quinta-feira, 16 de abril de 2009

A Loucura! 4

Alguns desdobramentos que saiu no Painel do Leitor nos dias 15 e 16 da Folha de São Paulo. Como disse na postagem anterior, este é um assunto que tem várias frentes....o nos cabe debate-las.

"A sobriedade de Ferreira Gullar em sua coluna é rara nos jornais ("Uma lei errada", Ilustrada, 12/4).

Os hospitais-dia e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) têm sua função e devem atender a pacientes psiquiátricos cuja patologia permita parte da jornada em suas próprias casas, contudo o fechamento indiscriminado de leitos psiquiátricos na rede pública impede a abordagem de pacientes nos quais a ação médica deve ser incisiva.

A internação prolongada é prescindível com as medicações de que dispomos atualmente. A classe média merece refletir sobre a questão psiquiátrica sem vieses políticos e de classe."

LUÍS FERNANDO DE ARAÚJO, psiquiatra (São Paulo, SP)

"Como pai, a dor expressada por Ferreira Gullar merece todo o respeito. Mas, como pessoa pública, ele faz exatamente aquilo que crítica em seu artigo: adere sem refletir e examinar detidamente o problema que apresenta.

Sua opinião carece de fundamentos científico e empírico sobre as formas de atenção a pessoas com sofrimento mental e sobre as políticas públicas nessa área. O autor desconhece a história dos movimentos pela extinção dos manicômios e pela reforma psiquiátrica brasileira, que defendem a internação, quando necessária, em serviços preocupados com reabilitação (hospitais gerais, entre outros), ao contrário das instituições asilares, que cronificam sofrimentos e intensificam a segregação.

Os problemas que vimos enfrentando, como ele menciona, e que tanto nos afligem são efeitos de um conjunto muito mais complexo de fatores do que de uma lei que nem sequer foi aprovada na íntegra."

IANNI REGIA SCARCELLI, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro da Associação Brasileira de Saúde Mental -Abrasme (São Paulo, SP)

"Parabenizo Ferreira Gullar pelo artigo "Uma lei errada", Ilustrada, 12/4). O poeta provocou durante toda a semana uma discussão sobre o tema "doentes mentais". Na próxima semana, outros assuntos ocuparão o espaço e este cairá no esquecimento. Infelizmente, é assim que funciona.

As leis são feitas para serem cumpridas. Porém, na prática, a teoria é outra. Faço parte de uma instituição filantrópica, quase centenária, que trata de doentes mentais e onde o dia a dia é ver o sofrimento de toda a família envolvida com o seu ente querido.

Costumo dizer que somos o fim da linha, pois a família já sofreu muito até chegar aqui. Os caminhos percorridos são de muita dor e desespero. Fazemos a nossa parte com muito amor e carinho, procurando dar um tratamento digno aos nossos pacientes e tendo a comunidade como grande parceira."

WANDERLEY CINTRA FERREIRA, presidente do Hospital Psiquiátrico Allan Kardec (Franca, SP)

"Tenho acompanhado a repercussão sobre a coluna de Ferreira Gullar e discordo piamente dos argumentos desse admirável poeta. Sou estudante e há alguns anos estou envolvido nesse emaranhado que é a questão da loucura.

Tive a oportunidade de conhecer outros modelos de tratamento, tal como o italiano, que muito difere do brasileiro.

Porém, apesar das discordâncias, acredito que, ao polarizar o debate, os maiores prejudicados serão justamente as pessoas que vivem em sofrimento psíquico. Durante muitos anos, foram submetidas a tratamentos sub-humanos e, com a lei, passaram a ter esperança num outro modelo, que, infelizmente, depois de quase duas décadas, se encontra à deriva, ou seja, sem grandes avanços nos cuidados ao dito "louco".

É necessário um espaço para debates sem essa disputa de saberes "psis" que vemos nas cartas."

DANIEL FERNANDO FISCHER LOMONACO, estudante de psicologia da PUC-SP (São Paulo, SP)

Um comentário:

Rita de Cássia de Araújo Almeida disse...

Prezado Ferreira Gullar
Certa vez você escreveu assim:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores", manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...então venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.

saudações antimanicomiais

Rita de Cássia de A. Almeida
Juiz de Fora/MG
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos