terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ancestralidade

Ancestralidade

 “Um judeu ateu é sempre um drama

maior do que qualquer ateu,

porque se assemelha à agonia de um vulcão”

LUIZ FELIPE PONDÉ

UM HOMEM deve reconhecer seus ancestrais. Existem várias formas de ancestralidade. Nossos autores prediletos são nossos patriarcas.

O primeiro texto que me marcou foi a Bíblia. Abraão e sua solidão diante de um Deus que armou sua tenda no deserto me deram um senso estético que nunca perdi. Seus profetas, num combate contínuo contra a estupidez do povo, fizeram de mim um cético com relação às virtudes populares.

Na medicina, Freud foi um encontro definitivo: o homem é um barco à deriva num mar de pulsões autodestrutivas. Vive como pode num mundo onde sua felicidade não parece fazer parte dos planos do Criador.

O Deus do ateu Freud é arrasador. Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão.

Já na filosofia, o viés trágico se impôs com a descoberta de Nietzsche e sua filosofia do martelo, cujo desprezo mortal pela covardia e pelo ressentimento se tornou em mim uma segunda natureza. Sua política, uma espécie de anarquismo aristocrático, é sempre perigosa para os amantes dos rebanhos.

O ceticismo dos gregos, de Montaigne e de David Hume abalou para sempre minha capacidade de fé na razão, não em Deus, como pensa a vã filosofia.

Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento.

Dostoiévski é sempre essencial. Para mim, uma de suas descobertas capitais é que, ao contrário do que diz nossa miserável ciência da autoestima, apenas quando encaramos o mal (a "sombra" de uma espécie abandonada ao próprio azar) em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia.

Entre Nietzsche e Dostoiévski, aprendi que o niilismo, "esse incômodo convidado para o jantar", veio pra ficar e é apenas diante dele que vale a pena exercer a filosofia.

E o judeu Rosenzweig? Definitivo para quem pressente que a metafísica nada mais é do que pensamento mágico a serviço do medo da morte. E que não é a esperança mágica que deve nos guiar, mas a percepção de si mesmo como milagre em meio ao pó que em nós estremece. Rosenzweig pensa como o homem bíblico.

Quando "decidi" que a academia era pequena sem a mídia, os "jornalistas filósofos" passaram a marcar meu horizonte profissional. Otto Maria Carpeaux descreveu a imagem máxima da relação entre espírito e corpo: quando o primeiro se levanta, o segundo se põe de joelhos.

Nelson Rodrigues, que estava certo em tudo que falava, escrevendo uma obra entre Santo Agostinho, Dostoiévski e Freud, iluminou um fato consumado: se o mineiro for solidário apenas no câncer, então tudo é permitido.

Paulo Francis, uma eterna falta entre nós, percebeu que o medo e a mentira pautariam a vida intelectual futura e que o "bem político" seria a nova face da estupidez do pensamento público.

E finalmente a praga da "fé política". Contra essa, Edmund Burke e Tocqueville são bálsamos essenciais. Tocqueville, principal referência para entendermos a democracia, nos alertou para a natural vocação que esta tem para uma nova forma de tirania, a tirania da maioria. Antes de tudo, a democracia fez os "idiotas" (expressão rodriguiana) descobrirem que são maioria.

Burke nos lembrou, contra os que "amam a moda", que a sociedade é uma comunidade moral de almas, que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. Para Burke, é apenas neste arco de ancestralidade que o homem se faz homem, contra a banalidade do presente que nos assola.

Enfim, quem conhece sua ancestralidade, mesmo quando caminhando no vale das sombras, nunca está só.

ponde.folha@uol.com.br   

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Frase do ano....

"Não nos tratem como artistas. Quero que continue me tratando como um trabalhador, como um mineiro", Mario Sepúlveda, o segundo mineiro a ser resgatado.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Deixem o palhaço legislar

Deixem o palhaço legislar

Sérgio Malbergier

Tiririca é o novo herói nacional. A expressão mais raivosa e consistente do voto de protesto contra o corpo político brasileiro. Que a Justiça esteja já acionada para cassá-lo por suposto analfabetismo revela como o palhaço/deputado federal mais votado do país ameaça o sistema. O deboche e o humor são armas poderosas.

E que boa piada: uma Justiça sem dentes para barrar os eternos abutres da política afia suas garras diante do palhaço nordestino que, como nosso consagrado presidente, veio de muito baixo na pirâmide social para afirmar-se de forma retumbante em São Paulo.

Quem conhece e representa melhor o Brasil profundo do que o palhaço Tiririca hoje na política? Só Lula. Que elitismo suspeito esse preconceito contra o suposto analfabetismo do palhaço. Quem melhor que um analfabeto ou semi-analfabeto para representar os milhões de mal educados do país? Analfabeto não é incapaz nem criminoso para ter direitos políticos limitados. Muito pelo contrário, é vítima da má gestão desta obrigação pública mais básica que é a educação.

Se a Wikipédia está certa, o palhaço Tiririca começou a vida no circo aos 8 anos, em Itapipoca, no Ceará, e estourou regionalmente com a música "Florentina", que a Sony Music tornou megahit nacional em 1996.

Ele já teve problemas com a lei naquela época por causa da música "Veja os Cabelos Dela", que lhe rendeu uma acusação de racismo, da qual foi inocentado. A letra, puro Tiririca, dizia: "Veja, veja, veja, veja, veja os cabelos dela/Parece bombril, de ariá panela/Parece bombril, de ariá panela/Quando ela passa, me chama atenção/Mas os seus cabelos, não tem jeito não/A sua caatinga quase me desmaiou/Olha eu não aguento, é grande o seu fedor".

Uau!

