segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Crise? Compre um livro e se divirta

Há especialistas que garantem: a crise da economia mundial e o aperto no consumo não afetarão saúde do mercado editorial

Fonte: O Estado

Quando a economia vai bem, sempre aparece alguém para anunciar a “morte do livro”. Com a economia mundial na maior sinuca desde a Depressão, era de se esperar que até nos precisassem a data do enterro. Mas, apesar da recessão à vista e da alta dos custos de papel e impressão, a mais recente profecia sobre o futuro do livro não fala em morte, e sim em ressurreição. “Os livros podem recuperar o terreno supostamente perdido para outras formas mais dispendiosas de entretenimento”, previu há dias o britânico Laurence Orbach, há 32 anos à frente da editora Quarto.

Armado de números, Orbach minimiza os efeitos do aperto no consumo (“as vendas de títulos publicados continuam firmes e até subiram em algumas categorias”) e antevê um horizonte cor-de-rosa para quem se dispuser a investir em seu ramo de negócios: “Livros não dependem de publicidade, ao contrário das empresas de comunicação.” Também ganham na relação custo-benefício. Nos primeiros nove meses deste ano, as vendas da Quarto subiram 17% e seu lucro em operações paralelas foi de 15%. Qual o segredo? Livros de catálogo, relevantes por longo tempo, chova ou faça sol.

Foram livros de catálogo que asseguraram o “muito bom ano” que a Companhia das Letras viveu até agora, segundo Luiz Schwarcz. Cauteloso, mas otimista, Schwarcz acredita que as editoras e o comércio de livros possam de fato ser menos atingidos pela crise. “Livros são relativamente baratos, custam em média entre R$ 20 e R$ 40, e sua venda não depende de financiamento ao consumidor, como no caso dos eletrodomésticos”, acrescenta Roberto Feith, da Objetiva. “As vendas de automóveis já foram afetadas, as de livros, não”, ressalta Feith. Sem triunfalismo, pois sabe que o movimento nas livrarias depende, basicamente, do poder de compra da classe média, e há uma retração econômica agendada para 2009. “Este ano foi muito bom e penso que o Natal ainda será, mas 2009 deve ser mais difícil.”

Mais cético, Paulo Roberto Pires, diretor editorial da Agir, receia que ao menos uma marola do tsunami econômico-financeiro nos atinja. “Em nosso laguinho editorial, uma marola já faz um estrago danado”, salienta, fazendo questão de acentuar a excepcionalidade da editora de Orbach: “A Quarto faz packaging, isto é, vende livros prontos, com direitos zerados, para serem impressos para diversos países ao mesmo tempo, um modelo no qual a também inglesa DK é mestre.”

Na segunda-feira, a Doubleday Publishing Group, divisão da Random House que engloba quatro selos editoriais, dispensou 16 funcionários ou 10% de sua equipe. Era mais um sinal de que, ao contrário das estimativas de Orbach, a indústria de livros não vai bem das pernas. Ao menos nos EUA, epicentro da atual crise econômica, não vai. As vendas das cinco maiores editoras americanas subiram 0,5% na primeira metade de 2008, mas o movimento nas livrarias declinou em junho e deverá cair mais até o fim do ano, confirmando as ominosas avaliações de uma reportagem de Boris Kachka, publicada em 14 de setembro pela New York Magazine, com o lacônico título de “The end” (o fim). Oculto por elipse, o complemento “of publishing”.

O “fim da indústria editorial” tal como a conhecemos já estaria se processando a pleno vapor, espreitada de perto (perto até demais) pelo Kindle, o livro eletrônico da Amazon. Embora desencadeado antes das recentes turbulências no mercado financeiro, estas só contribuíram para dar razão aos seus oráculos. Wall Street ainda parecia navegar em águas plácidas quando as vendas de livros começaram a estagnar e uma expiação em regra teve início. Cabeças coroadas rolaram pelas mais cobiçadas portas das editoras, autores VIP foram avisados de que contratos milionários e generosos adiantamentos sobre hipotéticas estimativas de retorno tornaram-se coisa do passado - de um passado bonançoso, que, acredita-se, não volta mais.

