sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ser sul

Ser sul

Luis Fernando Veríssimo, Estado de São Paulo

O rúgbi é mais popular do que o futebol na África do Sul. Talvez fosse bom tentar entendê-lo, para entender melhor a África do Sul ou ter assunto com os nativos durante a próxima Copa. Lembro que uma das dificuldades para conversar com os americanos sobre a Copa que acontecia na terra deles em 94 era, antes de mais nada, explicar que esporte era aquele que nos levara lá. Muitos diálogos começavam assim:

 - Sabe o "football"?

- Sei.

- Pois o futebol não tem nada a ver.

O rúgbi tem até menos a ver com o futebol do que o "football", que pelo menos tem onze de cada lado. O rúgbi tem quinze. Descobri que existe uma rivalidade hemisférica, Norte e Sul, no rúgbi. Apesar de ter sido inventado na escola de rúgbi, na Inglaterra, e levado ao resto do mundo pelos ingleses, como o futebol, o parlamentarismo e o chá com bolinho, os torneios internacionais de rúgbi têm sido dominados por países do Hemisfério Sul. Numa recente final da Copa do Mundo que acompanhei porque estava na Europa, o time da França representava as esperanças do Norte contra a prepotência das ex-colônias, representada pela Austrália. Já que não se deve ser neutro em nenhum momento da vida, para não correr o risco de virar suíço, fiquei me perguntando se deveria torcer pelos simpáticos franceses, que afinal eram o azarão do campeonato, ou se devia alguma forma de solidariedade subequatoriana aos australianos.

É mais difícil do que parece definir nossas simpatias. Saber qual é o nosso, por assim dizer, time num sentido maior. Algumas adesões são fatais e não dependem de racionalização ou escolha. Espero que nunca chegue a isso, mas numa eventual guerra final entre homens e mulheres pela dominação do mundo servirei ao meu sexo, nem que seja como espião nos vestiários do inimigo. Não adiantou muito a decisão de torcer contra o Brasil dos militares em 70: na primeira vez em que o Jairzinho partiu com a bola em direção ao gol adversário estava todo o mundo, de esquerda ou de direita, de pé, e empolgado. O coração tem razões, etc.

Na questão racial a coisa se complica. Meu time é o dos brancos até certo ponto, também tenho sangue de índio e de negro, e mesmo o sangue de branco é um combinado ítalo-germano-português que desafiaria qualquer espírito ecumênico. Torcer pra que raça? Torcer pelo Sul espoliado contra o Norte imperialista seria natural, e não apenas por uma fatalidade geográfica. Mas que possível identidade se pode ter com a Nova Zelândia e a Austrália, só para citar duas potências do rúgbi?

Ser torcedor do Hemisfério Ocidental contra o Hemisfério Oriental melhoraria a média de vitórias do nosso time, sem falar da sua situação financeira, mas significaria ser América de coração como se a América fosse toda igual. "Ser" Hemisfério Sul como se "é", que remédio, Internacional ou Botafogo, significa ter mais afinidades com a África do Sul do que com o México. E ? acabo de me dar conta ? ter de torcer pela Argentina em qualquer confronto seu com representantes do outro hemisfério. Impensável.

Acabei torcendo pela França na final daquela Copa de rúgbi. Era o mais fraco contra o mais forte, latinos contra anglos-saxões, e, que diabo, Michel Legrand, Juliette Binoche, Camus e os direitos do Homem contra Olivia Newton-John e o canguru. Em certos casos a gente sabe, instintivamente, qual não é o nosso time.

A lealdade das mulheres

A lealdade das mulheres

Basta olhar as filas das visitas

nos presídios para saber que lealdade

não é qualidade masculina

CONTARDO CALLIGARIS

NA TARDE de quinta-feira passada, estive no Presídio Feminino do Butantã, situado na rodovia Raposo Tavares, longe do bairro paulistano do Butantã.

Aconteceu assim: antes do fim de ano, Wagner Paulo da Silva, que eu não conhecia, me escreveu explicando que ele organizava um grupo de leitura regular para detentas desse presídio. O grupo (mais ou menos 25 mulheres) tinha discutido uma de minhas colunas; quem sabe eu me dispusesse a proporcionar um "encontro com o autor"?

Soube depois que Wagner da Silva e Durvalino Peco animam há anos esse grupo de leitura para detentas do presídio do Butantã e, agora, com o apoio do Estado de São Paulo, estendem o programa a 26 penitenciárias da região metropolitana (para isso, eles promovem, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, um curso gratuito de formação de mediadores -as inscrições já estão encerradas, mas vale a pena conferir: www.fespsp.org.br/leiturativa/).

Enfim, voltando das férias, liberei uma tarde para aceitar o convite e encontrar minhas leitoras. Ficamos conversando mais ou menos duas horas, e saí de lá com algumas reflexões. Eis uma delas.

A prisão, para as mulheres, é uma punição mais severa do que para os homens, e a causa dessa diferença é um atributo feminino.

Claro, há homens leais e mulheres desleais, mas, em regra, a lealdade é uma qualidade mais feminina do que masculina. Não estou pensando na fidelidade amorosa e sexual -nesse campo, homens e mulheres são capazes das mesmas "traições". Penso numa lealdade mais fundamental, que uma comparação vai explicar facilmente.

Em dia de visita numa penitenciária masculina, a fila de mulheres (esposas, mães, filhas, irmãs) é longa: facilmente, é mais de uma visita feminina por cada preso.

Em dia de visita numa penitenciária feminina, a fila é curta e, em sua grande maioria, composta pelas mães das detentas; os homens aparecem num número irrisório. Sei lá, por 700 mulheres no presídio, uma dúzia de gatos pingados visitando. Os homens se esquecem de suas companheiras assim que as portas do presídio se fecham sobre elas. Abandonada pelo companheiro ou marido, a mulher (outra prova de lealdade) prefere duvidar de si: será que o marido nunca comparece porque ela não é, nunca foi, a mulher que ele queria?

