quarta-feira, 29 de junho de 2011

A sala dos livros mortos

A sala dos livros mortos

Ignácio de Loyola Brandão, O Estado de S. Paulo

No seu primeiro dia como funcionária daquela biblioteca pública, Ana Lygia foi levada pela diretora para conhecer o prédio. Subiram e desceram escadas, o elevador há muito tinha sido desativado por falta de verba de manutenção, por sorte eram apenas três andares, mais o porão. Secretaria, diretoria e salas e salas repletas de livros em estantes de metal, uma pequena sala de convívio, uma saleta para os jornais. Existia até uma quantidade razoável de volumes, ainda que o acervo estivesse desatualizado em relação à atual literatura brasileira. Quanto à mundial, a atualização era sentida pelos best-sellers, por aqueles que tinham sido os mais vendidos nas revistas semanais. Finalmente, desceram ao porão, havia montes de caixas com doações de livros ainda em fase de estudos, o que valia e o que não valia a pena, porque os doadores em geral entregam à biblioteca o que não querem em casa e o que ninguém quer e não presta para nada. Duas saletas com material de limpeza e uma sala com porta de ferro, trancada.

- E aqui?

- Ninguém entra. É a sala dos mortos.

- Mortos?

- Sim, a sala dos livros retirados de circulação.

- Retiram? E qual o critério?

- Se em cinco anos ninguém retirou o livro, ele é descartado do mundo dos livros vivos.

- E ficam aqui? Quanto tempo?

- Para sempre.

- Não podem ser doados a outras bibliotecas, ao público? Avisam: quem quiser livros venha buscar? Assim talvez continuem vivos!

- A lei não permite. É um bem público. Pertence ao patrimônio. É a situação mais complicada que existe, porque a burocracia impede essa doação, é preciso montar um processo jurídico e, como todo processo jurídico, se eterniza. Nem vale a pena, o melhor é esquecer.

- Posso ver a sala?

- Melhor não entrar. Aliás, tem um problema, a chave foi perdida, para mandar fazer outra monta-se um processo administrativo.

- Talvez tenha livros interessantes que eu queira ler.

- Não adianta, a lei diz que devemos inutilizar. Quando o livro vem para cá, tem uma determinada página arrancada, ou duas, uma do começo, outra do final.

Leitora desde a infância, Ana Lygia lembrou-se do Barba-Azul e do famoso cômodo no qual suas esposas não podiam entrar e quando entravam eram assassinadas. Sua curiosidade aumentou. Ela começou a trabalhar e meses mais tarde foi designada para um plantão de domingo, uma experiência nova. Aconteceu de ser dia chuvoso e ninguém foi à biblioteca. Ana Lygia lembrou-se da sala dos mortos, desceu, experimentou, trancada. Subiu, perguntou a uma auxiliar se sabia onde estava a chave, ela apontou para uma gaveta, disse que ali havia umas cem chaves, talvez fosse uma delas. Ana Lygia colocou-as em uma caixa e desceu. Começou a experimentar uma a uma.

Algumas ela descartou pelo tamanho, outras entravam, não giravam, ela não forçava, com medo de quebrar. Exercício de paciência. Também, ela não tinha nada a fazer. Finalmente, a chave 83 funcionou. Veio de dentro um cheiro abafado de mofo e umidade, ela abriu totalmente a porta, esperou. Procurou o interruptor e uma luz amarelada inundou o cômodo de fantasmas. Havia pilhas de livros amontoados até o teto. E, em volta, junto à parede, uma coleção de extintores de incêndio. Contou 35, cada um de um modelo, percebeu que alguns eram velhos, outros pré-históricos. Poderiam ser alinhados em um museu, ali estava a evolução dos extintores, os mais antigos enormes, desajeitados, para manobrar aquilo seriam necessárias duas pessoas.

Havia ainda relógios de ponto, alguns estapafúrdios, palavra que ela associou à idade do equipamento. Também fariam o encanto do velho Dimas de Melo Pimenta, um ícone da relojoaria nesta cidade. Ela experimentou mexer nas alavancas, umas travadas pela ferrugem, outras funcionaram com um ruído seco. Quantos teriam sido pontuais, quantos o relógio teria punido? Gostava de imaginar coisas assim, afinal, havia um quê de ficcionista dentro dela, daí sua paixão pelos livros e por ter escolhido a profissão. Ana Lygia percorreu aquele porão empoeirado contemplando escovas, vassouras, rodos, baldes furados, panos de chão podres, latas de cera, tubos de desinfetantes, detergentes, latas com pedacinhos de sabão, escovões. Nossa, há quantas décadas o escovão desapareceu da cena doméstica, quem ainda encera a casa? Tudo que devia ser descartado, porém era impossível, tratava-se de patrimônio.

