quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Marcelo Fromer

Coluna de hoje do Nando Reis no Estado. Apreciem...  

Se estivesse vivo, ontem ele teria completado 47 anos. Conheci Marcelo quando eu tinha 14 e ele 15, na Feira Medieval do Colégio Equipe, isso nos idos de 1977. Voltamos juntos de ônibus, de madrugada, pois éramos vizinhos de bairro, morávamos a duas ruas um do outro no velho Butantã.

Embriagados de vinho barato servido a rodo na taverna renascida sobre o chão de serragem, iniciamos uma amizade que foi subitamente interrompida pelo atropelamento fatal que o levou. Não sabíamos que aquela noite seria a primeira de uma longa série de noites, tardes, dias e madrugadas vividas com a intensidade insana da juventude que parecia nunca ter fim. Mas as coisas têm fim, a vida tem fim, e a sua morte impôs essa dura constatação.

Duas naturezas diferentes, por vezes complementares, outras tantas superpostas e interativas, fizemos muito do tudo que se pode fazer numa vida. Com outros amigos de escola formamos uma banda e, com ela, atravessamos 20 desses tantos anos de amizade e convivência. Com os Titãs, crescemos e pudemos criar nossos filhos que continuam a crescer e nos recriar. Mas, antes e além da música, outras paixões deram frutos e se construíram desenhadas na lousa concreta da realidade. Fizemos o Papagaio, revista em quadrinhos alternativa e anarquista que ia de encontro com a pasmaceira obsoleta do pensamento estudantil que achava que a única forma de atuação política eram as passeatas e os jornais engajados, a repetir como papagaios os jargões esquerdistas. Sempre defendemos o pensamento original e criativo como legítima força revolucionária. A revolução contra a falta de imaginação.

Até mesmo uma torcida uniformizada criamos, a LSP - Loucura São Paulina. Sim, Marcelo também era são-paulino e gostava de ir ao estádio. Nossa torcida era escandalosamente representativa das minorias. Lembro bem da ocasião em que Marcelo chegou ao estádio com o cabelo pintado de roxo, chamando mais atenção que o próprio jogo.

Torcer pelo mesmo time não significa ter a mesma cabeça, podemos vestir apenas a mesma camisa. Mas no nosso caso havia mais do que afinidade de idéias. Dividimos paixão pelas mesmas mulheres, assinamos canções com duas e muitas outras mãos, dividimos quartos de hotel nos tempos mais bicudos e formamos inclusive uma imbatível dupla de buraco graças à nossa habilidade com as cartas, sua espantosa sorte e algumas trapaças deploráveis.

As pessoas são únicas e insubstituíveis, isso é certo. Mas na vida alguns encontros vão além disso, carregam mais do que a particularidade do acaso. Conhecer alguém aos 14 anos e atravessar junto dele o oceano de uma vida, transformar e ser transformado, é mais do que um simples ato fraterno de companheirismo. É uma comunhão que transcende a lógica, vai além da compreensão, não tem e não pede explicação. O que determina uma afinidade? O que nos faz gostar tanto de alguém que nos torna capaz de gostar até mesmo daquilo que a gente não gosta? O que determina o amor? É estranho: saudade dói, mas ao mesmo tempo a gente não quer deixar de sentir. Porque a intensidade da saudade machuca, mas é ela que mantém viva a lembrança daquele cuja presença não podemos mais encontrar.

Saudade reacende na memória o olfato, o tato, a voz e a imagem que só reaparece vívida de quando em quando no desespero lúdico do sonho. Como aqui é lugar para se falar de futebol, certamente haverá gente que não vai entender o sentido disso que escrevi.

Não tem importância. Se a morte de quem a gente ama não faz nenhum sentido, um artigo também pode não fazer.

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