra, digo, Trapalhões x Monty Python, com direito a alguns minutos de puro futebol filosófico, como na invenção do grupo inglês de humoristas. Juro que tentei usar tudo que aprendi em um recente bate-bola no Parque Antarctica com Sócrates -gravação de umas chamadas para o "Cartão Verde", programa que fazemos juntos na TV Cultura. Em vão.

Onde buscava o calcanhar estiloso do Magrão, encontrei só marmotas, trejeitos e mungangas do anti-herói Didi Mocó Sonrisal, meu ídolo de infância, madureza e velhice.

Vendo aquele espetáculo, o titio Nelson riscaria uma das suas belas frases: a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana!

Esqueça o que escrevi, diria o gênio, padrinho espiritual desta coluna juntamente com o bom Antônio Maria, claro que não sou besta de me apadrinhar de quem não presta.

Não havia nada de shakespeariano naquela pelada. No máximo, consegui aplicar um involuntário drible da vaca louca em um dos ingleses.

Justamente no brancão maluco, torcedor do Chelsea, que havia ingerido, segundo o Databoteco, 11 caipirinhas de cachaça. Sim, ele também havia fumado do bom e do melhor da Cabrobonha sertaneja, beira do rio São Francisco.

Segue o jogo dos perdidos no paraíso. Girei a perna, em um momento de câimbra, e vi uma boyzinha -como são chamadas as lolitas em alguns lugares do Nordeste- gritar "golaço!". Fui tomar satisfação: "Como assim, por que golaço?".

Havia sido um gol espetacular, segundo os novos amigos. Pena que não faço a menor ideia do que havia feito. Vai ficar como aquele de Pelé contra o Juventus. Um mistério sem imagens é sempre mais bonito.

Segue a vida. O golaço que fiz e não vi me deu saudade dos velhos atacantes zumbis e geniais. Os Fios Maravilhas, os Dadás, os Chulapas...

Qual o placar do nosso Brasil x Inglaterra? Outro mistério para a eternidade. Nem o garçom que tomava conta da turma e muito menos a boyzinha fazem ideia da contagem.

Apareceu até testemunha que dissesse que foi o maior 0 a 0 da história ludopédica. Quem sabe?

Tenho a impressão que foi 20 a 19 para os Didis Mocós! Oficialmente é o que fica valendo e revoguem-se quaisquer versões dos ingleses.

xico.folha@uol.com.br

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ícone repaginado

Ícone repaginado

O BIÓGRAFO OLIVIER TODD FALA DOS 50 ANOS DA MORTE DE ALBERT CAMUS, DAS DIVERGÊNCIAS COM SARTRE E DA TENTATIVA DO PRESIDENTE SARKOZY DE ENDEUSÁ-LO

"Não tenho a impressão de que Camus

tenha sido simples: era dilacerado internamente"

JOSYANE SAVIGNEAU, Folha, 03 jan. 2009

Ao rememorar o pensamento e o trabalho de Albert Camus, morto há 50 anos, Olivier Todd destaca: "Foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein".

Camus é o autor de uma das obras mais significativas do século 20, que inclui romances como "O Estrangeiro", "A Peste" e "A Queda". Recebeu, em 1957, o Nobel de Literatura.

Biógrafo do célebre escritor francês -sobre quem escreveu o livro "Albert Camus - Uma Vida" (ed. Record)-, Todd avalia, em entrevista ao jornal "Le Monde", que ele também foi um "bom analista" do momento histórico em que viveu. Camus atuou na resistência ao nazismo durante a Segunda Guerra, quando conheceu o escritor e filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-80), de quem ficou amigo.

Em 1951, lançou o livro de ensaios "O Homem Revoltado" [ed. Record], em que criticava a opressão das ditaduras comunistas. A reação de Sartre ao livro motivou o rompimento da amizade entre os dois. "Camus se defendeu bem, mas a ruptura estava consumada", diz Todd na entrevista abaixo.

PERGUNTA - Camus se tornou uma espécie de ícone. Como o sr., biógrafo dele, explica isso?

