terça-feira, 6 de outubro de 2009

Letterman no confessionário

Letterman no confessionário

“Quando a audiência aplaude,

o infeliz sabe que o perdão existe.

E a audiência aplaudiu”

Fonte: JOÃO PEREIRA COUTINHO, hoje na Folha

CONVERTEU-SE EM clichê afirmar que a psicanálise substituiu o confessionário. Reza a lenda: antigamente, o pecador entrava na igreja, conversava com o padre de serviço e, depois das penitências, regressava ao mundo da luz e dos vivos. Com a alma limpa, intata, renascida.

Hoje, com o recuo do cristianismo na vida dos cosmopolitas, não há pai-nossos ou ave-marias para ninguém. Só divãs. O paciente entra, confessa os seus "pecados" aos clérigos seculares e, com alguma sorte, encontra redenção para si próprio. Simplifico? Claro que simplifico. Pior: deturpo sem um pingo de vergonha. Qualquer leitor de Freud, o patrono da "ciência" e um pessimista inestimável, sabe que a psicanálise não procura salvar os homens. Desde logo porque, seguindo ainda o doutor Sigmund, os homens não têm salvação.

O que resta? Apaziguamento. Reconciliação. Um programa mais modesto. O que não significa que não existam confessionários modernos. Existem. Mas eles não estão nos divãs urbanos onde os urbanos desfiam o seu rosário. Os confessionários estão na televisão. Todas as semanas, os mais notáveis infelizes surgem em grande plano para partilharem com o mundo as sujidades mais íntimas, os horrores mais privados. Como nos divãs da psicanálise? Exato.

Mas, ao contrário do que sucede nos divãs, os infelizes não procuram apenas apaziguamento ou reconciliação. Eles querem mais. Eles desejam perdão. E, na ausência de um Deus superior que os redima ou ame incondicionalmente, sobram as audiências. Quando a audiência aplaude, o infeliz sabe que o perdão existe. E a audiência aplaudiu David Letterman. Eu vi. Uns dias atrás, quando assistia ao "Late Show", Letterman surgiu em tom grave para confessar pecadilhos graves. Nas palavras do próprio, ele dormira com empregadas do "staff" do programa.

Repetidamente. Ao longo de anos e anos e anos. A audiência ria do monólogo, pensando que o monólogo era piada. Não era. Chantageado por um produtor da CBS, Letterman contava a verdade.

A primeira leitura parece simples: a melhor forma de terminar com a chantagem é revelá-la. Letterman foi perfeito na execução, desarmando assim o criminoso que exigia US$ 2 milhões para não tornar públicas as intimidades sexo-laborais de Letterman. O criminoso foi preso e aguarda julgamento.

Mas existe uma segunda leitura, que se resume na pergunta: por que expor uma confissão que, no limite, apenas interessaria à sra. Letterman? Mais: se a intenção de Letterman era expor o criminoso pela revelação da chantagem, não seria mais edificante contar a história à polícia e esperar que a polícia fizesse o seu trabalho? O resultado não teria sido igual, com vantagens para a dignidade pessoal de Letterman?

Dúvidas sem sentido: ao confessar a sua vida íntima na televisão, Letterman não se limitou a desmontar uma conspiração contra ele. Ironicamente, Letterman fez o que fazem os seus convidados: procurou nas audiências uma forma de reconhecimento e perdão. Com sucesso. Nessa mesma noite, ao presenciar o monólogo de Letterman, tive a desagradável sensação de ser um voyeur que assiste a um suicídio ao vivo. Como dizia o impagável H.L. Mencken, os americanos perdoam tudo, exceto a evidência de que alguém, algures, se diverte mais do que a média.

Erro meu. Nos dias seguintes ao número, os jornais foram benévolos com Letterman. O público também. De acordo com a opinião pública ou publicada, as confissões de Letterman foram "corajosas". E, como sucede nos processos de expiação, a honestidade do apresentador só serviu para o tornar mais "humano".

Eu não sei se Letterman ficou mais "humano". Mas sei que, nas aparições televisivas seguintes, havia nele a leveza própria dos indultados: a leveza de quem se liberta de um fardo depois da ovação anônima e coletiva.

Voltamos ao início: a psicanálise substituiu o confessionário? Longe disso. O divã pode ter relembrado os conflitos essenciais que existem nos homens. Mas só a televisão, na sua vulgaridade exibicionista, consegue dissipá-los pelo julgamento efusivo das massas.

Houvesse David Letterman nas civilizações antigas e, imagino, Édipo, sentado no sofá, confessando aos tebanos os seus dilemas: "Sim, gente, matei o meu pai, comi a minha mãe. Mas será que devo sofrer por causa disso?" Um banho de aplausos teria salvo o jovem rei.

jpcoutinho@folha.com.br

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