sexta-feira, 24 de abril de 2009

Linguiça sem trema

CARLOS HEITOR CONY, Ilustrada, hoje na Folha

 “Se todos fossem pessimistas, o mundo não teria sido, nem teríamos as artes, o picolé ou o termômetro de peru de Natal”

Afirmam os entendidos que não devemos ser pessimistas. O pessimista -segundo o lugar-comum- começa perdendo, é derrotado antes mesmo de lutar. Leva para a faina de cada dia a carga de sua própria danação. Nada vai dar certo, nada vale a pena, nem mesmo se a alma não é pequena. O mundo, a civilização, as artes, o picolé, o canivete suíço, as calças jeans e as canetas esferográficas foram feitas por homens otimistas, que acreditavam em si mesmos e acreditavam nos outros homens. Se todos fossem pessimistas, o mundo não teria sido, nem teríamos aquele termômetro que se bota no peito do peru de Natal para que apite na hora em que estiver pronto.

O otimista não chega a ser, exatamente, o oposto do pessimista. É o homem que acredita em alguma coisa e nesse acreditar joga as suas forças, seus escudos e armas, sua solércia. A eles, as batatas machadianas.

Entre os dois, entre pessimistas e otimistas, ficam os realistas, que são uma variante dos homens de boa vontade, nem tanto lá nem tanto cá, nem tanto ao mar nem tanto à terra, antes pelo contrário, tudo tem dois lados, vamos ver como é que fica, é possível que tudo seja melhor, não adianta dar murro em ponta de faca nem chorar pelo leite derramado.

Deve haver, na certa, outras posições do homem diante da vida e de seus abrolhos. Mas as três -pessimismo, otimismo e realismo resumem o grosso da boiada- e bota boiada nisso. Até bem pouco tempo, minha posição pessoal era mais ou menos idêntica a de todo mundo: escolhi um lado (o pessimismo) e nele fiquei ao longo dos anos -que já não são poucos, mas bastantes.

Ultimamente, baguncei meu coreto e pendi para o realismo -no que mantive uma única atitude firme: a de nunca ser otimista. Para mim, já o disse variegadas vezes, o otimismo é falta de informação.

Mas nada como os dias que se sucedem, "unus post alium", e agora me refocilei numa posição mais cômoda e veraz. Sou como aquele relógio do português da anedota.

Deu-se que um português foi tapeado por um gringo que lhe vendeu um relógio, daqueles que antigamente se dizia "da marca barbante". Ou "pateque cebola". O gringo garantiu-lhe que o relógio era de ouro. Um amigo do galego examinou a preciosidade e disse que não era de ouro coisíssima nenhuma. Chegando em casa, a mulher quis saber se o relógio era ou não era de ouro. Ao que o português respondeu sabiamente, encerrando a questão: "Às vezes é de ouro, às vezes, não é".

Taí a sapiência. Às vezes sou realista, outras, pessimista. É possível até que, em raríssimos casos, chegue a ser discreta (e envergonhadamente) um otimista, como, por exemplo, no caso de o Brasil ser finalista na próxima Copa do Mundo. Ou na possibilidade de os pósteros, em indesculpável demência, reconhecerem os méritos de nossa conturbada era nacional.

No atacado, porém, no grosso do grosso, continuo pessimista e aos poucos descobri que o realismo, tirados os nove fora, é a forma lúcida de ser pessimista. A cada escândalo público que estoura por aí, a cada esqueleto que se tira do armário, sei antecipadamente que tudo dará em água de barrela -não sei qual seja esse tipo de água, mas a expressão é encontradiça em autores mais sérios do que eu. ("Encontradiça", para os poetas, tem até a vantagem de rimar com linguiça, agora sem trema, graças ao meu bom amigo Evanildo Bechara).

Só para dar um exemplo: do jeito que as coisas estão se arrumando no tabuleiro, não teremos nem sucessão presidencial nem terceiro mandato. Pura e simplesmente, esgotado o tempo regulamentar, teremos uma prorrogação do mandato, negociado pelos interessados de praxe e circunstância. Mudar a Constituição mais uma vez dá muito trabalho e custa muito dinheiro. Tirante os gatos pingados mais radicais da oposição, a classe política, o poder econômico, mais da metade do eleitorado e até Barack Obama parecem estar satisfeitos com Lula.

Não sei se estou sendo realista ou pessimista nesta previsão meio (ou totalmente) alucinada. O fato é que os fatos estão aí. E entre mortos e feridos, vamos perdendo a esperança que dá ao homem o dom de suportar o mundo e, até certo ponto, a necessidade de suportar-se a si mesmo.

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