terça-feira, 16 de março de 2010

O colecionador

O colecionador

Morto no último dia 28, o bibliófilo José Mindlin fazia parte de uma generosa estirpe de pessoas que preservam e partilham o saber

PETER BURKE

COLUNISTA DA FOLHA, Caderno Mais!, 14 mar. 2010

José Mindlin (1914-2010) foi o mais recente e, esperemos, não o último integrante de um grupo de colecionadores de livros, possuidores de interesses acadêmicos, que se mostram generosos para com outros estudiosos.

Várias grandes bibliotecas públicas foram, em sua origem, bibliotecas particulares. A Biblioteca Britânica, por exemplo, começou como Biblioteca Real, a coleção particular do rei Jorge 3º, enquanto a Biblioteca Nacional da França foi, até a Revolução Francesa, a Biblioteca Real francesa.

A Biblioteca Morgan, em Nova York, foi anteriormente a coleção particular do banqueiro John Pierpont Morgan (1837-1913), transformada em instituição pública pelo filho dele, em 1924.

Contudo, esses exemplos ilustram como livros, assim como obras de arte, com frequência são colecionados com finalidades exibicionistas -em outras palavras, mais para impressionar outras pessoas que para uso ou desfrute próprios de seus donos.

O rei francês Luís 14, por exemplo, não se interessava especialmente pela leitura, mas seus assessores políticos sugeriram que montar a biblioteca real seria uma maneira de fomentar sua reputação fora do país, de associar seu nome e o da França ao conhecimento e à civilização.

Jorge 3º, da Inglaterra, tampouco foi um intelectual, embora se interessasse por livros sobre agricultura. Sua biblioteca também foi montada mais para ser mostrada que para seu próprio uso.

Contrastando com isso, porém, algumas grandes bibliotecas particulares foram formadas porque um indivíduo determinado não apenas tinha paixão por livros, especialmente livros sobre determinados assuntos, como era dotado dos meios econômicos para acumular uma bela coleção. A seguir, eu gostaria de comparar a biblioteca de Mindlin com quatro coleções que já foram particulares, embora todas tenham se tornado públicas ou sido incorporadas a bibliotecas abertas ao público.

Livros não lidos

Duas dessas coleções foram formadas na Europa e duas no Novo Mundo. Pertenceram no passado a lorde Acton, Aby Warburg, John Carter Brown e Manoel de Oliveira Lima.

Lorde Acton (1834-1902), que lecionou história na Universidade de Cambridge, foi um inglês incomumente cosmopolita (de ascendência parcialmente alemã) cuja riqueza herdada lhe permitiu comprar tantos livros quanto quis, sobretudo livros de história. Um estudioso que o visitou em Cambridge ficou impressionado com os livros que enchiam a sala em que Acton o recebeu, observando que muitos deles tinham pedaços de papel marcando uma página em especial, fato que sugeria que os livros teriam sido usados.

Mas ele também havia recordado que os pedaços de papel normalmente estavam nas primeiras páginas de cada livro, como se Acton não tivesse tido tempo de lê-los até o final. Já usei em vários momentos livros da coleção de Acton, que hoje faz parte da Biblioteca Universitária de Cambridge e, por várias vezes, tive que cortar as folhas de um livro cujo dono evidentemente nunca o lera.

Como todos os grandes colecionadores, Acton possuía mais livros do que poderia ter lido na vida. Afinal, se lermos um livro por dia durante 40 anos, o total chegará a 14.600 livros, sendo que uma grande coleção particular pode conter até 40 mil ou 50 mil volumes.

Mesmo assim, a biblioteca de Acton foi formada para pesquisas, mais que para exibição, fato condizente com o interesse de seu dono pela história da Europa, especialmente a partir do final da Idade Média.

O filho do banqueiro

Aby Warburg (1866-1929) foi o filho mais velho de um banqueiro alemão. A expectativa era que seguisse o caminho de seu pai, trabalhando na empresa familiar, mas ele queria ser acadêmico.

Então, entregou o banco a seu irmão, sob uma condição -que ele pagasse por todos os livros que Aby quisesse, pelo resto de sua vida.

O irmão não deve ter imaginado quantos livros Aby iria querer ou precisar -tudo o que pudesse encontrar sobre a história da tradição clássica e, de modo mais geral, que fizesse parte da "ciência da cultura" ("Kulturwissenschaft").

