terça-feira, 20 de julho de 2010

Amém e saravá meu padim

Amém e saravá meu padim

Fonte: Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S. Paulo

A espiritualidade do brasileiro é intrincada. Muitas forças pairam sobre nós, combatem e seduzem a razão das nossas almas.

Aportou nas praias uma Companhia de Jesus, que chegou para catequizar os "selvagens", missão árdua que tirou o sono de Anchieta. Que depois de vestir os índios e fazê-los plantar, ajoelhar e rezar, descobriu que continuavam seguindo o próprio juízo.

Apenas para agradar aos colonizadores e pararem de apanhar obedeciam as regras daquele culto "exótico", organizado em torno de um pobre homem preso numa cruz.

Anchieta no fim da vida chegou a escrever que sua missão fracassara, e que só a ferro e brasa seria possível a conversão.

Vieram os africanos com um culto sofisticado, elaborado e orixás que remetem a arquétipos - milênios de lendas faladas em torno de fogueiras, capazes de definir detalhes da nossa psique.

Para aplacar o furor da Inquisição, candomblé virou umbanda, Orixás se transvestiram como santos, o sincretismo foi adotado em todas os cantos e terreiros.

Iemanjá mora no coração de cada brasileiro. Círio de Nazaré arrasta milhões em torno de uma corda. Padim Padre Cícero é celebrado de norte a sul. Uma iconografia própria se elevou.

Chegaram os italianos para tocar as plantações sem escravos e uma indústria que nascia. Na bagagem, manuais anarquistas e marxistas, um saudável paradoxo, já que conviveram intimamente com o poder na Igreja.

Meus avós italianos me assustavam quando cantavam, na mesa, ainda no primo piatto: "Avanti o popolo alla riscossa, bandiera rossa trionferà. Per gli sfruttati immensa schiera, la pura innanzi rossa bandiera, o proletari alla riscossa?" Pois terminavam pregando "Il santo papa sará inforcato!", enquanto eu era catequizado na escola.

Pobre Pio XII, papa frágil, complexo, carinha de santo, que teve uma relação controversa com o nazi-fascismo.

No mais, minha avó Olga contava que, quando pequena, fora assediada por um padre, que a sentava no colo com segundas intenções.

Para apimentar esta feijoada espiritual, cada brasileiro tem um signo e ascendente - a lua rege paralelamente -, um orixá, sua visão do Evangelho, a crença pessoal, aceitando ou não os mandos do Vaticano, eventualmente comparecendo a pajelanças ou a rituais criados pelos povos da floresta, como o Daime.

E se as ordens de cima são anacrônicas e proíbem o uso da camisinha, o casamento gay e o aborto, olhamos de lado.

Aqui nasceu a Teologia da Libertação, uma busca da essência do Cristianismo: luta contra a injustiça e pela igualdade social. Combatida por João Paulo II, aquele que querem transformar em santo, anticomunista ferrenho.

A religiosidade do brasileiro é tão complexa, única, independente e criativa, que fascinou de Lévi-Strauss, Darwin a Sartre.

E quando um gringo desembarca por essas terras, não está atrás apenas de Havaianas legítimas. Quer também vibrar com os tambores e a riqueza do nosso "paganismo".

domingo, 18 de julho de 2010