OLIVIER TODD - As pessoas o mitificam no papel de alma bela. Coisa que ele foi, para sua própria honra. Para mim, Camus foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein. Em dado momento, ele tentou exprimir uma filosofia à francesa, extremamente literária. Voltou atrás. Muito cedo, disse "não sou existencialista" e, muito tarde, admitiu que não era filósofo. Tanto melhor.

Ele não deixaria rastro nenhum na filosofia, concebida como um saber totalizante. Sua concepção do absurdo não resiste às contestações. Para ele, é quase uma substância entre o homem angustiado e o mundo irracional; o mundo não é nem absurdo nem negro nem cor-de-rosa: ele é. O absurdo não é, antes de mais nada, a contingência? Camus foi um pensador político que agiu com base em intuições, fundamentado em sua própria experiência.

Nascido na Argélia [em 1913] e morador de Argel, ele vinha de uma família de "pieds-noirs" [franceses nascidos na Argélia]. Sabia o que eram o proletariado e a pobreza. Camus não foi um visionário diante dos acontecimentos mundiais, mas se revelou bom analista do momento.

PERGUNTA - O que se diz desde então é que Camus sempre teria tido razão e que Sartre teria sempre se enganado.

TODD - Camus morreu em 1960 [em um acidente de carro]. Não sabemos como teria reagido aos acontecimentos -por exemplo, à Guerra do Vietnã- sobre os quais Sartre não demorou a manifestar sua posição.

Como muitos intelectuais franceses, Camus não entendia nada de economia. Foi um homem politicamente honesto, mesmo nos casos em que se enganou -com relação à Argélia- e em que teve razão -com relação ao comunismo. Para compreendê-lo, é preciso conhecer toda sua vida política.

Jovem, excelente jornalista que escreveu no "Alger Républicain", antes da guerra, denunciou a miséria na Cabília [a leste da capital da Argélia]. Foi repórter prodigioso, mais fascinante que o editorialista que se tornaria no "Combat" ou no "L'Express" -esse é um ponto de vista muito pessoal, reconheço.

Ingressou no Partido Comunista argelino em 1934 e se afastou dele porque o partido não defendia suficientemente os nacionalistas argelinos. Seu silêncio com relação a sua adesão ao partido me deixou perplexo. Quando, em 1945, negou ter sido comunista, estava prestes a embarcar para os EUA. Naquela época, os americanos não davam vistos de entrada aos membros do Partido Comunista. Foi um pecadilho menor para um homem que odiava a mentira.

Seu grande deslize foi a famosa e infeliz declaração, pouco lógica, que deu em Estocolmo, na Suécia, depois de receber o Prêmio Nobel, em 1957: "Creio na Justiça, mas eu defenderia minha mãe antes da Justiça". O jornal "Le Monde" a publicou fora de contexto. Beuve-Méry [jornalista, 1902-89] tinha previsto: "Em Estocolmo, Camus só dirá besteiras." Sobre Sartre e Camus, é preciso também voltar ao contexto quanto à discussão da revista "Les Temps Modernes" a respeito de "O Homem Revoltado". Trata-se de um monumento antológico da história literária, não da história política.

Tirando 50 páginas sobre o comunismo e o Marx messiânico, não gosto desse livro, misto de literatura, política, filosofia, Rimbaud, Breton... Uma parte de "O Homem Revoltado" tinha sido publicada na "Temps Modernes". Ingênuo, Camus esperava uma crítica positiva. Ele encontrou Sartre, que o preveniu: haverá reservas. Perplexo e acabrunhado, Camus descobriu uma crítica arrasadora e maldosa do filósofo Francis Jeanson.

Magoado e um tanto quanto arrogante, Camus começou seu artigo em resposta às críticas com "senhor diretor", o que irritou Sartre. Camus se defendeu bem, mas a ruptura estava consumada. Em 1954, em "Os Mandarins" [ed. Nova Fronteira], Simone de Beauvoir faz de Camus um personagem repugnante, até mesmo colaboracionista.

Foi sempre um homem marcado por dúvidas, incerto quanto a seu talento. Já Sartre acreditava na genialidade dele. Politicamente, sou mais próximo de Camus, mesmo sabendo que dizer isso hoje é fácil. Eu gostaria também que fosse lembrado que Sartre, criptocomunista, não se enganou sempre. Por exemplo, com relação a Israel e aos palestinos, com relação a Biafra [atual Nigéria]. É preciso parar de dizer que ele nos enganou. Nós nos enganamos com ele.