Warburg tinha prazer em receber outros estudiosos em sua biblioteca, que se tornou semipública em 1914 e então foi convertida em um instituto, transferido de Hamburgo para Londres após a chegada de Hitler ao poder, em 1933, para evitar o confisco (já que a família Warburg era judia). Hoje a biblioteca faz parte da Universidade de Londres. Warburg se interessava profundamente pela organização dos livros nas estantes.

A biblioteca era -e, felizmente, ainda é- uma biblioteca de acesso aberto, com isso permitindo que funcione o que Warburg chamava de "a lei do bom vizinho". (Segundo essa lei, o livro de que um leitor realmente precisa não é aquele do qual ele já tem conhecimento e que identificou no catálogo, mas o livro ao lado, em um sistema de classificação cuidadosa e precisa por temas.)

Coleções na América

Duas importantes bibliotecas particulares no Novo Mundo, além da de José Mindlin, focalizam a América -a do Norte e a do Sul. A ambição de John Carter Brown (1797-1874), um homem rico que passou sua vida colecionando, era reunir todos os livros, manuscritos e mapas que pudesse encontrar que dissessem respeito à história das Américas.

Seu filho John Nicholas Brown continuou a colecionar, mas, em seu testamento, deixou a biblioteca à Universidade Brown (que assumiu seu nome em agradecimento às beneficências recebidas da família Brown). Hoje, com cerca de 45 mil volumes, ela faz parte de um instituto independente de pesquisas no interior da universidade e abriga exposições, palestras e conferências.

Outra grande biblioteca particular que foi posteriormente incorporada a uma universidade foi montada pelo diplomata e estudioso brasileiro Manoel de Oliveira Lima (1867-1928), que, entre outras coisas, foi mentor de Gilberto Freyre na juventude deste.

Como seu proprietário, a biblioteca se concentrava sobre a história do Brasil, de Portugal e do império português na Ásia e na África. Em 1916 Oliveira Lima doou a biblioteca, que hoje contém 50 mil livros, à Universidade Católica da América, em Washington. Ele se nomeou o primeiro bibliotecário dela.

Tradição grandiosa

Resumindo: a biblioteca de 40 mil volumes de José Mindlin, que agora será doada à USP, faz parte de uma tradição grandiosa. "Nunca me considerei o dono desta biblioteca", observou Mindlin certa vez, apenas seu guardião para a posteridade.

Esperemos que Mindlin não seja o derradeiro dos grandes colecionadores cujas bibliotecas refletem seu entusiasmo pessoal pelo conhecimento, mas que têm a generosidade de compartilhar com outros aquilo que adquiriram.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A Tradução Cultural" (ed. Unesp) e "O Historiador como Colunista" (ed. Civilização Brasileira). Escreve regularmente no Mais!.

Tradução de °Clara Allain.

domingo, 14 de março de 2010

A vida é incurável!

A loucura que nos inspira é a mesma que nos mata.
Ela nos faz cada vez mais defendermos a paz.
E sugerirmos as saídas.
Tentamos rir da loucura, para ver se damos um jeito no mundo.
Porém, teimoso, ele reage mostrando que a raiz é mais profunda.
Nosso papel?
Enxugar as lágrimas.
E continuarmos…
Com a revolta de agora nos inspirando.

Texto de Marcelo Rubens Paiva e ilustração retirada do blog do Josias

ENQUANTO ISSO...

segunda-feira, 8 de março de 2010

O do contra...

O do contra...

Marcelo Rubens Paiva

“Carla Bruni?”

Trubufu! Calhau!”

“Fala sério…”

“Se me ligar, digo que sou um monge em retiro e meu francês é péssimo.”

“Ela não vai te ligar.”

“Quem garante?”

“Ela não vai te ligar.”

“Ei! Sou eu o do contra.”

“Maria Sharapova?”

Mocréia!”

“Como é que é?”

Baranga! Bagulho! Xonga! E ainda urra como um urso quando bate na bola. Já ouviu? Não joga nada.”

“Mas e a paralela?

“É na paralela que você presta a atenção?”

“Gisele?”

“A Bündchen? Xô! Que pergunta… Magrela sem-sal. Anda toda torta, como aquelas pessoas no farol vendendo canetas. Dá-lhe umas muletas.”

“É uma gata!”

“Uma coisa patética.”

“Luana?”

“Nem sei quem é.”

“Penélope Cruz?”

“Credo! Muda, vai.”

“Samba jazz?”

“Que chatice!”

