terça-feira, 14 de julho de 2009

Resmungo teológico

Resmungo teológico

"Relendo meu próprio artigo, perguntei-me: o que se ganha em negar a existência da alma?"

FERREIRA GULLAR, domingo na Folha

EMBORA DEFIRA DO biólogo Richard Dawkins que, nesta semana, na Flip, alardeou seu ateísmo, eu, em meio aos meus costumeiros resmungos, pus em dúvida aqui a existência da alma, chegando mesmo a lembrar que, em certa época remota, os gregos a designavam pela palavra "pneuma", que significa ar, sopro, ou seja, a respiração de quem está vivo. Nada mais que isso. Fiz essa afirmação, meses atrás, a propósito da excomunhão dos médicos que praticaram aborto numa menina, estuprada pelo padrasto. Como, para a Igreja Católica, a alma já está no momento da fecundação, praticar o aborto é matar um ser humano, dono de uma alma divina.

Afirmei, por isso, que, para ela, o que importa não é a vida e, sim, a alma, razão por que, durante a Inquisição, condenou à morte, na fogueira, milhares de pessoas, para salvar-lhes a alma.

Tem lógica mas, relendo o meu próprio artigo, perguntei-me: o que se ganha em negar a existência da alma? Pergunta essa que, feita por mim, pode surpreender o leitor.

É que me lembrei de que não foi a Igreja Católica quem inventou a alma. Os gregos, muito antes de Sócrates e talvez mesmo de Pitágoras, já a tinham

inventado, sem falar nos egípcios, que acreditavam numa vida post mortem, mas com o corpo também e, por isso, faziam-se embalsamar. Os cultos órficos da Grécia pré-helênica fundavam-se na crença da transmigração das almas que, no além, poderiam ser premiadas ou punidas pelo que fizeram aqui em baixo. Inscrições descobertas em sepulturas daquela época contêm ensinamentos de como a alma do morto deveria se comportar para merecer a salvação.

Num desses textos, lê-se o seguinte: "Tu acharás, à esquerda da casa de Hades, uma fonte e, a seu lado, um cipreste branco. Dessa fonte, não te aproximarás, mas te depararás com uma outra, perto do lago da Memória. Diz: "eu sou filho da terra e do céu estrelado'". É que para eles, o corpo vinha da terra e a alma, do céu.

Essa visão do homem como ente, ao mesmo tempo, terrestre e celeste, irá ganhar consistência teórica na filosofia de Sócrates e, sobretudo, na de Platão. Pode-se supor que a admirável bravura e despreendimento daquele em face da morte, deve-se, de fato, à sua convicção de que, depois dela, havia outra vida e melhor.

Se Platão herda de Sócrates essa convicção, em sua teoria a existência da alma está essencialmente ligada à possibilidade do verdadeiro conhecimento. Para ele, o corpo era um fator que impedia de se conhecer a verdade, não facultada aos sentidos. Pelo contrário, na sua concepção, os sentidos nos iludem, induzindo-nos a uma visão imperfeita da realidade. Donde a conclusão de que, só depois que nos livramos do corpo, podemos apreender a verdadeira realidade da existência, a que apenas a nossa alma teria acesso.

Essa concepção platônica da alma influiu na visão do cristianismo e, consequentemente, na teologia da Igreja Católica.

Mas, até onde me é dado perceber, elas não são idênticas em todos os pontos, especialmente em um: enquanto na teoria platônica o que há de reprovável no corpo é sua incapacidade de apreender o verdadeiro conhecimento, na teologia católica, essa incapacidade se converte em pecado, isto é, o corpo, sujeito a desejos condenáveis, contamina a alma de pecados, que podem levá-la à perdição eterna. Nisto, a concepção católica parece mais próxima do orfismo que do platonismo, mais filosófico do que teológico.

Mas meu propósito aqui não é discutir essas questões e, sim, afirmar que, na dúvida de que a alma exista ou não, melhor será acreditar em sua existência do que negá-la, já que não há como provar uma coisa nem outra.

Negamos a alma porque somos herdeiros do progresso econômico e científico, que nos revelou a lógica material da natureza e da vida, e que é irretorquível. Não obstante, a própria ciência diz que não é capaz de responder a questões como esta: por que existe algo em vez de nada? Assim, o enigma da existência continua sem resposta.

Não fui eu mesmo quem disse que o homem inventou Deus para que este o criasse? Ele o inventou porque não quer ser igual a um simples animal, nascido da natureza, condenado a acabar para sempre. Se sou filho de Deus, tenho uma alma divina que me torna imortal. E é isso, essa capacidade de inventar-se, que nos distingue dos outros animais. Filho de Deus mesmo ou inventado por si mesmo, a verdade é que o homem necessita da transcendência e aspira à eternidade. Por isso, precisa da alma, uma vez que o corpo, após a morte, virá pó.

Pessoal, este papo está brabo demais! Vamos mudar de assunto?

Nenhum comentário: