quarta-feira, 17 de junho de 2009

O "Ser Clássico" e o "Ser Contemporâneo"

Segue abaixo dois textos do filosofo Antonio Cicero, ambos saíram na Folha (salvo engano com a diferença de 14 dia de uma para outro....um é do dia 28 de maio e o outro do dia 13 de junho) falando sobre “o ser contemporâneo” “e ser clássico”. Dois assunto que assumo, viajei um pouco quando fazia minha Pós Graduação em Ética e Filosofia na Metodista e que de um tempo pra cá me vem sempre em meus pensamento, minhas reflexões. O que vem a ser essa filosofia clasica, o que vem a ser essa filosofia contemporânea....bom acho que o Antonio Cicero pode nos ajudar.

Boa leitura!

Ps. vejam o blog do Antonio Cicero, é maravilhoso!

O desejo do contemporâneo

Antonio Cicero, Ilustrada, 28 maio de 2009

O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".

Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.

Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.

Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.

Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.

Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo.

Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.

E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.

O clássico e o contemporâneo

Antonio Cicero, Ilustrada, 13. jun de 2009

ATRAVÉS DE e-mails e comentários no meu blog, alguns leitores atacaram aquilo que consideraram ser o conservadorismo do artigo "O desejo do contemporâneo", publicado aqui, em 28 de maio.

Em primeiro lugar, há os que supõem conservadora a minha crítica à obsessão de grande parte dos intelectuais brasileiros pelo "dernier cri" europeu ou americano. "Mal se conhece o "dernier cri'", eu dizia, "e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde". Observei, ademais, que "quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos". Também essa implícita defesa da leitura dos clássicos foi tida por conservadora.

Ora, "um clássico é um clássico", como afirma o poeta Ezra Pound, "não porque se conforme a certas regras estruturais ou se enquadre em certas definições (das quais o seu autor provavelmente nunca ouviu falar), mas porque possui certo eterno e irreprimível frescor". É clássica a obra que permanece sempre nova.

No caso da filosofia, isso ocorre quando, independentemente de concordarmos ou não com as teses defendidas por uma obra, ela nos solicita a questionar e a pensar de modo mais claro e mais profundo aquilo que realmente pensamos. É assim que podemos, à primeira vista, não concordar em nada com "A República", de Platão, ou com "Ser e Tempo", de Heidegger, por exemplo; entretanto, a leitura de tais livros enriquece o nosso modo de pensar. Nenhuma paráfrase, explicação ou interpretação de tais obras jamais seria capaz de substituir a leitura delas. Além disso, é a partir de semelhantes leituras que sabemos o que é ou o que deve ser a filosofia.

É claro que, quando consideramos determinado problema filosófico hoje, devemos conhecer o "status quaestionis", isto é, o estado em que se encontra a discussão sobre esse problema, e isso significa que é preciso saber o que pensam sobre ele também os nossos contemporâneos. Estes, ademais, exatamente por serem nossos contemporâneos, são capazes de levar em conta certas preocupações que só se tenham manifestado ou tornado prementes exatamente na nossa época. Por isso, no meu artigo anterior não critiquei o interesse, mas a obsessão que os brasileiros demonstram ter pelos contemporâneos. E o fiz porque observo que ela chega ao ponto de ter como contrapartida o desprezo pelos clássicos.

Essa obsessão pelos contemporâneos corresponde, é claro, ao desejo de superação do provincianismo. Sentido-se "atrasados", os brasileiros se esforçam por se livrar do passado, de modo a alcançar o tempo presente, que imaginam pertencer aos outros. Em tal esforço, dado que a tradição filosófica lhes parece pertencer ao passado, os brasileiros a alienam. É assim que perdem a posse direta dos clássicos que, por direito, é tanto deles quanto de qualquer outro povo contemporâneo. Fugindo do provincianismo espacial, caem no provincianismo temporal.

Mas meu artigo foi considerado conservador também por outra razão. É que a referência que nele fiz às "bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs" foi tida como um ataque a Nietzsche. Associando esse pretenso ataque ao autor de "Genealogia da Moral" com a crítica que eu havia feito, no artigo anterior, a certas teses de Foucault, houve quem pensasse detectar uma mudança para o conservadorismo na minha orientação filosófica, sintetizada do seguinte modo: "Antes Nietzsche e Foucault; agora Hegel e Aristóteles".

Na verdade, nem antes fui discípulo dos primeiros nem sou agora dos segundos; além do que há dúvidas sobre se os segundos são mais conservadores do que os primeiros. Em Foucault, critiquei sua defesa incondicional do regime reacionário instaurado pelo aiatolá Khomeini, bem como o relativismo cultural com o qual racionalizou essa defesa.

Quanto a Nietzsche, longe de atacá-lo, cheguei a emulá-lo. No ensaio "Sobre o Uso e o Abuso da História para a Vida", ele mesmo acusa os seus contemporâneos de "adaptarem o passado às trivialidades contemporâneas". É o que penso que alguns dos meus contemporâneos fazem com o próprio Nietzsche. Este, aliás, não tinha admiração nenhuma pelos seus contemporâneos, de modo que se considerava, sobretudo, extemporâneo. "Ao procurar biografias", aconselhava ele, "não queiram as que tragam o refrão "Fulano de Tal e o seu tempo", mas as que na página de título tenham que dizer "Um lutador contra o seu tempo'".

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