quinta-feira, 12 de agosto de 2010

'Muito político faz chorar com a mesma matéria-prima que o humor faz rir', diz Danilo Gentili

'Muito político faz chorar com a mesma matéria-prima que o humor faz rir', diz Danilo Gentili

DANILO GENTILI

ESPECIAL PARA A FOLHA

O Tribunal Superior Eleitoral está preocupado, pois entendeu que satirizar um candidato na TV gera desigualdade no processo eleitoral.

Ufa! Agora os indefesos candidatos já podem respirar aliviados e se concentrarem na campanha onde, na mesma TV, durante o horário eleitoral gratuito, um terá 10 minutos a mais que o outro para expor suas ideias. Isso sim é democrático, igualitário e... Droga... Aqui caberia uma piada, mas não posso fazê-la.

Agora é contra a lei ridicularizar o candidato. Então, lembre-se: por mais ridículo que ele seja, guarde segredo.

Exemplo: Ainda que Collor ridiculamente ligue pra casa de um jornalista o ameaçando de agressão, por mais tentador que seja não mire sua lupa cômica nisso. Ele é candidato, e candidato aqui não fica exposto, fica blindado.

O TSE não é o feirante japonês que deixa a mercadoria exposta para que possamos apalpar e cheirar antes de levar. Ele é o coreano do Paraguai que a deixa na vitrine. Você não toca, não cheira. Apenas paga. Quando chegar em casa, reze antes de abrir a caixa.

E a discussão se essa censura é ou não constitucional? Tenho fé que em breve teremos uma resposta sensata. Logo após eles chegarem à conclusão de outra discussão que há anos os perturbam: afinal, o fogo é ou não quente?

O humorista pega a verdade e a exagera. Ao contrário do político, a verdade é imprescindível para o sucesso de seu trabalho. E esse é o problema. Num País onde culturalmente é bonito lucrar com a mentira, a verdade não diverte. Assusta. Indigna.

Onde já se viu um coronel permitir que manguem de sua cara em sua província? Então censuremos! Por isso, recentemente, tivemos imprensa brasileira censurada, jornalista estrangeiro expulso, repórter agredida e, agora, humorista amordaçado.

É melhor que o Estado defina o que pode ou não ser passado para o público, assim o público continua passando o que interessa para o Estado.

Aristófanes, pai da comédia antiga, exercia abertamente sua função de fazer o público rir, criticando instituições políticas e seus representantes. Se fosse brasileiro, hoje, Aristófanes não poderia realizar seu ofício. A visão democrática do TSE está mais atrasada que a da Grécia de 400 A.C.

Henri Bergson, filósofo francês, afirmou que "não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Comicidade dirige-se à inteligência pura". Filosoficamente, o pessoal do TSE não é humano nem inteligente o bastante para compreender o que foi escrito há quase um século atrás.

Freud, pai da psicanálise, entendeu que "rir estrondosamente, satirizar personagens e acontecimentos, fazem parte da nossa experiência cotidiana e é crucial pra nossa condição humana".

Um século depois, temos uma lei que impede a manifestação do cômico num evento tão importante para sociedade como a eleição. Psicossocialmente falando, a democracia brasileira encontra-se retardada.

Estudos observam que primatas riem de boca aberta para manifestar raiva e hostilidade. A evolução preservou o instinto do riso no ser humano para que fosse a válvula de escape substituta à agressão física. A lei eleitoral quer abafar o instinto compulsivo da piada e do riso (e sabe lá Deus aonde isso vai pode explodir). Biologicamente, eles estão forçando um passo atrás na escala evolutiva.

Enquanto o Brasil se orgulha de dialogar com países desenvolvidos o suficiente para que nenhuma forma de comunicação seja restrita, a gente fica aqui rindo das imitações de Silvio Santos, porque é o que se pode fazer no momento. Claro, enquanto o Silvio Santos não for candidato.

Muito político faz chorar. Com a mesma matéria-prima o humorista faz rir. Para o TSE a segunda opção é uma ameaça e precisa ser contida.

A liberdade de expressão aqui tem o mesmo conceito de liberdade do Zoológico. Faça e fale o que quiser. Você é livre! Desde que não passe os limites da sua jaula.

Não me multem, por favor. Isso não foi uma piada.

DANILO GENTILI é comediante stand-up e repórter do CQC da Band

terça-feira, 10 de agosto de 2010

As bombas desejam explodir

As bombas desejam explodir

65 anos depois de Hiroshima, volta o perigo atômico

ARNALDO JABOR

Há 65 anos, em 6 e 9 de agosto de 1945, os americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Todo ano me repito e escrevo artigos parecidos sobre a bomba nessas datas, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade, não, mas para lembrar que o impensável pode acontecer a qualquer momento.

Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra quente do deserto - a mais perigosa combinação: fanatismo religioso e poder atômico. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a cruzada errada do Ocidente, apesar e além de Obama. Do outro, temos os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte.

Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Estamos num momento histórico, em que já se ouvem os trovões de uma tempestade que virá. Os mecanismos de controle pela "razão", sensatez, pelas "soft powers" da diplomacia perdem a eficácia. Instala-se um progressivo irracionalismo num "choque de civilizações", sim (sei do simplismo da análise do Huntington em 93, mas estamos diante do simplismo da realidade), formando uma equação com mil incógnitas impossíveis de solucionar. Como dar conta da alucinação islâmica religiosa com amor à morte, do Paquistão, Índia, Israel, do Irã dominado por ratos nucleares em breve, da invencibilidade do Afeganistão, com a hiperdireita de Israel com Bibi, com o Hamas ou o Hezbollah que querem impedir o "perigo da paz"?

"There is a shit-storm coming" - disse Norman Mailer uma vez.

Tudo leva a crer que algo terrível acontecerá. A crença na razão ocidental foi ferida por dois desastres: o 11 de Setembro e a invasão do Iraque. A caixa de Pandora que Bush abriu nunca mais se fechará.

Estamos às vésperas de uma brutal mudança histórica. Sente-se no ar o desejo inconsciente por tragédias que pareçam uma "revelação". Surge a fome por algo que ponha fim ao "incontrolável", a coisa que o Ocidente mais odeia. Mesmo uma catástrofe sangrenta parecerá uma "verdade" nova.

Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima. Lá e em Nagasaki, três dias depois, inaugurou-se a "guerra preventina" de hoje. Enquanto o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século XX, motivado ainda por contradições do século XIX, o espetáculo luminoso de Hiroshima marca o início da guerra do século XXI. O horror se moderniza, mas não acaba.

Auschwitz e Treblinka eram "fornos" da Revolução Industrial, eram massacres "fordistas", mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.

O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano, morte "clean", anglo-saxônica. A bomba norte-americana foi considerada uma "vitória da ciência".

Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas norte-americanas foram lançadas em nome da "razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da Terra os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman, "são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes".

A bomba agiu como um detergente, um mata-baratas, a guerra, como "limpeza", o típico viés americano de tudo resolver, rápida e implacável... E continua cozinhando na impaciência dos generais israelenses e dos falcões do Pentágono.

A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia. Diziam que Hitler estava perto de conseguir a bomba - o que é mentira.

Uma das razões reais era que o presidente e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!..." O clima era lúdico e alucinado... o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto - "Enola Gay". Esse gesto de carinho derreteu no fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio, exterminando 40 mil crianças em 15 segundos.

Os norte-americanos queriam vingar Pearl Harbour, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som e luz, uma superprodução em cores do novo Império.

O Holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e da Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor da vitória. Naquele contexto, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.

Hoje, a época está de novo morta para palavras, insuficientes para deter os fatos. Vale lembrar o poema de William Yeats, "The Second Coming", de 1919, diante do horror da Primeira Guerra...

"Tudo se desmancha no ar. O centro não segura/ a imensa anarquia solta sobre o mundo./ Terrível maré de sangue invade tudo e/ as cerimônias da inocência são afogadas./ Os homens melhores não têm convicção;/ e os piores estão tomados pela intensa paixão do mal.

(...)

Alguma revelação vem por aí;/ sem dúvida, é a Segunda Vinda.

(...)

Voltou a escuridão; e eu vejo que 20 séculos de sono de pedra/ Querem se vingar do pesadelo que lhes trouxe o berço de um presépio./ A hora chegou por fim;/ Que monstruosa fera se arrasta para Belém para renascer?/ É isso aí, bichos... Os grandes poetas são profetas".

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Desconversão Humana

A Desconversão Humana

Fonte: Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo, 31 jul. 2010

Tentou a noite toda escrever algo. A tela em branco imprimia a sua crise duradoura. Um escritor sem ideias. Café, cigarro, doses de uísque, nada serviram.

Tentara já vinho, conhaque, charuto, macrobiótica. Há meses, o bloqueio criativo apareceu. Noites em busca de inspiração. Precisava escrever, era o seu ganha-pão, seu dom, sua vida, se dedicara anos. Nada.

Deixou o computador ligado e foi dormir.

O que leva um escritor a parar de escrever? Por que Rimbaud, depois de criar a poesia moderna, sumiu? E Salinger, que escreveu apenas quatro livros? Autoexigência? Atração pelo nada?

"Escrever também é não falar, é se calar, uivar sem ruído", dizia Marguerite Duras.

Síndrome de Bartleby é a paralisia que atormenta os escritores. Inspirada no personagem de Melville (Moby Dick), copista de um cartório que fica na sua mesa sem fazer absolutamente nada, sem ir a lugar algum. Nem mesmo se alimentava.

No dia seguinte, lá estava a frase metafísica na tela do seu computador: "O tempo só corre para quem se preocupa com a perda dele." Quem digitou?

Heráclito? Sim, lembrava os pensamentos circulares do pré-socrático. Será que digitara num delírio torturado pelo sono e desespero? Surto de sonambulismo?

Sua diarista digitou? Sua diarista não aparecia há dias.