Como os bancos e as financeiras que andaram quebrando nas últimas semanas, os conglomerados que se apossaram da indústria de livros foram vítimas de executivos desmedidamente ambiciosos e da insaciável ganância de seus acionistas. Buscar superávits de dois dígitos num ramo de negócios acostumado a 5% de lucratividade média revelou-se uma colossal insensatez. Absorvidas pelas cinco grandes corporações do ramo, pequenas editoras abriram mão de sua política editorial, ampliando a mesmice e contribuindo para um empobrecimento generalizado.

“O mercado teve suas opções drasticamente reduzidas”, analisou um poderoso agente literário. “A concorrência estreitou-se, escravizando as editoras a best sellers e à pilantragem retórica dos marqueteiros. Mas nem esta está dando mais certo. Até memórias de celebridades televisivas já não vendem tanto quanto algum tempo atrás, e é possível que os livros sobre cães e gatos, a coqueluche do momento, já estejam na linha de tiro. Ninguém sabe o que fazer. Resenhas favoráveis, jabás e recomendações na contracapa perderam seu condão combustivo. Ninguém sabe mais onde estão os leitores, nem como cativá-los.”

Em 1993 o escritor Philip Roth estimou a existência, nos EUA, de uns 120 mil “leitores sérios” (aqueles que lêem todas as noites), número que, a seu ver, cairia pela metade em 10 anos, e assim sucessivamente. Se procedente o cálculo, só cerca de 45 mil americanos vão para a cama com um livro todas as noites, atualmente. Suponho que a média brasileira não seja apenas bem inferior, mas descomunalmente inferior. Pena, porque a leitura, para cunhar uma frase original, só nos enriquece. Independentemente de gêneros.

A ficção é mais enriquecedora, defende o crítico James Wood, que publicou este ano um dos melhores ensaios da década: How Fiction Works. A ficção nos liberta, alardeia Russell A. Berman. Concordo, mas não pelos motivos arrolados por ele em Fiction Sets You Free, um dos livros mais tendenciosos dos últimos tempos, um clássico do determinismo econômico, furadíssimo se olharmos para o passado e pateticamente datado se nos fixarmos no caos presente. Publicado em 2007, despertou polêmicas periféricas em redutos que ainda levam a sério a salmodia neoconservadora, mergulhando em seguida no buraco negro do esquecimento, até ser exumado no Times Literary Supplement da semana passada, onde levou um merecido corretivo.

Berman é um autêntico oxímoro: um materialista dialético de direita. Sem, no entanto, a inteligência, o brilho, e muito menos a obra, do maluco-beleza Ezra Pound. Como o mais doutrinário ideólogo marxista, não consegue dissociar a literatura das condições econômicas sob as quais é produzida. Mas para concluir que a literatura melhor prospera - e mais libertária e enriquecedora resulta - quando produzida em países onde triunfou a economia de mercado. E todas aquelas obras-primas surgidas em regimes feudais e ditatoriais? Dostoievski não viveu no tempo dos czares?

Há quatro anos, Berman publicou uma catilinária bushista contra o antiamericanismo europeu, com base nos clichês habituais (os europeus têm uma “arraigada inveja moral” dos americanos, não toparam invadir o Iraque porque “negligenciam o genocídio”, apegam-se a idéias sócio-econômicas retrógradas, etc), de que Fiction Sets You Free é uma continuação. Para ele, ser contra os EUA, ainda que pontualmente, é ser contra o capitalismo e, por conseguinte, o humanismo, a imaginação, o empreendedorismo, a própria literatura. Toda obra ficcional, a seu ver, “cultiva a proeza imaginativa da visão empresarial”. E quem desaprova o comercialismo na literatura “está, no fundo, hostilizando os mecanismos do mercado”, assumindo uma “postura elitista”, o pejorativo da moda. Nem Ayn Rand, creio, foi tão longe na defesa de idéias recém-pervertidas pelos Gordon Gekkos de Wall Street.

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