“Como é que é?”

“Agora, só se fala nisso?!”

“Não gosta?”

“Música de frases feitas.”

“Frases feitas?”

“E dois acordes! fora!”

“Seu Jorge?”

“Detesto. Mala, chatinho, com músicas chatinhas. E faz propaganda de cerveja. Que mala!”

“Tá bombado no mundo.”

“Problema dele.”

“Zeca Pagodinho?”

“Outro. Fez a mesma propaganda. Agora, todos fazem propaganda de cerveja. Até aquele cantor do Rappa, mala metido a preocupado com a injustiça social. São os malas mais malas.”

“Você não está exagerando?”

“Aquele Carlinhos Brown também fez a mesma propaganda. Mas esse é mala unânime. Qual é? Malas, todos! Tudo mudou, reparou? Antigamente, artista não fazia propaganda. Ainda mais de cerveja. Artista era artista, defendia uma causa nobre, morria na dureza, mas não entregava o maior bem, a inspiração, a liberdade de criação, não se vendiam. Noel Rosa fez propaganda de xarope? E Cartola, de ótica? Olha, esse comentário dá até samba.”

“Ivete Sangalo?”

“Logo quem… Desengonçada!”

“Que grosseria…”

“Você perguntou. Faz propaganda da outra cerveja e de carro, telefone, sandálias, sei lá. A mina é um outdoor dançante.”

“Mas e a música?”

“E gritar ‘levantou a poeira’ é lá música?”

“Ronaldinho Gaúcho?”

“Perna-de-pau.”

“Fenômeno?”

“Gordo.”

“Kaká?”

Bambi.”

“Cidade de Deus?”

“O filme? Fora de foco, descontínuo, sem pé nem cabeça, com um monte de ator ruim, que nem era profissional, como esse tal de Seu Jorge, que mala…”

“Nelson Rodrigues?”

“Machista.”

“Machado de Assis?”

“Racista.”

“Lima Barreto?”

“Caso de hospício.”

“Mário de Andrade?”

“Outro. E homofóbico.”

“Oswald?”

“Comuna!”

Plinio Marcos?”

“Analfabeto.”

“Paulo Autran?”

“Canastrão.”

“Fernanda Montenegro?”

“Sem voz, sem voz…”

“Respeito!”

“Você quem provoca.”

“Você não pode estar falando a sério.”

“Não?”

“Glauber?”

“Direitista!”

“Os Sertões?”

“Chatinho.Tentou ler?”

“Grande Sertão: Veredas?”

“Não entendi nonada. fora!”

“Os serviços telefônicos de atendimento ao cliente?”

“Perfeitos. Bem treinados e educados.”

“Mas no Procon…”

“Malas, malas.”

“O uso do gerúndio das atendentes?”

“Um charme, não acha?”

“Dilma e Serra?”

“O amor não é lindo? Simpáticos.”

“George Bush?”

“Grande estadista!”

“O filho?”

“Ambos!”

“A Guerra no Iraque?”

“O mundo não está melhor sem Saddam?”

“Puxa, mas você é do contra, mesmo.”

“Não sou, não!”

sexta-feira, 5 de março de 2010

Lembranças e brigas

Lembranças e brigas

“Sempre que evocamos os eventos passados,

nossas lembranças são reescritas e corrigidas”

CONTARDO CALLIGARIS, Folha de São Paulo de ontem

TUDO COMEÇOU em 1990, quando George Franklin, um aposentado californiano, foi acusado de um infanticídio que ele teria cometido 21 anos antes.

Repentinamente, Eileen, a filha de George, declarou que, quando criança, ela tinha visto seu próprio pai matar uma menina de oito anos. Eileen explicou seu longo silêncio por uma amnésia: ela presenciara um evento tão horrível que, por duas décadas, ela reprimira radicalmente toda lembrança dos fatos. A jornada de George Franklin terminou sete anos mais tarde, quando um tribunal federal o soltou, considerando duvidoso o testemunho de Eileen.

O processo de Franklin inaugurou uma guerra que durou mais de uma década. De um lado, havia um grupo de psicoterapeutas que acreditavam no seguinte: eventos traumáticos podem ser totalmente apagados da memória e reconstruídos, mais tarde, com a ajuda e o incentivo de um terapeuta. Do outro (é esse lado que prevaleceu), havia estudiosos do funcionamento da memória, que, à força de pesquisas experimentais, mostravam que 1) os eventos traumáticos nunca são propriamente apagados da memória e 2) a "reconstrução" de uma lembrança perdida, ainda mais com ajuda e incentivo de um terapeuta, é quase sempre um processo criativo, ou seja, invenção.