Afinal, dedicou-se aos livros. Estendeu a mão, curiosa, puxou um. A Menina Morta, de Cornélio Penna. Puxa, esqueceram o Cornélio? Ninguém o leu por cinco anos? Foi folheando, livro grosso, talvez isso tenha assustado. Lendo. De repente percebeu a página arrancada. Apanhou outro livro, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E José de Alencar, Lúcio Cardoso, Ibiapaba Martins, Osman Lins, Mário Donato (puxa, fez tanto sucesso nos anos 50), José Geraldo Vieira, John dos Passos, Romain Gary, Malcolm Lowry, Oscar Wilde, Maria Alice Barroso. Todos mutilados. Apanhou um deles, escondeu debaixo da blusa. Levou para casa. Na biblioteca de um amigo encontrou um exemplar completo, digitou a página faltante, colou dentro do volume doente. A cada semana, leva um embora, recupera. Ela imagina que em alguns anos terá recuperado todos. Leva para bibliotecas comunitárias, existem várias. A simples ideia de ver um livro reciclado, ou queimado, a deixa doente. Mais fácil comprar outro? Sim. Mas e o prazer de salvar um livro?

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Olhem nos olhos das bibliotecárias

Olhem nos olhos das bibliotecárias

Ignácio de Loyola Brandão, O Estado de S. Paulo, 17 jun. 2011

Apanhei o minissanduíche triangular de pão branco, macio, recheado com duas fatias, uma de queijo prato, outra de presunto, coloquei na boca. Desapareceram as centenas de bibliotecárias, emudeceu o som, sumiram os garçons que ocupavam o hall do Masp, apagou-se o coquetel e me vi no trem da Companhia Paulista com minha mãe desamarrando as pontas do guardanapo levemente úmido e tirando o lanche que tanto esperávamos, meu irmão Luis e eu. Farnel feito com capricho. Cada sanduíche envolto em papel impermeável que conservava o frescor do pão. Não existia papel de alumínio, o mundo era rudimentar e a indústria brasileira, incipiente. Um dia alguém há de escrever sobre como evoluímos nas pequenas coisas que nos trouxeram conforto. Na noite anterior, meu pai tinha chegado com o queijo, o presunto e o pão encomendado havia uma semana na padaria do Lima. Não existia pão de forma industrializado nem supermercados, encomendava-se nas padarias. Minha mãe limpava a mesa, colocava a toalha e preparava os sanduíches, pronta a segurar a mim e ao Luis, já que queríamos filar sorrateiramente uma fatia de presunto ou queijo. Era tudo contado. Gente remediada comia presunto somente em viagem ou quando adoecia.

Aqueles momentos voltaram durante o coquetel servido no Masp, após a homenagem do Conselho Regional de Biblioteconomia a algumas pessoas que contribuíram para este mundo essencial na cultura de qualquer país, as bibliotecas. Apanhei o meu prêmio que leva o nome de Laura Russo, a mulher que conseguiu a regulamentação da profissão em 1962 e foi diretora da Mário de Andrade, biblioteca ícone em São Paulo. Na hora de agradecer, cada um tinha dois minutos, igual ao Oscar, mas, igual ao Oscar, cada um falou quanto quis, uns menos, outros mais. Lembrei as minhas bibliotecas. A primeira, a do meu pai, sempre por mim celebrada, enorme para a época, tratando-se de um ferroviário. Nela, líamos juntos, ele e eu. A segunda, a da escola de Lourdes Prada, em Araraquara, onde fui apresentado à clássica Coleção de Contos de Fadas do Mundo, da Editora Vecchi, abrindo meu mundo.

Uma vizinha, Odete Malkomes, possuía O Tesouro da Juventude completo, mantido em uma estante fechada. Odete agia como uma espécie de bibliotecária, emprestava um volume por vez, verificava as condições do retorno, se o livro estava limpo, sem manchas, sem páginas arrancadas. Uma parente, Maria do Carmo Mendonça, tinha toda a Coleção Infantil Melhoramentos (adoraria rever aquele conjunto deslumbrante de cem livros), cujo número 1 foi O Patinho Feio. Maria do Carmo também era meio bibliotecária, emprestava, marcava o que emprestava, vigiava, pedia de volta numa data estipulada, sob pena de nunca mais emprestar, ameaça que me fazia tremer. Com ela aprendi a ler no prazo.

