sábado, 9 de janeiro de 2010

As minorias que estão por dentro

As minorias que estão por dentro

Descrição de astrologia por Adorno
aplica-se bem a outras ideologias,
religiosas e laicas
ANTONIO CICERO

NO LIVRO "AS ESTRELAS Descem à Terra", o filósofo Theodor Adorno observa que aquele que conhece a astrologia já se considera acima do homem comum, isto é, do homem que aceita acriticamente o senso comum sobre o mundo existente.

"A astrologia", diz Adorno, "à maneira de outras crenças irracionais, como o racismo, oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".

Essa descrição da astrologia aplica-se bem a inúmeras outras ideologias, religiosas e laicas. Como pretendo dizer algo tanto sobre aquelas quanto sobre estas, mas não há espaço para isso tudo numa só coluna, falarei apenas das religiosas neste artigo, deixando as laicas para o próximo.

Lembremo-nos, por exemplo, do cristianismo primitivo. Segundo seu verdadeiro fundador, o apóstolo Paulo, Deus disse: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes". Paulo pergunta: "Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?" E explica, adiante: "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus [...]. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe como eles são fúteis". No lugar da sabedoria deste mundo, Paulo propõe a fé, que, como diz, não se baseia na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

Com essas penadas são varridas, entre outras coisas, a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas. As obras de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Cícero, Homero, Hesíodo, Píndaro, Virgílio e inúmeros outros são cassadas, entre as quais (segundo a sabedoria dos sábios, a inteligência dos inteligentes e a erudição dos eruditos, tanto da época de Paulo quanto da nossa) algumas das maiores preciosidades jamais produzidas pelos seres humanos.

Nesse caso, os que estão "por dentro" da palavra de Deus não apenas se sentem superiores ao homem comum, como diz Adorno, mas também -e sobretudo- aos "sábios", aos "inteligentes" e aos "eruditos". Vingam-se assim -de novo, nas palavras de Adorno- de se sentirem excluídos dos privilégios educacionais.

Foi indignado com as palavras de Paulo acima citadas que Nietzsche afirmou que a religião cristã, sendo "inimiga mortal da sabedoria do mundo, isto é, da ciência, aprovará todos os meios pelos quais a disciplina do espírito, a integridade e o rigor em ciências do espírito puderem ser envenenados, caluniados, desacreditados. A fé como imperativo é o veto contra a ciência -na prática a mentira a todo custo... Paulo compreendeu que a mentira, que a "fé" era necessária; mais tarde a Igreja compreendeu Paulo".

Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica é assumida- quanto para os que deles eram excluídos.

Isso não quer dizer que não tenha havido seitas que se considerassem acima do senso comum e se rebelassem contra a sabedoria deste mundo, inclusive contra a pretensa sabedoria da doutrina católica. Durante a Idade Média, proliferaram seitas de hereges, milenaristas, salvacionistas etc. a manifestar seu ódio contra toda sabedoria humana e, em particular, contra a razão.

Assim também fizeram os líderes da reforma protestante. Não admira que Lutero, declarado discípulo de Paulo, tenha chamado a razão de "puta amaldiçoada". "A razão", diz, "tem que ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que pisar toda razão, senso e entendimento".

Em que essas ideologias religiosas são próximas da astrologia, tal como descrita por Adorno? Em se considerarem acima do senso comum e em proporcionarem aos seus adeptos a sensação de pertencerem a uma minoria que está "por dentro".

Mas não é toda ciência assim? A diferença, para Adorno, é que a astrologia consiste numa "crença irracional". Falarei disso no próximo artigo.

E em que são distantes da astrologia? Em desprezarem não só o senso comum, mas toda sabedoria humana, inclusive a razão. Nesse sentido, as ideologias laicas, de que falarei também no próximo artigo desta coluna, estão bem mais próximas da astrologia.

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