Eu tinha 19 anos quando conheci Sartre, em 1948. Ele teve a gentileza de me receber com bastante frequência. Conheci a obra de Camus. Não o homem. Chamou minha atenção o lado direto e simples de Sartre. Não tenho a impressão de que Camus tenha sido simples. Era muito dilacerado internamente. As relações entre os dois foram assimétricas. Camaradagem, cumplicidade, festas, mas não amizade. Tiveram atitudes muito diferentes com relação à ação. Camus pertenceu à Resistência ativa. Sartre, não.

PERGUNTA - Quais são os livros de Camus que o sr. prefere?

TODD - "O Estrangeiro" [ed. Record], "Noces" [Bodas, 1938], por seu lado lírico puro, sem grandiloquência. E, sobretudo, "A Queda" [ed. Record]. Eu fazia perguntas frequentes a Sartre sobre os livros de Camus. Ele preferia "A Queda", "porque, nele, investiu e se escondeu por inteiro".

PERGUNTA - E na obra de Sartre?

TODD - Também ele é, para mim, escritor antes de mais nada, ainda que se visse como filósofo que desvelava o mundo em sua totalidade. Gosto de "A Náusea" [ed. Nova Fronteira] e de seus romances. Sobretudo "A Infância de um Chefe" [conto do livro "O Muro", ed. Nova Fronteira]. Gosto, sobretudo, de "As Palavras" [ed. Nova Fronteira], um diamante negro que faz contraponto a "A Queda". Em "Situações" [ed. Cosac Naify], há coisas extraordinárias sobre o engajamento e um amontoado confuso político-dialético.

PERGUNTA - O que pensa das relações entre Camus e André Malraux?

TODD - Foram muito importantes. Também foram assimétricas. A correspondência entre eles é fascinante. Camus era um jovem desconhecido, e eles se escreviam de igual para igual. Foi graças a Pascal Pia e a Malraux que "O Estrangeiro" foi publicado.

Creio que Malraux nunca tenha comentado a obra de Camus. Quando Camus recebeu o Nobel, ele disse: "É Malraux quem deveria tê-lo ganho". Nas relações de homem a homem de Camus, a sombra do pai que ele nunca conheceu se faz sentir a todo momento. Foi o caso com Jean Grenier, Malraux, Sartre, René Clair -embora com este último tenha havido uma amizade um pouco solene, a julgar pelas cartas trocadas. Como estou falando sobre documentos, é preciso mencionar que ainda há muita coisa inédita. A correspondência com certas mulheres importantes da vida de Camus, entre elas Maria Casarès ou Mi, o último amor de Camus. Essas cartas foram doadas à Biblioteca Nacional da França. Ver Camus como ícone descarnado não é lhe render homenagem. É preciso conservá-lo vivo em sua complexidade e suas contradições.

Nos últimos meses, vem sendo feito um grande esforço para repintar o ícone. Os pretorianos intelectuais do Eliseu [palácio do governo francês] estão lançando uma grande manobra para, imagine só, "panteonizá-lo"! [leia texto ao lado] Camus não é nem exemplar nem edificante. Ele nos leva a refletir. Que as pessoas o leiam, em lugar de repetir generalidades sem compreender seu percurso. Gosto de uma resposta que ele deu em uma de suas últimas entrevistas. Perguntaram-lhe: "Sr. Camus, o sr. ainda faz parte da esquerda?". "Sim, apesar dela e apesar de mim." Atual, não?

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A íntegra desta entrevista saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .

Família rejeita ideia de levar Camus ao Panteão

Não foi bem recebida a proposta que o governo francês apresentou, em novembro, de transferir os restos mortais de Albert Camus para o Panteão parisiense. A ideia de inclui-lo com Voltaire, Rousseau e outros foi rechaçada por sua família -seria um "contrassenso", segundo seu filho Jean.

Esse é o tom dos comentários de intelectuais, que acusam o presidente Nicolas Sarkozy, conservador, de se apropriar da popularidade do autor de esquerda.