Não me esqueci de Marcelo Manaia, que regeu a Mário de Andrade de Araraquara (lá também tem uma) por anos. Quando ele chegou, havia uma norma moralista que determinava: os livros "fortes" deviam ficar trancados, emprestados somente a maiores de idade. Entre os "fortes" estavam Jorge Amado e Pittigrilli. Pois Marcelo, filho de um italiano consertador de sanfonas, simples, intuitivo, espírito aberto, assumiu e liberou geral, entregava Jorge Amado às moçoilas e até indicava as páginas em que havia cenas picantes. Gerações inteiras leram todos os livros legíveis que ali existiam. Livros ilegíveis? Sim! Quem ia ler a coleção da Revista dos Tribunais, imensa, em "jurídiquês" hermético?

Bibliotecas têm um cheiro especial, atmosfera própria, uma luz particular. Quanto às bibliotecárias, identifico-as pelo olhar. Olhem nos olhos delas, logo verão se gostam do que fazem. Elas têm viço, como se dizia. Levam uma chama nos olhos quando estão entre livros. Circulam pelos corredores entre estantes de modo desenvolto, em passos leves de dança. Por menor que seja a biblioteca pública, elas têm orgulho do que fazem, conhecem o papel que desempenham. Pena que ganhem tão pouco, lutem tanto para manter a dignidade e o sustento. Maria Cristina Barbosa de Almeida, agora à frente da Mário de Andrade de São Paulo - restaurada, refeita, revitalizada -, disse bem sobre a penúria das funcionárias, das gratificações que chegam atrasadas e em parcelas. Ela sintetizou a vida de bibliotecárias, que trabalham por amor aos livros, às literaturas e por nós, autores. Diante de uma bibliotecária devíamos nos curvar em reverência.

Biblioteca, ah, bibliotecas. Encerrei semana passada em Itapeva um circuito de seis cidades, nas quais falei sobre as bibliotecas públicas. Passei por Itanhaém, Eldorado, Ilha Comprida, Cananeia, Apiaí, Itapeva. Plateias maiores e menores, no meio de livros, envolvidos pelo cheiro de papel velho e papel novo, nos reuníamos em conversas informais, mostrando que literatura é prazer, não uma coisa inacessível, como querem os acadêmicos. A Viagem Literária que fiz pela terceira vez é o programa que leva escritores para 70 cidades paulistas, num total de 350 eventos, com muitas falas, perguntas, fotos em celulares, cafezinhos, sucos, bolos, biscoitos e broas de milho feitas muitas vezes pelas próprias bibliotecárias. Ao voltar, a caminho de São Paulo, vim me lembrando de uma viagem, no tempo em que a TIM levava autores pelo interior de vários Estados. Programa que acabou, uma pena. Certa vez, em Monte Carmelo, Minas Gerais, ao visitar a biblioteca na hora do almoço, encontrei-a sob os cuidados de uma faxineira, que nada sabia da localização dos livros, de autores ou de quantos volumes havia. Fiquei desanimado, , uma faxineira? Que descaso! Arrependi-me de meu preconceito ao conversar com ela:

- E a senhora gosta da biblioteca?

- Adoro esta hora. Todo mundo sai para comer, fico sozinha, quietinha, não preciso lavar banheiros e salas. Apanho um livro, outro, acostumei a ler. É gostoso, saio voando, esqueço o mundo. Que nunca percebam que leio os livros, se não me tiram daqui.

Não, não tirariam, o mundo não é ruim assim.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ancestralidade

Ancestralidade

 “Um judeu ateu é sempre um drama

maior do que qualquer ateu,

porque se assemelha à agonia de um vulcão”

LUIZ FELIPE PONDÉ

UM HOMEM deve reconhecer seus ancestrais. Existem várias formas de ancestralidade. Nossos autores prediletos são nossos patriarcas.

O primeiro texto que me marcou foi a Bíblia. Abraão e sua solidão diante de um Deus que armou sua tenda no deserto me deram um senso estético que nunca perdi. Seus profetas, num combate contínuo contra a estupidez do povo, fizeram de mim um cético com relação às virtudes populares.