Quem se interessar por essa guerra pode ler o clássico "Victims of Memory" (vítimas da memória), de Mark Pendergrast (Upper Access, 1996), ou "Remembering Our Child- hood" (lembrando-se da infância), de Karl Sabbagh (Oxford, 2009).

O fato é que, graças à dita disputa, o funcionamento da memória foi pesquisado ativamente. E o que me importa hoje é justamente uma propriedade de nossa memória que foi documentada durante o debate dos anos 90 e que explica por que seria inexato dizer que Eileen Franklin, por exemplo, mentiu. Aqui vai: a cada vez que evocamos ou aprimoramos nossa lembrança de um evento, nossas palavras modificam o evento aos nossos olhos, de tal forma que estamos prestes a jurar que ele aconteceu exatamente como diz nosso relato mais recente.

Um exemplo. Eu tinha ("tinha", no passado) uma lembrança infantil, dos meus dois anos. Como muitas lembranças da primeira infância, ela era uma simples percepção: a silhueta de uma criança correndo, destacando-se, em contraluz, diante de uma porta de vidro. Evoquei e descrevi essa lembrança pela primeira vez durante minha análise e, desde então, repetidamente, ao longo de minha vida, tentei "entendê-la", "recordá-la" melhor. Resultado, hoje, minha lembrança é a seguinte: a criança que corre sou eu (o que é curioso, pois a dita criança está bem em frente de meus olhos) - e sou eu aos quatro anos, não aos dois (a porta de vidro é, "claramente", a da sala do apê dos meus quatro anos). Além disso, posso dizer com convicção para onde estou correndo e por que estou extraordinariamente feliz (estado de ânimo que, aliás, não fazia parte da imagem inicial).

Não sei se algo disso corresponde ao acontecimento que deixou em minha memória a silhueta de uma criança em contraluz. Igual, é só por hábito profissional que me obstino a desconfiar de minha lembrança assim como ela se apresenta agora; se não fosse por essa desconfiança do ofício, aquela imagem enigmática de criancinha correndo em contraluz estaria mesmo completamente perdida - transformada, irremediavelmente, por todas as minhas narrações, explicações e interpretações.

Como os historiadores sabem há tempo, a cada vez que evocamos eventos passados, nossas lembranças são imediatamente reescritas e corrigidas por essa evocação.

Há uma consequência desse fenômeno, que todos verificamos, uma vez ou outra. Um casal briga ao redor de um acontecimento recente: "Você disse que.."; "Eu só disse aquilo porque você me provocou"; "Não, quem provocou primeiro foi você", e por aí vai. Imaginemos que ambos sejam de boa-fé e que cada um queira apresentar honestamente sua versão dos fatos; eles deveriam facilmente entender como surgiu o mal-entendido, não é?

Pois é, isso não acontece quase nunca. Ao contrário, em geral, a briga piora: o outro, que contesta minha versão e a contrapropõe a sua, é mentiroso, pois contesta não "minha versão", mas os próprios fatos, assim como eles, ao meu ver, foram impressos diretamente em minha memória. Moral da história: seria bom que o uso da memória nos inspirasse alguma prudência. Afinal, a cada vez que nos lembramos de algo, quer queira, quer não, transformamos nosso passado.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 4 de março de 2010

Santas e prostitutas

Santas e prostitutas

Proibir o comercial de Paris Hilton é,

tão simplesmente, um insulto às mulheres

Fonte: JOÃO PEREIRA COUTINHO, Folha 02 mar. 2010

CENSURAR Paris Hilton é um gesto honroso e até higiênico: na sua vulgaridade plástica, Paris Hilton é um insulto à beleza natural das mulheres brasileiras. Fosse eu presidente da República e jamais Paris Hilton poderia estrelar em comercial televisivo. Seria como convidar um futebolista californiano para jogar na seleção canarinho.

Acontece que o governo brasileiro não censurou Paris por motivos patrióticos, ou até estéticos, o que seria compreensível. Censurou por motivos éticos. Eis a história: Paris foi convidada para fazer campanha publicitária de uma cerveja. O filme mostra Paris, em hotel carioca, colada à janela do quarto, passando a lata da bebida pelo corpo. Simula prazer.