Para Jeanyves Guérin (Paris-Sorbonne), biógrafo do pensador, "Sarkozy é amigo de Bush, Gaddafi, Putin e Berlusconi. Sua política é oposta aos valores e às concepções que Camus defendia".

O túmulo de Camus, cuja morte completa 50 anos amanhã, fica em Lourmarin, sul da França.

Após 50 anos, obra de Albert Camus permanece atual

Após 50 anos, obra de Albert Camus permanece atual

Profundidade do pensamento e domínio da forma literária marcam produção do argelino, Nobel de literatura em 1957

MOACYR SCLIAR

COLUNISTA DA FOLHA

Este 4 de janeiro assinala os 50 anos da morte de um dos escritores e intelectuais mais influentes do século 20: Albert Camus. Nascido em 1913 em Mondovi, Argélia, Camus era filho de um francês morto na Primeira Guerra e de uma descendente de espanhóis. Era, portanto, um "pied noir", "pé-negro", termo que designa a população de origem francesa que vivia na Argélia.

Sua infância, em Argel, foi pobre: trabalhou com o tio, tanoeiro, e a muito custo estudou. Cursou filosofia e doutorou-se com uma tese sobre Santo Agostinho. Poderia ter seguido a carreira docente, mas a tuberculose da qual sofria (como muitos artistas e intelectuais à época) agravou-se, impedindo-o de trabalhar na área.

Em 1939, mudou-se para a França e, em 1940, aderiu ao movimento da resistência contra a ocupação nazista. Ainda em 1940, fundou, com outros, a revista "Combat", da qual foi redator-chefe de 1944 a 1946. Simultaneamente, dava início à uma carreira literária que lhe valeria o Nobel de literatura em 1957. Na Argélia, publicara "O Avesso e o Direito" e "Bodas em Tipasa". Seguiram-se "O Estrangeiro", "A Peste", "O Mito de Sísifo" e "O Homem Revoltado". Também escreveu para o teatro "Calígula", "Os justos" e "O Estado de Sítio".

Mãos sujas

Em 1942, conheceu Jean-Paul Sartre, de quem foi amigo por dez anos e com quem manteve uma das polêmicas mais famosas do pensamento contemporâneo, vinculada às grandes transformações ocorridas após a Segunda Guerra.

Com a vitória da União Soviética no fronte oriental, o comunismo stalinista expandiu-se, tomando o poder em vários países. Porém, a entusiástica adesão de muitos intelectuais à Revolução Russa, de 1917, agora dava lugar à decepção, quando não à franca revolta, como mostram os depoimentos de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, Louis Fischer e Stephen Spender em "O Deus que Falhou" (1949).

Koestler, autor de "O Zero e o Infinito", romance anti-stalinista, influenciou muito Camus. Sartre, mais velho que Camus e visto como o expoente maior do existencialismo, só se aproxima da política em 1941, mas, então, sua postura é bem mais rígida. Ele de certa forma justifica os excessos do stalinismo e do regime maoista sob o argumento de que política exige "mãos sujas" ( "Les Mains Sales", título da peça teatral claramente autobiográfica descrevendo os conflitos de um jovem intelectual burguês).

Antes sujar as mãos, diz o filósofo, do que ficar em cima do muro, uma questão, como vemos, muito atual. Ao mesmo tempo, Sartre manifestava-se contra o domínio francês na Argélia que havia desencadeado uma luta de libertação. Camus era a favor da independência, mas contra o terrorismo usado pela guerrilha. A polêmica entre os dois é descrita em "Camus e Sartre - O Fim de uma Amizade", de Ronald Aronson, publicado no Brasil pela Nova Fronteira (2007).

Jogo de futebol

Àquela altura, a reputação de Camus já estava consolidada e ele viajava pelo mundo inteiro. Veio ao Brasil, em 1949, e pediu para assistir a uma partida de futebol e deu conferências em várias cidades, apesar de sentir-se doente -pode ter havido uma reexacerbação da tuberculose.

Manoel Bandeira, que esteve com ele e também era tuberculoso, conta que falaram sobre a doença e outros temas com simplicidade: "Não havia nenhum vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem".

A autenticidade, associada à profundidade do pensamento e ao domínio da forma literária, torna a obra de Albert Camus, morto em 1960 em um acidente de carro, sempre atual.