sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A wikipédia me casou

A wikipédia me casou

No começo, eu intervinha nos tópicos que se referiam a mim porque havia datas equivocadas ou notícias erradas. Porém, logo desisti, pois cada vez que, por curiosidade, ia ver minhas informações, encontrava novas besteiras, postadas por sabe-se lá quem.

Fonte: Umberto Eco, Diario do Comercio, 09 out. 2009

Todos nós, quando trabalhamos e precisamos checar um nome ou data, consultamos a Wikipédia na internet. Para os raríssimos que ainda não sabem, informo que a Wikipédia é uma enciclopédia online, na qual os usuários escreverem e reescrevem continuamente. Quer dizer, se você pesquisar a palavra "Napoleão" e ver que as informações estão incompletas ou erradas, você as corrige e sua versão é salva.

É lógico que isso permite aos mal-intencionados ou  loucos difundir notícias falsas, mas a garantia está precisamente no fato de que o controle é realizado por milhões de usuários. Se um mal-intencionado  corrigir que Napoleão não morreu em Santa Helena, mas em São Domingo, imediatamente milhões de usuários bem-intencionados vão intervir para corrigir a correção errada (além disso, creio que após algumas ações legais por parte de pessoas que se consideraram caluniadas por anônimos, criou-se uma espécie de redação que exerce algum controle, pelo menos, sobre o tipo de correções que se apresentam claramente como difamatórias).

Nesse sentido, a Wikipédia seria um bom exemplo do que o filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce denominava A  Comunidade (científica), a qual por meio de uma homeostácia agradável apaga os erros e legitima as novas descobertas, levando adiante, como ele dizia, a tocha da verdade.

Se é possível que esse controle coletivo funcione com Napoleão, poderia funcional com um John Smith qualquer? Peguemos como exemplo uma pessoa mais conhecida do que John Smith e e menos do que Napoleão – isto é, eu mesmo. No começo, eu intervinha nos tópicos que se referiam a mim porque havia datas equivocadas ou notícias erradas (por exemplo, uma dizia que eu era o mais velho de treze irmãos, mas isso se refere a meu pai). Porém, logo desisti, pois cada vez que, por curiosidade, ia ver minhas informações, encontrava novas besteiras, postadas por sabe-se lá quem.

Agora, alguns amigos me avisaram que a Wikipédia diz que eu me casei com a filha de meu editor,  Valentino Bompiani. A notícia não é de forma alguma difamatória,  mas talvez fosse para minhas queridas amigas Ginevra e Emanuela, então intervim para eliminá-la.

Nesse meu caso, sequer se  pode falar em um erro compreensível (como na história dos 13 filhos) nem na aceitação de um boato recorrente: ninguém jamais pensou em tal casamento. Assim, o coautor anônimo da Wikipédia interveio para tornar pública uma fantasia particular, sem nem checar a informação com alguma fonte.

Então até que ponto podemos confiar na Wikipédia? Afirmo logo que confio porque a utilizo com a técnica de um pesquisador profissional: consulto a Wikipédia sobre determinado assunto e depois vou comparar com outras duas ou três páginas na web. Se a notícia aparece três vezes, há boas chances de ser verdadeira (ainda que  se deva prestar atenção para que os sites consultados não sejam parasitas da Wikipédia e repitam o erro).

Outra forma é consultar o tópico em pelo menos duas línguas (se você tem dificuldades com o urdu, haverá pelo menos um correspondente em inglês): frequentemente as versões coincidem (uma é tradução da outra), mas às vezes diferem e pode ser interessante observar uma contradição que poderá induzí-lo (apesar de toda  sua fé no mundo virtual) a se levantar da cadeira e consultar uma enciclopédia de papel.

Contudo, dei o exemplo de um estudioso que aprendeu um pouco de como de trabalha cotejando as fontes entre si. E os outros? Os que confiam? Os garotos que recorrem à Wikipédia para fazer as tarefas do colégio? Note-se que o problema é válido também para qualquer outro site.

Assim faz muito tempo que eu aconselho, também para grupos de jovens, que se faça um centro de monitoramento da internet, com um comitê formado por especialistas confiáveis, para cada tema, para que as páginas sejam analisadas (online ou numa publicação impressa) e julgadas no que se refere a sua credibilidade e integridade.

Entretanto, tomemos outro exemplo que não seja um personagem histórico, como Napoleão (para qual o Google me dá 2,190 milhões de sites), mas o de um jovem escritor que, famoso há um ano – desde que ganhou o Prêmio Strega 2008 –, Paolo Giordano, autor de "A Solidão dos Números Primos". São 522 mil páginas na internet. Como é possível verificar todas?

Uma solução seriam monitorar unicamente os sites referentes a só um autor sobre o qual os estudantes procuram informações frequentemente. Mas se tomarmos Peirce, que citei acima, como exemplo, as páginas que tratam dele são 734 mil.

Eis um problema que, por enquanto, não tem solução.

Umberto Eco é escritor, autor de "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", "Baudolino", "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault".

Tradução: Rodrigo Garcia

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