Cá fora, o mundo simula delírio. Um rapaz, versão moderna e ridícula de James Stewart em "Janela Indiscreta", fotografa a lata, não Paris, com verdadeiro fervor alcoólico. Na praia, a multidão aplaude o espetáculo e bebe em homenagem. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres não gostou. Eu também não gosto de uma secretaria com esse nome, mas divago. A juntar ao repúdio governamental, alguns consumidores também se sentiram chocados com a indecência de Paris. E o Conselho de Autorregulamentação Publicitária abriu três processos pela manifesta imoralidade do comercial.

Uma coisa é ter mulheres na praia, seminuas, bebendo vários barris de cerveja. Outra, bem diferente, é ter uma mulher de vestido negro, na janela de um quarto de hotel, com uma lata de cerveja na mão. Para os moralistas da cerveja, na praia vale tudo. No quarto, não vale nada. E quando surge uma imagem demoníaca dessas, a solução é proibir. Na cabeça deles, a imagem degrada as mulheres e, em especial, a mulher loira, universalmente considerada a versão feminina de Forrest Gump.

Não vale a pena perder tempo com a profunda contradição do raciocínio: a sexualização onipresente na cultura popular brasileira faz de Paris Hilton um hino à castidade. Mas vale a pena perder tempo com a natureza paternalista de um governo que ressuscita os piores clichês do feminismo rasteiro para defender a sua dama.

O que nos disse o movimento feminista que explodiu pelo mundo depois da Segunda Guerra? Não é possível resumir em poucas frases a multiplicidade de argumentos e até de movimentos que marcharam pela causa. Mas, simplificando, o feminismo apresentava-se às massas com o propósito de "libertar" a mulher, o que implicava enterrar os seus papéis clássicos de subjugação falocêntrica.

As grilhetas femininas não estavam apenas em casa: na humilhação de cozinhar para o homem, de criar os seus filhos e de suportar as suas "violações" regulares no leito conjugal (obrigado, Andrea Dworkin).

A libertação implicava também que a mulher deixasse de ser objeto sexual; deixasse de ser "coisa", "carne", "corpo" e passasse a ser "pessoa". A luta contra a indústria pornográfica, por exemplo, foi um "must" do movimento, sobretudo nos Estados Unidos, e muitas vezes uniu as "revolucionárias" do movimento feminista com a extrema direita religiosa mais reacionária. Ironias da história. Ironias que a notável escritora Camille Paglia sublinhou em textos críticos sobre a condição feminina.

Para Paglia, o movimento feminista, longe de defender a "libertação" das mulheres, apenas pretendia substituir uma forma de autoritarismo por outra. Paglia não nega as provações que as mulheres experimentaram durante grande parte da história. Mas Paglia, ao contrário de Dworkin e suas vestais, entendia que a verdadeira libertação não passava por um novo catálogo de proibições. Passava por dar às mulheres o que estas não tinham anteriormente: escolha e poder. Ou, em linguagem prosaica, se uma mulher deseja ser "coisa", "carne", "corpo", isso não a diminui enquanto "pessoa". Pelo contrário: é uma poderosa manifestação de autonomia e, no limite, de domínio sobre aquele que a deseja. Liberdade não é impor um único padrão de comportamento. Liberdade é, precisamente, não impor nenhum.

Proibir o comercial de Paris Hilton em nome da "dignidade das mulheres" é, tão simplesmente, um insulto às mulheres. Um insulto à capacidade destas para decidirem ser o que entenderem: santas, prostitutas, ou nenhuma delas. Para o insulto ser perfeito, só faltava que o governo brasileiro liberasse o comercial sob a condição de Paris Hilton usar burca da cabeça aos pés. Não riam. Brasília está longe de Teerã, sim. Mas o espírito é o mesmo.

jpcoutinho@folha.com.br             

segunda-feira, 1 de março de 2010

O menino travesso que amava livros

O menino travesso que amava livros

Daniel Piza, 22 fev. 2008

Na lendária biblioteca de sua casa no Brooklin, José Mindlin pede para que apanhem alguns exemplares de livros infantis entre os 45 mil títulos. Em geral, são adaptações de clássicos como Os Três Mosqueteiros, As Aventuras do Barão de Munchausen e Robinson Crusoé – este, na edição que Mindlin tem certeza de que Carlos Drummond leu antes de escrever seu poema sobre o náufrago inglês. A partir de agora, essas estantes que lembram as do professor Higgins no filme My Fair Lady terão mais um título: Reinações de José Mindlin, escritas por ele mesmo (Ática, 48 págs., R$ 23,90). O livro, ilustrado por Luise Weiss, será lançado amanhã, na Livraria da Vila da Alameda Lorena.