A deslealdade masculina aparece também quando os homens são presos; eles são bem felizes de receber a visita das mulheres que voltam a cada semana, lealmente, anos a fio, mas, com frequência, se esquecem dos filhos que deixaram fora do presídio.

As mulheres presas, ao contrário, só pensam nas crianças que estão lá fora (em geral, com a avó; quase nunca com o pai). E, de novo, a lealdade com as crianças as leva a duvidarem de si mesmas: no dia em que sairão do presídio, os filhos não as reconhecerão, ou então, de qualquer forma, eles já gostam de avós, vizinhas, tutores e tutoras mais do que delas -e por aí vai.

Facilmente, as mães detentas vivem o afastamento das crianças não como consequência da punição pelos crimes que elas cometeram, mas, bem mais sofrido, como punição por elas não "merecerem" ser mães -como se os filhos estivessem longe porque elas não souberam e não saberiam ser mães.

As mulheres, qualquer criminologista sabe, agem criminosamente por razões diversas das dos homens. Em regra, matam por paixão amorosa; quando traficam ou assaltam é, frequentemente, para acompanhar o parceiro. Com isso, a prisão feminina é uma espécie de pena do talião: crimes cometidos por amor são punidos pelo sumiço dos homens amados e pelo medo da perda do amor das crianças.

Na época em que trabalhei em instituições psiquiátricas fechadas, quando o expediente terminava e estava na hora de ir embora, no fim do dia, eu era acometido por uma tristeza profunda. Acabava de compartilhar um bom tempo com os que estavam lá internados, e eis que, agora, eu ia embora, para uma casa, uma companhia, o convívio dos amigos. E eles, não; eles ficavam. A tristeza era uma espécie de culpa por abandoná-los no que era, de fato, uma desolação. Pois bem, ao sair da penitenciária do Butantã, não senti nada disso, pois não havia desolação. Não teria como fazer elogio maior à direção do presídio, à equipe que lá trabalha e às detentas que encontrei, pela resiliência de sua vontade de viver.

ccalligari@uol.com.br

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um pouquinho de economia.....

Os 12% de Héracles

A Grécia tem necessidade de apertar a política fiscal em meio a forte recessão, desafio digno do 13º trabalho de Héracles

Fonte: ALEXANDRE SCHWARTSMAN, Folha de São Paulo

DIZIA ARISTÓTELES que a tragédia se caracteriza, entre outras coisas, pela mudança da fortuna do herói, consequência de erro (intencional ou não) cometido no passado, por meio da qual o herói trágico e a audiência obtêm uma revelação acerca da natureza humana (ou da vontade dos deuses). Não me escapa a ironia (outra palavra grega) de essa definição encampar de forma tão completa os desenvolvimentos recentes na eurolândia. A Grécia passa por uma mudança de fortuna, resultado de erros passados, e, como na tragédia, a queda traz uma revelação sobre a natureza da crise.

O problema se manifesta como um aumento considerável dos prêmios de risco associados à dívida helênica. Enquanto escrevo este artigo, o custo de proteção contra um possível calote grego gira em torno de 350 pontos-base (3,5% ao ano para o prazo de cinco anos), vindo de valores ao redor de 100-150 pontos na segunda metade de 2009. Em comparação, o prêmio de risco no caso do Brasil para o mesmo prazo é próximo a 140 pontos, enquanto o argentino é de 1.100 pontos. Esses preços sugerem que mercados consideram haver uma probabilidade razoável de um default grego nos próximos cinco anos.

A razão para tal desempenho parece clara. Enquanto outros países da eurolândia fizeram um esforço para reduzir o endividamento do setor público (a dívida média da região atingiu 66% do PIB no final de 2007), a Grécia entrou na crise com uma dívida próxima a 100% do PIB, ou seja, praticamente sem espaço fiscal para incorrer em novos deficit. Apesar disso, em 2009 o deficit público alcançou 12% do PIB, valor não apenas elevado mas, principalmente, muito superior ao divulgado originalmente pelas autoridades gregas (3,7% do PIB), levando o próprio governo a admitir que, em primeiro lugar, o país sofre de um "deficit de credibilidade".

Em razão do descaso fiscal anterior, a Grécia enfrenta agora a necessidade de apertar sua política fiscal em meio a forte recessão, sofrendo ainda com o aumento do custo de capital associado à elevação do risco-país no contexto de uma taxa fixa de câmbio. Em outras palavras, o país está condenado a uma política fiscal pró-cíclica, por conta da falta de cuidado anterior. Nem no Hades, onde Tântalo passa fome e sede em meio à água e iguarias e Sísifo empurra continuamente sua pedra morro acima, seria possível imaginar punição mais rigorosa. Reduzir o deficit nessas condições seria um desafio digno do 13º trabalho de Héracles.

Que o diga a Argentina, que, sob circunstâncias semelhantes, em 2001, tentou heroicamente ajustar suas contas, embora sua dívida fosse, a bem da verdade, consideravelmente menor do que a grega. Por outro lado, nossos vizinhos não faziam parte de um clube exclusivo, disposto, aparentemente, a financiar o país nesse período delicado, desde que os gregos se comprometam com um pacote duríssimo de austeridade fiscal.

E, após a catarse, o que se revela para a audiência? Acima de tudo que países ganham e perdem facilmente os favores do mercado. Quando a fortuna muda, não falta quem aponte os diversos erros cometidos nos anos de felicidade como motivo para a tragédia recente. Descuidos fiscais e truques contábeis, que parecem modestos nos anos de felicidade, têm o mau hábito de voltar para nos assombrar quando a maré vira, fato que não deveria ser esquecido em nenhum momento por nenhum gestor de política econômica, mas frequentemente é.