A singeleza sempre foi seu atributo. Os jingles e os spots de sua campanha, feitos de forma despretensiosa por amigos humoristas, devem ser estudados pelos caríssimos marqueteiros de plantão. São a maior lição de marketing político desta campanha.

Dançando daquele jeito nordestino, o palhaço canta meio preguiçoso: "O que é que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto", ou "Pior do que tá não fica, vote Tiririca". Bingo!

Os mais de 1,3 milhão de votos que Tiririca teve em São Paulo não podem ser desclassificados por essa Justiça incapaz de julgar os que deveriam ser julgados e que ainda por cima pode barrar a melhor notícia desta eleição: a lei da ficha limpa.

Deixem Tiririca legislar. Queremos vê-lo dançando no tapete do Congresso e discursando daquele jeito engraçado no microfone do plenário. Estará, legitimamente, representando muita gente. Dos que enfrentam as mesmas dificuldades e preconceitos que ele enfrentou e enfrenta aos que acham que a política brasileira é uma grande piada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

As minhas traições

As minhas traições

“Liguei o Kindle. Com enfado, li as instruções. Experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?”

JOÃO PEREIRA COUTINHO

SOU UM traidor. Sou um hipócrita. Não tenho defesa. Nem perdão. Mas guardar segredo é pior que partilhá-lo. Partilho.

Imagine o leitor: eu, num círculo de amigos literatos, discutindo as últimas novidades da "rentrée". Subitamente, alguém fala sobre o futuro do livro. E elogia as qualidades do livro eletrônico.

É nesse preciso momento que eu faço cara de nojo, limpo o suor da testa com meu lenço de renda e disparo um "jamais!" que faz tremer o salão. O meu mundo é o mundo de Gutenberg: o mundo arcaico do papel e da tinta, não de "pixels", "bits" e outras barbaridades linguísticas. Livro eletrônico? É como fazer amor com uma boneca insuflável.

"Um livro é um livro", disparava eu, em conhecido clichê. Nada substitui o objeto físico que transportamos, dobramos, sublinhamos. Tocamos. Cheiramos. Por vezes, rasgamos ou queimamos. A ideia de ler um romance, uma biografia, um mero ensaio em suporte eletrónico chegava para cobrir a minha costela conservadora de um horror herético. Nem morto.

Mas então aconteceu: uma oferta familiar em dia de aniversário. Bateram à porta. Entregaram a encomenda. Era o famoso Kindle da Amazon, com capa de pele, bonitinho. Perigosamente bonitinho.

Farejei o bicho com desconfiança primitiva. Cocei o crânio com pasmo neandertal e senti-me um dos macacos de Stanley Kubrick, na sequência inicial de "2001 - Uma Odisseia no Espaço".

Como se um objeto estranho tivesse vindo diretamente do futuro. Por milagre não quebrei o aparelho com a força das minhas ossadas. Um livro eletrônico era aquilo? "Jamais, jamais", gritava a minha pobre consciência.

Os dias passaram. O objeto, a um canto, mendigava a minha atenção sempre que passava por ele. "Jamais, jamais", repetia ainda. E sempre com menor convicção.

Uma tarde, aproximei-me. Tentei ignorá-lo, lendo ostensivamente as "Páginas Amarelas". O objeto soltou um suspiro de tristeza, quem sabe de abandono. E eu, com caridade cristã, decidi dedicar-lhe dois minutos de atenção, não mais.

Liguei o Kindle. Com enfado, fui lendo as instruções. E, por cada página lida, a pergunta mefistofélica: experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?

Experimentei. Diretamente do site da Amazon, fui importando livros grátis. Os clássicos gregos. Os clássicos romanos. Algum Maquiavel, algum Hobbes, algum Swift. Os pensamentos de Pascal. Uma edição completa das peças do bardo. Tudo a preço zero. Em 60 segundos, a Biblioteca de Alexandria viajava até minha casa.

O meu entusiasmo começava a ser perigoso. Embaraçoso. Numa tarde, descarregara 50 livros. Outros 50 vinham a caminho.

E, pior, já começara a ler um: a autobiografia de Tony Blair, que comprei a preço reduzido. Lia. Inacreditavelmente, sublinhava. Mais inacreditavelmente ainda, escrevia notas. Aquilo não era um livro. Era melhor que um livro. Que foi mesmo que eu disse?

Hoje, levo uma vida dupla. Em público, passeio os meus grossos volumes da "Enciclopédia Britânica", em gesto de resistência ao mundo virtual. Finjo. Quando me falam nas virtudes do Kindle, ou do e-book, as minhas gargalhadas são jocosas, ofensivas, delirantes.

Mas são também forçadas e encenadas: chego em casa e chamo logo pelo meu Kindle como quem chama pelo gato. E ele vem, pronto para miar centenas e centenas de obras-primas. Se um dia a casa arder e eu estiver em estado delirante, o leitor já sabe o que significa "Salvem o gato! Salvem o gato!".

Moral da história? A internet foi a primeira grande revolução da minha existência literária. Mas o livro eletrônico será a segunda ao introduzir a mais importante divisão intelectual da vida.

Haverá sempre livros que desejarei ter; e "ter" no sentido tangível do verbo: como objetos físicos, artísticos, existenciais. Nesse sentido, as livrarias continuarão a ser os únicos templos laicos que frequento com religioso fervor.

Mas depois existirão os livros que quero ler. Simplesmente ler. Não amanhã, ou depois, ou um dia qualquer. Mas hoje. Agora. Já. O sonho de qualquer leitor curioso, insaciável, ditatorial.

Regresso ao início: sou um traidor. E no dia em que os meus amigos literatos, cansados de minhas mentiras, vierem buscar-me para a fogueira, nada peço em minha defesa. Espero apenas que poupem o gato.