O título ecoa Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, mas, curiosamente, Mindlin só foi ler o grande autor infantil brasileiro na adolescência, quando já era leitor voraz e colecionador mirim. Já tinha lido muitos livros, inclusive seu clássico infantil favorito, Pinóquio, de Carlo Collodi, e até obras em francês como as da Condessa de Ségur. O que não impediu que a obra de Lobato viesse a impressionar esse jovem freqüentador de sebos. José Mindlin nasceu em 1915; Reinações de Narizinho é de 1931.

Mindlin, um advogado e empresário que a todo mundo basta apresentar como bibliófilo, decidiu escrever um livro infantil depois que viu sua neta Ana, de 9 anos, lendo alguns de autores brasileiros recentes. Perguntou-se: “Será que não consigo fazer um também?” E, ao contrário do que se poderia esperar, não fez um texto sobre suas lembranças de leitor, uma versão para crianças de suas memórias Uma Vida entre Livros. Escreveu sobre as travessuras – as “reinações” – que cometeu ou testemunhou quando criança. E a mãe de Ana, sua caçula Diana, foi a responsável pelo projeto gráfico do livro.

Entre as histórias, está a do muro em que ele e um primo e vizinho, Leonido, abriram um buraco para encurtar a distância até o galinheiro da vizinha, aonde iam apanhar ovos a pedido da mãe de Mindlin. Outra é sobre a boneca russa dada de presente pela famosa bailarina russa Anna Pavlova, em pessoa, e que foi parar no forno de pão dos fundos da casa. Mindlin morava num casarão na Rua Sena Madureira, na Vila Mariana, numa São Paulo bem diferente da atual. Depois foi para a rua Marquês de Paranaguá, em Higienópolis, onde viveria até os 21 anos, mas o livro pára quando ele chega a 10 anos.

Também se destacam as histórias a respeito de seus pais, judeus russos (nascidos em Odessa, na atual Ucrânia) que se conheceram em Nova York e, por causa de primos que já estavam aqui, optaram por vir “fazer a América” em São Paulo. Por pouco, então, Mindlin não escreveu sua biografia em Nova York, e os 17 mil livros que acaba de doar para a Universidade de São Paulo – e serão alojados num prédio previsto para ser inaugurado em 2009 – teriam ido para a Morgan Library.

O ambiente em que Mindlin cresceu contava com uma governanta russa que ensinou francês aos filhos, primos russos de quem aprenderam russo e a quem ensinaram português, um tio tipógrafo, uma tia que lhe deu o primeiro título de sua coleção “brasiliana”, a História do Brasil do Frei Vicente Salvador, e, em casa, uma biblioteca pequena dos pais, com livros em moda no momento, o almanaque Tico Tico e também – como em tantos lares daquela época – coleções de clássicos russos, franceses e ingleses.

Não tardou para que Mindlin se tornasse leitor voraz. Seu irmão mais velho, Henrique, que mais tarde seria arquiteto, também gostava muito de ler e, embora quatro anos mais novo, José lia os mesmos livros. Não era, portanto, um leitor apenas de livros infantis. “O grande teste do livro infantil é interessar aos adultos”, diz Mindlin, que até hoje se entusiasma com Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, e elogia Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Para a mãe, costumava ler Jules Verne.

“Livros crescem de noite”, diz o homem que até há pouco tempo lia mais de cem livros por ano. Se contar só que leu dos 13 até agora, devorou mais de 6 mil livros. Há dois anos, porém, já não consegue ler. Seus olhos estão com máculas que não há como operar. Familiares e amigos lêem para ele, mas Mindlin diz que não é a mesma coisa. Tem saudades de passear os olhos pelas letras enfileiradas, no silêncio populoso da leitura, e de manusear o objeto de papel e tinta, razão à qual atribui sua permanência por 550 anos e seu futuro por outros tantos. Do alto de seus 93 anos, completa: “Nada substitui o livro.”