À luz disso, só nos resta concluir, como Ésquilo: "Não considere um homem feliz até que morra". Os antigos helenos sabiam das coisas.

ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 47, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma biblioteca e os anjos ajoelham

Uma biblioteca e os anjos ajoelham

Fonte: Ignácio de Loyola Brandão, Estado de Sao Paulo

No metrô, lia o jornal e pensava como é pequeno e pretensioso esse goleiro Rogério Ceni menosprezando a jogada de Robinho e o gol do Santos. Ele não viu mérito no Robinho, viu desatenção da sua zaga. Aliás, o Ceni poderia se aposentar com mais dignidade. Então, cheguei ao meu destino, Carandiru. Lá está a Biblioteca São Paulo. Muitos anos atrás, quando Maria do Rosário, minha mãe, mulher simples de Araraquara, exclamava ao saber que uma coisa boa tinha acontecido: "Os anjos estão ajoelhados." Na segunda-feira, quando saltei do metrô e atravessei a extensa e ensolarada Praça da Juventude, rumo à biblioteca, percebi que no céu os anjos estavam ajoelhados e provavelmente as 11 mil virgens também, agradecendo por mais uma biblioteca nesta cidade. Confesso que, além dessas legiões espirituais, também os escritores, professores, leitores estão agradecendo. Quem abre uma biblioteca deve receber indulgência plenária. Quantos ainda sabem o que são indulgências? Neste Brasil, onde livros custam caro, as bibliotecas são a solução. Na infância e juventude, tive a sorte de contar com duas. A do meu pai onde li de Quo Vadis a Os Sertões, de Robinson Crusoe a A Ilha do Tesouro, de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, de Luiz Edmundo (e como eu gostava), a Ouro Sobre Azul, de Taunay. Também não me esqueço que li em "profundidade" Nossa Vida Sexual, de Fritz Khan, que meu pai escondia atrás dos livros.

Depois, veio a fase da biblioteca municipal que tem o nome de Mário de Andrade. Almoçava, voava para a Prefeitura e me enfiava na mesa, devorando livros. Lemos, meu grupo e eu, tudo o que era legível. Depois, diversificamos. Hugo Fortes, que seria advogado, transitou pela Revista dos Tribunais, porque lá havia, sem que atinássemos com a razão, centenas de volumes. Sergio Fenerich circulou por dentro dos 116 volumes de Camilo Castelo Branco. Os livros de Jorge Amado ficavam trancados numa gaveta, menores não podiam levar, ler. Sei o que é uma biblioteca, sua aura, seu espírito. Eu me fiz dentro delas, muitas vezes lendo ao lado de Luis Roberto Salinas Fortes, Zé Celso, Marco Antonio Rocha, Wallace Leal ou Sidney Sanches que mais tarde foi desembargador e presidiu o Supremo Tribunal Federal. Coube a ele decretar o impeachment do Collor. Quem pode com Araraquara...? Que responda o Celso Lafer, que conhece como funcionam os tentáculos da cidade. Ou FHC, que levou a Ruth de lá.

Na Biblioteca São Paulo, circulando pelo saguão tomado pela luz do sol (Viva! Uma biblioteca iluminada, ventilada, não soturna), antes de subir para a ala dos adultos, vi as fileiras de computadores e os montes de livros infantis ao alcance das mãos. E gibis, hoje histórias em quadrinhos. As crianças poderão agarrar, ler, olhar, mexer, virar, que livro é feito para ser manipulado, assim é que a gente se apaixona por objetos e pessoas. Tocando, cheirando, sentindo, deixando-se penetrar. Basta de bibliotecários proibindo, não mexa, não rasgue, não leve, não estrague, não deite no chão, não, não, não. Biblioteca é divertimento. Claro, alguns deveres, algum sentido de responsabilidade. Uma vez, décadas atrás, ao me separar, minha ex-mulher mudou-se para Campo Grande, os meninos entraram para a escola. Fui visitá-los e Daniel naquele dia demorou para o almoço. Quando entrou em casa estava "" da vida. Tinha feito alguma transgressão e a diretora o prendeu... na biblioteca. Naquela escola, a biblioteca era sinônimo de punição. Castigo? Biblioteca!

Bibliotecas são lugares de prazer, convívio, leitura, diversão, devedês, cedês, teatro, música, computador, paquera, tudo o que agita o mundo. Nada de solenidades. O espaço da Biblioteca São Paulo, estatal, repousada sobre um verde luminoso, dissolverá os fluidos deixados pelo presídio. Bela ideia a de aproveitar o lugar, imenso, agora aconchegante, dirigido por Magda Montenegro. Escritores mesmo vi poucos na inauguração: Celso Lafer, Jorge Caldeira, Fernando Henrique Cardoso, José Gregori. Megalivreiros como Samuel Seibel e Pedro Herz. Acrescento Nina Horta com seus livros deliciosos, além dos canapés que ela serviu. O de papoula, ah, meu Deus! Tomara servissem todos os dias. Bibliotecárias vieram de Sorocaba, Batatais e outras cidades. E o Luis Alves, da editora Global, o Hubert Alquéres e o Carlos Haddad da Imprensa Oficial, o Goldfarb, que comanda o Jabuti (vai dar um Jabuti para a nova biblioteca?), a Roseli, da Câmara Brasileira do Livro, a Mona Dorf ? tão lindinha ?, que tem programa de literatura na internet (Letras e Leituras www.letraseleituras.com.br). Livros e biblioteca foram a festa no começo da semana, tomara continuem a ser pelo ano, pela vida.