Na medicina, Freud foi um encontro definitivo: o homem é um barco à deriva num mar de pulsões autodestrutivas. Vive como pode num mundo onde sua felicidade não parece fazer parte dos planos do Criador.

O Deus do ateu Freud é arrasador. Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão.

Já na filosofia, o viés trágico se impôs com a descoberta de Nietzsche e sua filosofia do martelo, cujo desprezo mortal pela covardia e pelo ressentimento se tornou em mim uma segunda natureza. Sua política, uma espécie de anarquismo aristocrático, é sempre perigosa para os amantes dos rebanhos.

O ceticismo dos gregos, de Montaigne e de David Hume abalou para sempre minha capacidade de fé na razão, não em Deus, como pensa a vã filosofia.

Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento.

Dostoiévski é sempre essencial. Para mim, uma de suas descobertas capitais é que, ao contrário do que diz nossa miserável ciência da autoestima, apenas quando encaramos o mal (a "sombra" de uma espécie abandonada ao próprio azar) em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia.

Entre Nietzsche e Dostoiévski, aprendi que o niilismo, "esse incômodo convidado para o jantar", veio pra ficar e é apenas diante dele que vale a pena exercer a filosofia.

E o judeu Rosenzweig? Definitivo para quem pressente que a metafísica nada mais é do que pensamento mágico a serviço do medo da morte. E que não é a esperança mágica que deve nos guiar, mas a percepção de si mesmo como milagre em meio ao pó que em nós estremece. Rosenzweig pensa como o homem bíblico.

Quando "decidi" que a academia era pequena sem a mídia, os "jornalistas filósofos" passaram a marcar meu horizonte profissional. Otto Maria Carpeaux descreveu a imagem máxima da relação entre espírito e corpo: quando o primeiro se levanta, o segundo se põe de joelhos.

Nelson Rodrigues, que estava certo em tudo que falava, escrevendo uma obra entre Santo Agostinho, Dostoiévski e Freud, iluminou um fato consumado: se o mineiro for solidário apenas no câncer, então tudo é permitido.

Paulo Francis, uma eterna falta entre nós, percebeu que o medo e a mentira pautariam a vida intelectual futura e que o "bem político" seria a nova face da estupidez do pensamento público.

E finalmente a praga da "fé política". Contra essa, Edmund Burke e Tocqueville são bálsamos essenciais. Tocqueville, principal referência para entendermos a democracia, nos alertou para a natural vocação que esta tem para uma nova forma de tirania, a tirania da maioria. Antes de tudo, a democracia fez os "idiotas" (expressão rodriguiana) descobrirem que são maioria.

Burke nos lembrou, contra os que "amam a moda", que a sociedade é uma comunidade moral de almas, que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. Para Burke, é apenas neste arco de ancestralidade que o homem se faz homem, contra a banalidade do presente que nos assola.

Enfim, quem conhece sua ancestralidade, mesmo quando caminhando no vale das sombras, nunca está só.

ponde.folha@uol.com.br   

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Frase do ano....

"Não nos tratem como artistas. Quero que continue me tratando como um trabalhador, como um mineiro", Mario Sepúlveda, o segundo mineiro a ser resgatado.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Deixem o palhaço legislar

Deixem o palhaço legislar

Sérgio Malbergier

Tiririca é o novo herói nacional. A expressão mais raivosa e consistente do voto de protesto contra o corpo político brasileiro. Que a Justiça esteja já acionada para cassá-lo por suposto analfabetismo revela como o palhaço/deputado federal mais votado do país ameaça o sistema. O deboche e o humor são armas poderosas.

E que boa piada: uma Justiça sem dentes para barrar os eternos abutres da política afia suas garras diante do palhaço nordestino que, como nosso consagrado presidente, veio de muito baixo na pirâmide social para afirmar-se de forma retumbante em São Paulo.

Quem conhece e representa melhor o Brasil profundo do que o palhaço Tiririca hoje na política? Só Lula. Que elitismo suspeito esse preconceito contra o suposto analfabetismo do palhaço. Quem melhor que um analfabeto ou semi-analfabeto para representar os milhões de mal educados do país? Analfabeto não é incapaz nem criminoso para ter direitos políticos limitados. Muito pelo contrário, é vítima da má gestão desta obrigação pública mais básica que é a educação.

Se a Wikipédia está certa, o palhaço Tiririca começou a vida no circo aos 8 anos, em Itapipoca, no Ceará, e estourou regionalmente com a música "Florentina", que a Sony Music tornou megahit nacional em 1996.

