terça-feira, 2 de dezembro de 2008

As viagens de Saramago

Gosto muito do texto da Folha de São Paulo, e principalmente de seus colunistas do Caderno ILUSTRADA...segue abaixo, coluna de hoje de João Pereira Coutinho

CHEGA. Vou desfazer um equívoco. O equívoco dá pelo nome de Saramago. Sempre que alinho umas palavras críticas sobre o Nobel, os leitores, meus e sobretudo dele, não gostam do que escrevo e desatam a distribuir chicotadas sobre o lombo do cronista. Não gosto de Saramago, dizem, porque os meus preconceitos ideológicos não me permitem vislumbrar o escritor e a sua obra.

Existe uma parte de verdade na acusação. Sim, não gosto do Saramago político. Desde logo porque tenho memória: em 1989, visitei a Romênia pela primeira e última vez, três meses antes do encantador casal Ceausescu ser fuzilado em julgamento popular. Experimentei o "socialismo real" e não pretendo traduzir por palavras a miséria material e humana que o regime significava. Quem viu não esquece. Não esqueci. E entre o comunismo ou a guerra civil, qualquer país deve optar sensatamente por uma guerra civil.

Saramago discorda. Sabatinado pela Folha na passada semana, ele confessou-se um "comunista hormonal", o que não deixa de ser uma confissão de imbecilidade: para Saramago, a política não é assunto racional; mas hormonal, como se a vida de terceiros estivesse à disposição dos caprichos hormonais de um homem.

Esta atitude literalmente criminosa sempre foi típica de Saramago: em 1975, quando o meu país passava por um processo revolucionário que o prometia transformar numa espécie de Romênia do Ocidente, Saramago era a voz fanática que, nos jornais de Lisboa, clamava por mais sangue e mais violência contra os burgueses "reacionários". Conheço o bicho e conheço-o bem.

E a obra? Aqui, os meus "preconceitos" ideológicos terminam. Começam os meus "preconceitos" estéticos, que também os tenho. Saramago é um escritor altamente irregular e as suas piores obras são, invariavelmente, obras de um didatismo grandiloqüente, feitas de propósito para deslumbrar iletrados. Como, por exemplo, os iletrados da Academia Sueca.

Pedindo de empréstimo a retórica barroca de Antonio Vieira e de pregadores medievais como Álvaro Pais ou mesmo Antonio de Lisboa, romances como "A Caverna" ou "Ensaio sobre a Lucidez" são imprestáveis como literatura. O caso agravou-se depois da atribuição do Nobel em 1998: deslumbrado pelo seu estatuto universal, Saramago deixou de fazer literatura. Passou a contrabandear política por via literária em parábolas de um moralismo infantil.

Disse e repito que Saramago é um escritor altamente irregular. O que significa que, no meio do lixo, existem obras que merecem leitura e releitura. Antes do fatídico Nobel, relembro duas: "Memorial do Convento" e o espantoso "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que considero um dos maiores romances da literatura européia contemporânea. E a esses dois, manda a justiça que se junte mais um: o mais recente livro de Saramago, "A Viagem do Elefante" (Companhia das Letras, R$ 42; 264 págs.), que o escritor lançou mundialmente no Brasil.

Confesso que iniciei a leitura com as piores expectativas, esperando ler na história do elefante mais uma parábola política para catequizar os incréus. Terminei o livro a levitar: Saramago suspendeu o didatismo rasteiro das obras anteriores para construir uma história (quase) de aventuras poderosamente escrita e imaginada.

É a história de Salomão, um elefante vindo da Índia portuguesa, que o rei d. João 3º resolve oferecer ao arquiduque Maximiliano da Áustria, seu primo. O livro relata simplesmente essa viagem e os contornos oníricos dela: uma marcha lenta do elefante e da sua comitiva através da Europa do século 15. A cruzada paquidérmica permite a Saramago o tom irônico mas compassivamente humano sobre as ilusões e as vaidades transitórias dos homens.

A viagem termina em Viena, cidade elegante mas inevitavelmente pasmada perante o elefante e o seu cornaca. Pena que o elefante também termine pouco depois. Morto e esfolado, suas patas serão cortadas e transformadas em recipientes para depositar bengalas e sombrinhas. A grande viagem termina em bengaleiro, metáfora perfeita sobre a nossa condição.

"A Viagem do Elefante" é o melhor livro de Saramago desde o Nobel. Mas é também um dos grandes romances da literatura portuguesa de hoje. Saber que Saramago o escreveu e terminou em condições precárias de saúde só aumenta a minha admiração: pelo livro e, apesar de tudo, pelo escritor intermitente que Saramago é. Políticas à parte.

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