Alguém veio me perguntar se concordo com que moradores de rua possam retirar livros. Sim, se quiserem, também eles têm o direito de ler. E se roubarem? Povo não rouba livro, respondi, em geral quem rouba é intelectual e estudante universitário duro. Já dei muito livro a morador de rua aqui na João Moura. Dei até óculos. Tinha um que lia e relia a Bíblia, devia saber de cor. Dei a ele John Updike, Antonio Torres, Menalton Braff, Luiz Ruffato, Márcia Denser, Joca Reiners, Ivana de Arruda. Adorou. Quem conhece Brasília sabe que ao longo da W 3, que atravessa a cidade, os pontos de ônibus abrigam as estantes do centro cultural T Boné, com centenas de livros. Você apanha, leva, devolve outro dia, em outro ponto. As estantes ficam abertas dia e noite. Ninguém rouba, ninguém destrói. Acreditemos no povo.

O professor aloprado

O professor aloprado

Nelson Motta, Estado de São Paulo

Hoje em dia, quase tão importante quanto a 4ª Frota americana são os canais de televisão a cabo que nós recebemos aqui. Eles realizam, de forma indolor, um processo de dominação muito eficiente. Despejam toda essa quantidade de esterco cultural.

Quem adverte é o professor Marco Aurélio Garcia, nosso coministro das Relações Exteriores. Chávez não diria melhor. E faria muito melhor, fecharia logo essas fábricas de esterco. E o povo poderia se instruir e se divertir à vontade com a Telesur, a TV Brasil e a Cubavision. Por que não instituir aqui um "controle social do cabo"?

Para o professor, os milhões de brasileiros que pagam caro por uma assinatura, e todos que a aspiram, até os petistas, são perfeitos idiotas latino-americanos que, inocentemente, se deixam seduzir pelas mensagens capitalistas dos seriados, filmes, noticiários, entrevistas e até desenhos animados e séries de animais: como capitalistas selvagens, os mais fortes comem os mais fracos. Não há justiça na natureza.

Embora reconheça que "estamos vivendo um momento grave do ponto de vista de uma cultura de esquerda, com a crise do socialismo real", o professor acusa o lixo cultural a cabo de agravá-la. Mas por que as esquerdas não conseguem fazer veículos de comunicação de massa informativos e divertidos, atraentes e populares, por mais que tentem e por maiores que sejam as verbas e a "vontade política" dos governos?

A vontade popular é sempre outra: novelas, seriados, filmes, programas de auditório, humorísticos, para se divertir um pouco depois do cotidiano duro dos trabalhadores brasileiros. Embora a elite de esquerda ache pobre, vulgar, alienante e de mau gosto o trabalho de tantos profissionais do entretenimento, depois de ralar o dia inteiro ninguém quer ouvir um professor falando da crise do socialismo real e das perspectivas do socialismo do século 21. Ou um debate sobre o etanol e o pré-sal. Na TV, o povo está no poder e, armado de seu controle remoto, diz que não quer ideologia, quer emoção. Mas eles insistem.

Nunca subestimem a estupidez humana, advertiu o professor. Não há como discordar.

Pátio de escola

Pátio de escola

Fonte: Luis Fernando Veríssimo, Estado

Pastores de igrejas fundamentalistas americanas que combatem o governo do Barack Obama estão dizendo a seus fiéis que é permitida a chamada prece imprecatória. Ou seja, rezar pela morte de alguém. Alguns milhares de cristãos devem estar pedindo a Deus que leve o Barack e salve os Estados Unidos do socialismo e de outras obras do diabo, como assistência médica para todos. Consolemo-nos, portanto. Mesmo no começo de um ano eleitoral não se tem notícia de ninguém no Brasil que esteja rezando pela morte de um adversário. Talvez uma crisezinha de pressão, mas nada além disso. Na verdade, mais do que moderado, o debate político brasileiro está decididamente infantil. O artigo do Fernando Henrique convidando à comparação entre seu governo e o do Lula e a resposta do Planalto reduziram o embate a um desafio de pátio de escola. Meu social é maior do que o seu! Vai acabar com todo o mundo no gabinete do diretor.

O PT não quer outra coisa do que a comparação. Em primeiro lugar porque Serra representando o governo FHC é menos preocupante do que o Serra como novidade. E também porque, como mostrou aquela insuspeita reportagem da Folha de S. Paulo na terça-feira, no puro cotejo de números com números, reconhecidos todos os méritos do governo anterior, o atual leva vantagem. E seu social é maior.

Mas o importante é que o ano eleitoral começa sem ninguém querendo morder a carótida de ninguém. Ou pedindo que Deus intervenha no processo.

LÍNGUAS

Certa vez fizeram uma pesquisa entre 15 mil ingleses que concluiu que a palavra mais bonita do seu idioma é "serendipity". Tradução imprecisa: a sensação de descobrir algo desejável por acidente. Entre as outras palavras bem votadas, algumas obviedades - "love", "peace", "hope", "faith", "compassion", "home" - amor, paz, esperança, fé, compaixão, lar, tudo o que a gente quer - e algumas curiosidades, como "onomatopoeia" e "football". E "Jesus" e "money" empatados em décimo lugar. Acho que os ingleses votaram mais na coisa ("fuck" não fez feio) do que no seu nome. "Football" bonita? Pensando bem, uma palavra terminada em "dipiti" a mais bonita de todas? É preciso ser inglês.