A generosidade do 'livreiro-mor'

A generosidade do 'livreiro-mor'

Lilia Moritz Schwarcz*

Estado, 01 mar. 2010

Bibliotecas sempre deram muito o que falar. Grandes monarquias jamais deixaram de possuir as suas, e cuidavam delas, estrategicamente. Afinal, dotes de princesas foram negociados tendo livros como objetos de barganha; tratados diplomáticos versaram sobre essas coleções. Os monarcas portugueses, após o terremoto que dizimou Lisboa, se orgulhavam de, a despeito dos destroços, terem erguido uma grande biblioteca: a Real Livraria. D. José chamava-a de joia maior do tesouro real; isso nos tempos fartos do ouro que vinha do Brasil.

Já d. João VI, mesmo na correria da partida para o Brasil, não esqueceu dos livros. Em três diferentes levas, a Real Biblioteca aportou nos trópicos, e foi até mesmo tema de disputa. Nos tratados de independência de 1825, a Livraria constou como segundo item de uma extensa conta que o Brasil assumia, com o objetivo de conseguir a emancipação. Nas palavras de Pedro I, pagávamos por tradição e pelo prestígio que os livros trazem consigo. Livros carregam conhecimento, são símbolo de cultura, de liberdade e da verdadeira emancipação; que é, antes de mais nada, filosófica e espiritual.

Escrevo estas linhas sob impacto da morte de nosso "livreiro-mor", o querido dr. José Mindlin, como todos o chamavam por intimidade, respeito e merecimento. Dr. Mindlin era o mais generoso e dadivoso dos "bibliotecários".

Os transeuntes que resolvessem passar defronte de uma pacata rua no bairro paulistano do Brooklin, com certeza não teriam motivos para se deter diante de uma discreta casa murada. No entanto, para os mais privilegiados, a aventura mal começava. Era lá que dr. Mindlin mantinha seu mundo feito de livros; uma ilha perdida, um oásis da cultura.

Após ter acesso ao interior da casa, o visitante cumpria um delicioso ritual, prontamente liderado por esse "bibliotecário" especial. Era ele quem recebia à porta, sempre com seu sorriso farto. Era também ele quem levava o convidado até uma simpática sala; tomada por tapetes, quadros, e (claro) livros.

A primeira etapa do ritual era cumprida lá mesmo: entre um café e outro, ao lado da d. Guita, enquanto ela esteve presente, dos filhos e netos orgulhosos, ou ainda da Cristina, sua fiel ajudante na biblioteca. Como num cerimonial, Mindlin abria um exemplar a esmo. Poderia ter nas mãos um romance do século 19, um incunábulo do 16, um original de Guimarães Rosa.

Nenhum livro era apenas um livro; era antes um objeto de estima, de reflexão, de amizade íntima. Contava como tinha obtido o livro em questão, narrava de maneira viva especificidades ou curiosidades, e só então fechava o exemplar, para seguir com outro.

Ultrapassada a fase do cafezinho, era chegada a grande hora: adentrar o espaço sagrado da biblioteca, a qual, reformada, enchia os olhos de nosso "livreiro" do mais sincero orgulho. Ela era sagrada não porque intocável. O motivo era de outra ordem: a coleção significava o resumo de uma vida repleta da mais genuína dedicação aos livros.

Um simpático jardim separava a sala da biblioteca propriamente dita, como se fosse preciso passar por uma etapa para ganhar outra. Já na biblioteca, o tempo voava. Diferente de outros "livreiros", que por costume, segurança ou medo não tentam facilitar o acesso aos livros, o dr. José ajudava a tudo e a todos. Não havia documento que não pudesse ser pesquisado; obra que estivesse impedida de ser consultada.

Tal generosidade estava presente nos pequenos hábitos. Enquanto pôde (e mesmo quando, de fato, não podia mais), ele era sempre o primeiro na fila dos lançamentos. E chegava logo com 3 ou 4 exemplares: um para si, outro para a biblioteca, os outros... quem sabe.

O tempo é um senhor implacável do destino e nos tolheu da convivência com essa personagem que já era a cara de São Paulo. Uma Pauliceia com mais tempo, erudição, afeto.

Diante do inevitável, me veio à cabeça uma frase utilizada na Inglaterra e na França, imediatamente após a morte de seus reis. Em vez de ficarem com a tragédia, os súditos preferiam anunciar a perenidade, e em alto e bom som diziam: "Morto o rei, viva o rei."

Vida longa dr. José Mindlin. Que os livros o acompanhem e garantam muita diversão e excelente leitura. Agora e sempre.

* É professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de A longa viagem da biblioteca dos reis, pela Companhia das Letras.