Ele já teve problemas com a lei naquela época por causa da música "Veja os Cabelos Dela", que lhe rendeu uma acusação de racismo, da qual foi inocentado. A letra, puro Tiririca, dizia: "Veja, veja, veja, veja, veja os cabelos dela/Parece bombril, de ariá panela/Parece bombril, de ariá panela/Quando ela passa, me chama atenção/Mas os seus cabelos, não tem jeito não/A sua caatinga quase me desmaiou/Olha eu não aguento, é grande o seu fedor".

Uau!

A singeleza sempre foi seu atributo. Os jingles e os spots de sua campanha, feitos de forma despretensiosa por amigos humoristas, devem ser estudados pelos caríssimos marqueteiros de plantão. São a maior lição de marketing político desta campanha.

Dançando daquele jeito nordestino, o palhaço canta meio preguiçoso: "O que é que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto", ou "Pior do que tá não fica, vote Tiririca". Bingo!

Os mais de 1,3 milhão de votos que Tiririca teve em São Paulo não podem ser desclassificados por essa Justiça incapaz de julgar os que deveriam ser julgados e que ainda por cima pode barrar a melhor notícia desta eleição: a lei da ficha limpa.

Deixem Tiririca legislar. Queremos vê-lo dançando no tapete do Congresso e discursando daquele jeito engraçado no microfone do plenário. Estará, legitimamente, representando muita gente. Dos que enfrentam as mesmas dificuldades e preconceitos que ele enfrentou e enfrenta aos que acham que a política brasileira é uma grande piada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

As minhas traições

As minhas traições

“Liguei o Kindle. Com enfado, li as instruções. Experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?”

JOÃO PEREIRA COUTINHO

SOU UM traidor. Sou um hipócrita. Não tenho defesa. Nem perdão. Mas guardar segredo é pior que partilhá-lo. Partilho.

Imagine o leitor: eu, num círculo de amigos literatos, discutindo as últimas novidades da "rentrée". Subitamente, alguém fala sobre o futuro do livro. E elogia as qualidades do livro eletrônico.

É nesse preciso momento que eu faço cara de nojo, limpo o suor da testa com meu lenço de renda e disparo um "jamais!" que faz tremer o salão. O meu mundo é o mundo de Gutenberg: o mundo arcaico do papel e da tinta, não de "pixels", "bits" e outras barbaridades linguísticas. Livro eletrônico? É como fazer amor com uma boneca insuflável.

"Um livro é um livro", disparava eu, em conhecido clichê. Nada substitui o objeto físico que transportamos, dobramos, sublinhamos. Tocamos. Cheiramos. Por vezes, rasgamos ou queimamos. A ideia de ler um romance, uma biografia, um mero ensaio em suporte eletrónico chegava para cobrir a minha costela conservadora de um horror herético. Nem morto.

Mas então aconteceu: uma oferta familiar em dia de aniversário. Bateram à porta. Entregaram a encomenda. Era o famoso Kindle da Amazon, com capa de pele, bonitinho. Perigosamente bonitinho.

Farejei o bicho com desconfiança primitiva. Cocei o crânio com pasmo neandertal e senti-me um dos macacos de Stanley Kubrick, na sequência inicial de "2001 - Uma Odisseia no Espaço".

Como se um objeto estranho tivesse vindo diretamente do futuro. Por milagre não quebrei o aparelho com a força das minhas ossadas. Um livro eletrônico era aquilo? "Jamais, jamais", gritava a minha pobre consciência.

Os dias passaram. O objeto, a um canto, mendigava a minha atenção sempre que passava por ele. "Jamais, jamais", repetia ainda. E sempre com menor convicção.

Uma tarde, aproximei-me. Tentei ignorá-lo, lendo ostensivamente as "Páginas Amarelas". O objeto soltou um suspiro de tristeza, quem sabe de abandono. E eu, com caridade cristã, decidi dedicar-lhe dois minutos de atenção, não mais.

Liguei o Kindle. Com enfado, fui lendo as instruções. E, por cada página lida, a pergunta mefistofélica: experimentar nunca fez mal a ninguém, certo?

Experimentei. Diretamente do site da Amazon, fui importando livros grátis. Os clássicos gregos. Os clássicos romanos. Algum Maquiavel, algum Hobbes, algum Swift. Os pensamentos de Pascal. Uma edição completa das peças do bardo. Tudo a preço zero. Em 60 segundos, a Biblioteca de Alexandria viajava até minha casa.