Como seria uma lista parecida no Brasil? Meu voto para a palavra mais bonita do português iria para "sobrancelha". Segundo lugar, "sândalo". A mais feia? "Seborreia". Pior, até, do que "onomatopeia". Desconfio que nós, os latinos, pesquisados, tenderíamos mais para o nome do que para a coisa, para o som da palavra mais do que para o que ela representa. Nossas línguas seriam mais abstratas do que o utilitário inglês e o preciso alemão, que nunca são falados com o gosto, com o puro prazer de saborear a pronúncia, que os italianos falam a sua, por exemplo. Mas teses sobre os povos e sua relação com seus idiomas são sempre arriscadas. O Jorge Luis Borges flagrou um paradoxo: os escritores mais representativos de cada país são sempre pouco característicos do seu povo. Nada menos típico da Inglaterra do "understatement" do que o espalhafatoso Shakespeare, que Borges considerava mais italiano ou judeu do que inglês. Nada menos alemão, com sua tolerância, seu antifanatismo e sua indiferença ao conceito de pátria, do que Goethe. Victor Hugo, com seus "grandes cenários e vastas metáforas", segundo Borges, tem pouco do especifismo francês. E a Espanha é representada por Cervantes, um contemporâneo da Inquisição tolerante, um espanhol que satirizava a paixão. No fim todo o mundo, quando pensa formalmente na língua que fala, pensa em outra língua.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O sempre desequilibrado humano

O sempre desequilibrado humano

Fonte: Roberto da Matta, Estado de São Paulo, 10 fev. 2010

Tudo o que é humano é complicado; ou melhor: não pode ser simples, senão não é humano. O humano é impreciso, enigmático, ambíguo, pérfido e, acima de tudo, espesso como os nevoeiros e as peças de Shakespeare. É como as máscaras de carnaval e as cebolas: múltiplo; e tem muitas caras, varandas, porões e infindáveis corredores. Tem também o abraço solar, a mão aberta e calorosa, o sorriso que cativa e o beijo apaixonado que promove a vida. Tudo nasce de uma mesma fonte da qual jorra igualmente ódio, inveja, coragem e ressentimento. O transitório que, para Freud e Thomas Mann é tudo, promove a busca de consistência e do eterno. A saudade articula o instantâneo que é vida e a eternidade feita do nada. Os deuses nos invejam não só porque não existiriam sem nossas preces e oferendas, pois eles precisam de nós tanto quanto nós necessitamos deles, mas porque vivemos na transitoriedade e na dúvida do aqui agora, do ser ou não ser e do você e eu que engendram tenacidade, desejo, amor, lealdade e honra. Aquele "fazer ou morrer" da canção As Time Goes By. Não estamos aqui para brincadeiras e, diferentemente dos deuses, não temos tempo a perder. Exceto no carnaval...

No labirinto da vida, como na velha Creta de Teseu, ou se encontra uma saída ou se dá de cara com o Minotauro. O caso Lula é exemplar. Ele tem mais popularidade do que qualquer outro presidente. Ademais, como Prometeu (sem trocadilho), ele roubou a mais decisiva contribuição à modernidade democrática brasileira ? o Plano Real. Virou pai da revolução realizada pelo satanizado FHC que, como manda o paradoxal esquecimento humano, era estigmatizado pelo PT como "herança maldita". Hoje, vendo o Lula como cidadão do mundo, fazendo abertamente uma campanha política que os juízes não enxergam, transferindo votos para sua chefe da Casa Civil e rompendo com o dogma da transferência de votos que os marqueteiros “esses derradeiros matemáticos do humano” diziam ser impossível, julguei que o "cara" estava num mar de rosas. Mas eis que ele sofre um "piripaque". Eu medito: só os seres humanos sofrem tais reviravoltas. Só eles podem ficar mal quando tudo aparentemente vai bem. Seria uma premonição, por que quem tudo promete não consegue decidir? Ou seria algo sem importância? Mas há mesmo algo sem importância quando se trata do humano? Os tigres de dente de sabre quanto mais matavam, mais lhes cresciam e afiavam os dentes. Entre nós, porém, quanto mais sucesso, mais o fracasso ronda nossa casa; quanto mais subimos, mais depressa descemos; quanto mais gozo, mais angústia e sofrimento. O amor faz sangrar como os animais sacrificados. E a morte, sendo o nosso destino, só se desliga da vida pela paixão que ilude e vira o mundo pelo avesso.

Foi só a partir da institucionalização do individualismo que começamos a dizer abertamente que "Estamos muito bem, obrigado!". Antigamente, os brasileiros eram proibidos de assumir toda e qualquer felicidade. Não pegava bem ser feliz num mundo inseguro, desigual e injusto. Todos iam de mal a pior, como aqueles personagens de Machado de Assis. Aprendi a insistir no "vou indo" e, quando muito, soltar um "mais ou menos" que, nos Estados Unidos, assustava meus amigos crentes no "the sunny side of the street" (no lado ensolarado da rua). Se para nós, sofrer é mais ou menos normal, para eles o direito à felicidade é um projeto possível, autoevidente e constitucional. Em minhas preces eu rogo pelo amor e pela felicidade; meus amigos americanos, porém, nascem com a certeza de tudo isso e o céu também.

Vejam vocês: o sujeito se livra de um apuro apenas para descobrir que passou de um problema para outro. “Controlei finalmente o meu peso ? disse-me a ex-gordinha Selma” , só que não como mais!"

O antropólogo e escritor maranhense Nunes Pereira, de saudosíssima memória, era meu amigo e me visitava de quando em vez quando eu trabalhava num museu. Fazia minha alegria, porque não é fácil trabalhar no meio de pesquisadores, coleção de ossos, bichos empalhados e múmias. Um dia, ele me contou o caso de um médico amazonense desgostoso com a depravação reinante na civilização da borracha que fazia de Manaus um centro de esbórnia. Constatado o hedonismo da capital amazonense resolveu, como um personagem de Joseph Conrad, renunciar à fortuna e aos vícios confortáveis, para viver em simplicidade e pureza. Afastou-se de Manaus até chegar a um derradeiro povoado, limite entre o civilizado impuro e o selvagem virginal. Ali, pegou uma canoa e remou em direção a uma casa de palafita situada no mais fundo da mata. Ao aproximar-se, vislumbrou formas estranhas num barranco. De perto, discerniu enojado: era um caboclo que copulava com um mamífero cetáceo de água doce “um boto-fêmea!” no barranco. A bestialidade no meio da selva mais pura, como queriam ele e José de Alencar, era muito mais ofensiva do que as perversidades pagãs dos lupanares de Manaus. Depois de tanto fugir, voltara ao ponto de partida. A fábula era sempre arrematada com um sorriso e o seguinte: Ele aprendeu que onde há o humano há o depravado e o perverso. Ou o desvio seria apenas um episódio na vida de um bicho não declinável, mas que se pensa como tal?