Olhou para o lado e viu seu gato vira-lata deitado no canto da mesa, com as orelhas em pé, encarando-o de relance. Não é possível!

O gato costumava passear pela mesa sempre que tentava escrever. Por vezes ficava em frente do monitor, tapando a visão. Às vezes brincava com o cursor do mouse. Em outras passeava sobre o teclado. Suas patas apertavam e digitavam apenas frases como "procslxkdjshsdh gfgfggf czvc".

Foi você? Ele miou de volta.

Repetiu a experiência à noite. Deixou o computador ligado, fechou a porta do quarto, deitou-se. Não conseguia dormir. Tentava escutar os passos do gato pela casa. Mas o silêncio era o maior ruído.

Na manhã seguinte, outra frase digitada: "Esperar é também realizar."

Olhou para o gato. Parecia dormir profundamente. Sua respiração, ofegante. O batimento cardíaco dos gatos é superior. Ou estava exausto?

Mas para quem contar que desconfiava que seu gato mandava mensagens quando ele ia dormir? Não podia para o seu editor, pois fugia dele, que cobrava um romance cujo adiantamento já fora pago. Nem ao melhor amigo, que esperava há meses o prefácio não escrito de um livro quase no prelo.

Ninguém sabia da sua síndrome. Vivia o tormento inventando desculpas, "já estou terminando", "deu pau no computador e perdi tudo".

Esperava o milagre da criação, a voz de Deus ou do Diabo falando através dele, o despertar do inconsciente, emitindo sinais que chegariam aos seus dedos para movê-los em busca de uma história.

Fez as malas. Encheu a casa com potes de água e ração da melhor qualidade. Deixou o computador ligado. Escondeu os brinquedinhos do gato, para que não houvesse distração. Até limpou a mesa, para que seu suposto ghost writer felídeo tivesse a ordem necessária. Despediu-se com carinho. E foi para um flat pulguento do centro da cidade.

Passou quatro noites sem sair do quarto, fumando sem parar, ansioso pelo resultado da experiência. E preocupado. Seria seu gato um escritor que precisava da presença do dono para criar? Ou, como a maioria dos gênios, a paz, o silêncio e a solidão são o fogo que ferve as ideias e cozinha a arte?

Ao voltar para casa, encontrou-a toda revirada, resultado da solidão de um vira-lata carente: sofá arranhado, livros derrubados, papel higiênico desenrolado. Seu pequeno animal correu para saudá-lo, miou muito, trançou por suas pernas, saudoso.

Passo a passo, caminhou até a mesa de trabalho. Tela em branco. Apertou o Ctrl home. Mais de 78 páginas escritas em formato Word, letra areal, tamanho 12. A Desconversão Humana, chamava-se a obra. Que título pretensioso, pensou.

Riu sozinho. O que está acontecendo? Quem é você? Perguntou para o bichano que se acomodava no seu colo e ronronava.

Leu. Um tratado sobre a solidão e de como todas as possibilidades de busca pela fé e um sentido para a vida criaram um efeito contrário, tornando o homem isolado e inapto a conviver com a própria consciência.

Segundo o gato writer, a criação de uma moral, a absorção de deveres e tabus, embrulharam a nossa essência. "Deve-se viver o nada", escreveu.

Maravilhado, apesar de não ter bagagem para compreender tudo, enviou por email, sem nenhum comentário, apenas escrito "livro novo" no assunto, para o seu editor.

A resposta veio no dia seguinte: "Virou autor de autoajuda?" Que tosco e insensível editor. Que encaminhou para o selo deste gênero da editora, que aprovou o manuscrito, revisou e entregou para o Departamento de Marketing, que preparou o lançamento em quatro meses.

Resenhas? Apenas num jornal de bairro e numa revista literária cristã. Porém, pouco a pouco, o boca a boca interferiu no processo.

A Desconversão Humana em oito meses entrou para a lista de best-sellers, categoria não ficção. Em oito semanas, atingiu o topo da lista.

Seu telefone não parou mais. Queriam entrevistas, palestras, explicações. Editoras e agentes estrangeiros o procuraram. O livro foi traduzido e publicado em 65 países. Em todos eles, sucesso.

Logo começaram a surgir explicações e versões resumidas. Um escritor pilantra irlandês lançou Como Entender a Desconversão Passo a Passo. A editora propôs uma versão infantil ilustrada. Um poeta de Mato Grosso lançou O Bê-á-bá da Desconversão. Um indiano escreveu A Desconversão Tântrica. Um sueco, A Desconversão Líquida.

Sua vida não teve mais sossego. Por onde andava, tinha que dar autógrafos e tirar fotos em celulares.

Seu email estava entupido: pedidos de entrevistas, seminários e casamentos. Seus amigos literatos o ignoraram, dominados por preconceitos contra livros de sucesso. Familiares vieram pedir dinheiro emprestado.

Estressado, decidiu se isolar e mudar para uma praia deserta, para um bangalô sem luz elétrica, e viver recluso. Claro. Levou o gato com ele. Que nunca mais pôde escrever. Mas se esbaldou: natureza e peixes.