O meu entusiasmo começava a ser perigoso. Embaraçoso. Numa tarde, descarregara 50 livros. Outros 50 vinham a caminho.

E, pior, já começara a ler um: a autobiografia de Tony Blair, que comprei a preço reduzido. Lia. Inacreditavelmente, sublinhava. Mais inacreditavelmente ainda, escrevia notas. Aquilo não era um livro. Era melhor que um livro. Que foi mesmo que eu disse?

Hoje, levo uma vida dupla. Em público, passeio os meus grossos volumes da "Enciclopédia Britânica", em gesto de resistência ao mundo virtual. Finjo. Quando me falam nas virtudes do Kindle, ou do e-book, as minhas gargalhadas são jocosas, ofensivas, delirantes.

Mas são também forçadas e encenadas: chego em casa e chamo logo pelo meu Kindle como quem chama pelo gato. E ele vem, pronto para miar centenas e centenas de obras-primas. Se um dia a casa arder e eu estiver em estado delirante, o leitor já sabe o que significa "Salvem o gato! Salvem o gato!".

Moral da história? A internet foi a primeira grande revolução da minha existência literária. Mas o livro eletrônico será a segunda ao introduzir a mais importante divisão intelectual da vida.

Haverá sempre livros que desejarei ter; e "ter" no sentido tangível do verbo: como objetos físicos, artísticos, existenciais. Nesse sentido, as livrarias continuarão a ser os únicos templos laicos que frequento com religioso fervor.

Mas depois existirão os livros que quero ler. Simplesmente ler. Não amanhã, ou depois, ou um dia qualquer. Mas hoje. Agora. Já. O sonho de qualquer leitor curioso, insaciável, ditatorial.

Regresso ao início: sou um traidor. E no dia em que os meus amigos literatos, cansados de minhas mentiras, vierem buscar-me para a fogueira, nada peço em minha defesa. Espero apenas que poupem o gato.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Desmoralização

Desmoralização

por Marcelo Rubens Paiva

O fenômeno TIRIRICA agora incomoda.

Depois que se revelou que ele está em primeiro na pesquisa Ibope para Deputado Federal de SP, com quase 1 milhão de votos.

Seu lema de campanha é: “Pior que está, não vai ficar.”

No horário eleitoral da TV, ele aparece como se atuasse num quadro do ZORRA TOTAL:

“Minha mãe vai votar em mim, meu pai vai votar em mim, até a minha sogra!”

Em ainda termina com um bordão, típico dos humoristas de plantão:

“É que sou bunitinho.”

Sua popularidade tem cara de voto de protesto.

Como já aconteceu com ENEAS, CLODOVIL e tantos outros.

O problema é que, com isso, ele arrasta 5 ou mais candidatos da sua legenda para o Congresso.

Como por exemplo VALDEMAR COSTA NETO, um dos pivôs do escândalo do Mensalão, que renunciou para não ser cassado, e que no ano passado teve seu nome citado nas investigações Operação Castelo de Areia, que apurou crimes envolvendo executivos do Grupo Camargo Correa.

Acusam TITIRICA de desmoralizar a democracia brasileira.

PAULO SKAF entra com representação contra ele no TSE.

O palhaço tem todo o direito de ser candidato.

Sua campanha segue o seu estilo.

E, além disso, não é o horário eleitoral que por vezes tem a cara do ZORRA TOTAL?

Deve-se perguntar ao 1 milhão de eleitores por que desmoralizam a democracia.

Porque Zé Dirceu acaba de declarar que no Brasil tem liberdade de expressão em excesso?

Porque Collor sobe no mesmo palanque de Lula? Ou porque Maluf, o segundo na pesquisa Ibope para Deputado Federal de SP, só não vai preso por causa da idade?

Porque o ESTADÃO está há mais de 400 dias sob censura?

Censura imposta pelo filho do presidente do Senado?

Presidente que, mesmo depois do escândalo de desvio de dinheiro de seus subalternos, continua presidindo-o?

Ou porque Lula disse, na semana passada, que a denúncia da quebra de sigilo da Receita é desespero de campanha do adversário, e na semana seguinte, ontem, mandou seu ministro, Guido Mantega, regularizar o acesso aos dados da Receita?

Não é TIRIRICA quem desmoraliza a democracia.

Ela já está.

E parte do eleitorado manda sinais claros.