Durma-se com um pagode desses...

Durma-se com um pagode desses...

Fonte: Arnaldo Jabor, 09 fev. 2010

No início dos anos 60, como a política real era chata e dava muito trabalho (porta de fábrica, panfletos e, depois, coragem para morrer), nós, artistas "revolucionários", transferimos para a "Cultura" ? com "c" maiúsculo ? nosso sonho de mudança histórica. Iludíamo-nos com isso; o Brasil ia ser "salvo" por nós, em uma espécie de amanhecer iluminista. O presente era duro, mas o subdesenvolvimento nos santificava; nossa pobreza era uma forma de "superioridade" franciscana, mais autêntica que os "falsos" problemas europeus, tais como a angústia do pós-guerra.

Dizíamos: "A angústia diante do absurdo é frescura de rico." A estética da fome nos enobrecia; a fome dos outros, claro.

O subdesenvolvimento era nossa única riqueza. O mundo era dividido em "centro" versus "periferia", numa espécie de bem e mal geográficos. Sentíamo-nos como mártires enfrentando o Leão da "Metro".

Usávamos essa divisão entre "colônia" e "metrópole" como pretexto para nos absolver e camuflar as doenças hereditárias de nossa formação, tais como: a cordialidade corrupta, o escravismo na alma, a falsa democracia, todos os vícios de uma formação patrimonialista ficavam perdoados por nossa condição de "vítimas dos americanos".

Achávamos até "bonitinha" nossa incompetência ? um charme mestiço; achávamos a "doce" esculhambação brasileira quase uma forma de "originalidade" ? uma poética da precariedade. O desrespeito à coisa pública era visto como atos da nossa simpática tribo de "Macunaímas", contra a caretice "organizada" dos países desenvolvidos ? "os grandes culpados".

Falava-se de "revolução" como de Papai Noel. Não havia futuro algum para aquele janguismo mágico, coroado por frases bombásticas de Darcy Ribeiro, mas, mesmo assim, achávamos que ia rolar um socialismo dançante sem sangue, sem esforço, uma revolução doce e fácil "feita pelo Governo" (até para a subversão dependíamos do Estado...) Poucos nomes nos foram tão apropriados como "esquerda festiva".

A ditadura veio como uma inevitável porrada histórica. Mas, mesmo durante a ditadura, os mais burros persistiram em seu destino de "vítimas santificadas" do imperialismo, agora confirmado pela "realidade objetiva". Falo de artistas e nerds, porque na luta direta houve vários heróis suicidas.

Outros artistas e intelectuais aprenderam com a desgraça de 64, descobriram que o buraco é mais em cima e que não estávamos preparados para a tal "revolução mágica".

Já tínhamos tido, é verdade, várias cepas de cultura: a antropofagia de Oswald, tínhamos tido o concretismo e seu fecundo formalismo influenciando uma estética mais ambígua no Cinema Novo e no Tropicalismo. Esses movimentos relativizaram as certezas nacional-populistas. Glauber, Caetano e Gil previram a globalização da economia. Mas, mesmo com esquematismos de um lado e complexidades de outro, a cultura brasileira continuou com um forte élan finalista, com um porto ao longe, um paraíso ao fim da linha.

Ou seja, entre "esquemáticos" e "complexos", entre "dependentes" à Cebrap ou "onipotentes" à ISEB, continuávamos a cultivar um projeto de país, com um sebastianismo denegado. "Nova esquerda" ou "velha esquerda", tínhamos um encontro marcado com o futuro para nosso Estado-Nação. Cultura precisa de esperança, mesmo se vã.

Agora, o trauma da globalização foi mais terrível para artistas e intelectuais esperançosos do que a ditadura de 64.

A ilusão de "futuro cultural" compensava nossa impotência política; agora, nem mais isso. Tiraram-nos a doce ilusão de "controle" da História e da "evolução dialética".

Estamos passando por um túnel de lixo, talvez a parte suja de uma "destruição criadora". A dor para mim e minha geração de artistas é imensa, pois queríamos construir a utopia luxuosa de um país maravilhoso.

De repente, nos vimos com uma nação sem futuro claro e com um enorme presente de trilhões de informações banais. Começou a grande tempestade de conceitos sem rumo nos twitters e facebooks. A transcendência bateu as asas; ficamos apenas com o dia a dia; ficamos "vazios" como os americanos que trabalham como formigas e cuja única utopia é o mercado e a aposentadoria. A "macdonaldização" do mundo nos tirou o charme de atores de um processo, mesmo como vítimas "exploradas". Hoje viramos fregueses de um mercado. E com a massificação geral do audiovisual, com a invasão de bagulhos culturais, com o acesso da ignorância aos media, estamos assistindo à vitória da verdadeira cultura brasileira: o triunfo do analfabetismo democrático.

A sordidez nacional que a democracia exibe (na política e na cultura) ao mesmo tempo nos anestesia e nos desperta (oh... contradição...) O Brasil está mais louco, mais vulgar, mais nu, mas também muito mais interessante do que há 40 anos, até porque, mesmo ignorantes, estamos mais conscientes de nossa própria chanchada. Mergulhamos nas irrelevâncias em busca de alguma resposta.

No entanto, escrevendo isso, tive um estalo: há uma nova transcendência sob esta bandalheira, uma totalidade feita de irrelevâncias.

A democracia nos trouxe uma revolução de rica vulgaridade. Temos a democratização de uma cultura de baixo consumo, um feio carnaval que não sabemos ainda como criticar, a não ser como "brega", de nariz torcido. E temos de dormir com pagodes desses...

A verdade irônica é que nunca tivemos tanta produção cultural, de baixa extração (hélas!...), com uma euforia cretina, brutal, mas autêntica. Há uma grande "vitalidade-axé" neste cafajestismo cultural. Não sei em que isso vai dar, mas o futuro chegou: sujo, grosso, mas chegou. O povo se expressa, sem dirigismo nem utopias, no pleno exercício de sua sagrada ignorância. Apesar de eu estar com os cabelos em pé, no meu horror de "utópico deprimido", estamos vivendo uma verdadeira revolução cultural.

Como Orwell escreveu na última frase de 1984: "Finalmente, ele amava o Big Brother..." Eu também.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Pelo direito de não opinar

Pelo direito de não opinar

por Marcelo Rubens Paiva, 07 fev. 2010

Segunda-feira. Ele acordou e, do nada, como se tivesse desistido, decidiu não ter mais opiniões. Sobre nada.

Já no café da manhã, não soube responder se o pão estava passado, e o queijo, coalhado. Comeu apenas uma fatia de mamão. E não decidiu entre adoçante ou açúcar. O café desceu amargo.

Ao trabalho. O taxista perguntou se ele preferia pela Marginal ou por dentro, pela Lapa. “Qual caminho o senhor sugere?”, perguntou, simulando um contato rotineiro. O helicóptero da rádio informara que a Marginal estava parada, avisou o motorista: “Vamos por dentro?”.

Ele não respondeu. Não sabia responder. Não achava nada. O taxista repetiu: ”Pela Lapa?”. Nada. Nenhuma resposta.

O cara deu a partida, engatou a primeira, foi percorrendo devagar, esperando a decisão do passageiro, que não vinha, e ele mesmo, o taxista, decidiu pela Lapa, mas sempre alerta, esperando a ordem de desviar para a Marginal, que não veio.

No elevador do escritório. “Sobe ou desce?”, escutou. Nenhuma resposta. A ascensorista perguntou o andar. Nada. Ele entrou e ficou no canto, parado. “O andar?”, repetiu. Ele gaguejou apenas: ”Não sei...” Ela, surpresa, esperou.

Até outro passageiro entrar e pedir: “Sobe”. E ele foi, subiu. E desceu. Pois não pararam no seu andar. Só quando coincidiu de alguém pedir o seu andar, ele pode sair do elevador.

Ao entrar no escritório, a secretária logo mandou um: “Bom-dia.” Ele olhou e: “É? Não sei. Pode ser. É, pode ser. Você acha?”

Nem sentou em sua mesa, o telefone tocou. Um instituto de pesquisa. Queriam saber em quem ele votaria.

“Não sei”, respondeu.

“Ah... O senhor não se decidiu entre o governo e a oposição?”

“Não sei.”

“Vai votar em branco?”

“Acho que não.”

“Nulo?”

”Claro que não! Nunca votei nulo!”

“Muito bem, então, o senhor é um indeciso, deixa eu marcar, in-de-ci-so.”

“Veja bem, não sou um indeciso, não sou nada, eu não acho nada.”

“Mas quem não acha nada é indeciso.”

“Não. Indeciso é um cara hesitante.”

“Hesitante?”

“É quem ainda tem dúvidas, não escolheu. Eu não vou escolher, nunca mais, porque não tenho mais opiniões, não acho nada.”

“Não? Por quê?”

“Porque não consigo.”

“Coitado...”

Foi almoçar. Mas pela escada. Evidentemente, não conseguiu escolher a promoção do quilo. O fato de não ter mais opiniões dificultava o de tomar decisões.

Ficou minutos diante do balcão. Até colocar todas na bandeja, da promoção 1 àquela mexicana apimentada. Como não sabia por qual começar, comeu só batatas fritas.

Na volta, a secretária panicou. O telefone não parara. A notícia vazou: descobriram que ele era um homem que não achava nada.

Deu a primeira entrevista. Para uma rádio: “Como se sente não tendo opiniões? O acha de não achar nada?”.

A secretária apontava para fotógrafos que escalavam o prédio em frente para flagrá-lo sem opiniões. O porteiro avisou que equipes de TVs. queriam subir.

Naquele dia, não se falou de outra coisa. E ele foi a chamada de muitos telejornais: ”Daqui a instantes, um homem afirma não ter opinião sobre nada.”

Sua semana foi tumultuada. Revistas de famosos queriam fotografá-lo com o look de quem não tem opinião. Apareceram muitos convites para palestras em departamentos de marketing de grandes empresas. “Mas o que vou dizer, se não tenho nada a dizer, não acho nada?”. Era isso que queriam, apontar que havia falhas no sistema, havia um indivíduo que não era absorvido pela propaganda.

Entidades o criticavam. Um alienado. Foi acusado de mau exemplo à juventude e um estorvo na sociedade de consumo. Mas algumas ONGs ligadas ao movimento antiglobalização passaram a apoiá-lo.

Organizaram uma passeata diante do seu escritório. “Pelo direito de não achar nada”, gritavam, auxiliados por membros do movimento contra a intolerância sexual, anarquistas, punks, chavistas, movimento em defesa do Teatro Oficina, da Mata Atlântica e dois bebuns.

Diante de sua janela, ele apareceu. Aplaudiram. Pediram para se pronunciar. Pararam para escutar. Ele gritou:

“Melhor vocês apertarem o passo! Acho que vai chover!”

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Caros generais, almirantes e brigadeiros

Caros generais, almirantes e brigadeiros

Por MARCELO RUBENS PAIVA

Eu ia dizer "caros milicos". Não sei se é um termo ofensivo. Estigmatizado é. Preciso enumerar as razões?

Parte da sociedade civil quer rever a Lei da Anistia. Sugeriram a Comissão da Verdade, no desastroso Programa Nacional de Direitos Humanos, que Lula assinou sem ler. Vocês ameaçaram abandonar o governo, caso fosse aprovado.

Na Argentina, Espanha, Portugal, Chile, a anistia a militares envolvidos em crimes contra a humanidade foi revista. Há interesse para uma democracia em purificar o passado.

Aqui, teimam em não abrir mão do perdão. E têm aliados fortes, como o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que apesar de civil apareceu num patético uniforme de combate na volta do Haiti. Parecia um clown.

Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes, tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura. Devem ter navegado na contracultura, dançado Raul Seixas, tropicalistas. Usaram cabelos compridos, jeans desbotados? Namoraram ouvindo bossa nova? Assistiram aos filmes do Cinema Novo?

Sabemos que quem mais sofreu repressão depois do Golpe de 64 foram justamente os militares. Muitos foram presos e cassados. Havia até uma organização guerrilheira, a VPR, composta só por militares contra o regime.

Por que abrigar torturadores? Por que não colocá-los num banco de réus, um Tribunal de Nuremberg? Por que não limpar a fama da corporação?

Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no Haiti.

Sei que nossa relação, que começou quando eu tinha 5 anos, foi contaminada por abusos e absurdos. Culpa da polarização ideológica da época.

Seus antecessores cassaram o meu pai, deputado federal de 34 anos, no Golpe de 64, logo no primeiro Ato Institucional. Pois ele era relator de uma CPI que investigava o dinheiro da CIA para a preparação do golpe, interrogou militares, mostrou cheques depositados em contas para financiar a campanha anticomunista. Sabiam que meu pai nem era comunista?

Ele tentou fugir de Brasília, quando cercaram a cidade. Entrou num teco-teco, decolou, mas ameaçaram derrubar o avião. Ele pousou, saltou do avião ainda em movimento e correu pelo cerrado, sob balas.

Pulou o muro da embaixada da Iugoslávia e lá ficou, meses, até receber o salvo-conduto e se exilar. Passei meu aniversário de 5 anos nessa embaixada. Festão. Achávamos que a ditadura não ia durar. Que ironia...

Da Europa, meu pai enviou uma emocionante carta aos filhos, explicando o que tinha acontecido. Chamava alguns de vocês de "gorilas". Ri muito quando a recebi.

Ainda era 1964, a família imaginava que fosse preciso partir para o exílio e se juntar na França, quando ele entrou clandestinamente no Brasil.

Num voo para o Uruguai, que fazia escala no Rio, pediu para comprar cigarros e cruzou portas, até cair na rua, pegar um táxi e aparecer de surpresa em casa. Naquela época, o controle de passageiros era amador.

Mas veio a luta armada, os primeiros sequestros, e atuavam justamente os filhos dos amigos e seus eleitores - ele foi eleito deputado em 1962 pelos estudantes.

A barra pesou com o AI-5, a repressão caiu matando, e muitos vinham pedir abrigo, grana para fugir. Ele conhecia rotas de fuga. Tinha um aviãozinho. Fernando Gasparian, o melhor amigo dele, sabia que ambos estavam sendo seguidos e fugiu para a Inglaterra. Alertou o meu pai, que continuou no País.

Em 20 de janeiro de 1971, feriado, deu praia. Alguns de vocês invadiram a nossa casa de manhã, apontaram metralhadoras. Depois, se acalmaram. Ficamos com eles 24 horas. Até jogamos baralho. Não pareciam assustadores. Não tive medo. Eram tensos, mas brasileiros normais.

Levaram o meu pai, minha mãe e minha irmã Eliana, de 14 anos. Ele foi torturado e morto na dependência de vocês. A minha mãe ficou presa por 13 dias, e minha irmã, um dia.

Sumiram com o corpo dele, inventaram uma farsa (a de que ele tinha fugido) e não se falou mais no assunto.

Quando, aos 17 anos, fui me alistar na sede do 2º Exército, vivi a humilhação de todos os moleques: nos obrigaram a ficar nus e a correr pelo campo. Era inverno.

Na ficha, eu deveria preencher se o pai era vivo ou morto. Na época, varão de família era dispensado. Não havia espaço para "desaparecido". Deixei em branco.

Levei uma dura do oficial. Não resisti: "Vocês devem saber melhor do que eu se está vivo." Silêncio na sala. Foram consultar um superior. Voltaram sem graça, carimbaram a minha ficha, "dispensado", e saí de lá com a alma lavada.

Então, só em 1996, depois de um decreto-lei do Fernando Henrique, amigo de pôquer do meu pai, o Governo Brasileiro assumiu a responsabilidade sobre os desaparecidos e nos entregou um atestado de óbito.

Até hoje não sabemos o que aconteceu, onde o enterraram e por quê? Meu pai era contra a luta armada. Sabemos que antes de começarem a sessão de tortura, o brigadeiro Burnier lhe disse: "Enfim, deputadozinho, vamos tirar nossas diferenças."

Isso tudo já faz quase 40 anos. A Lei da Anistia, aprovada ainda durante a ditadura, com um Congresso engessado pelo Pacote de Abril, senadores biônicos, não eleitos pelo povo, garante o perdão aos colegas de vocês que participaram da tortura.

Qual o sentido de ter torturadores entre seus pares? Livrem-se deles. Coragem.