segunda-feira, 20 de abril de 2009

Verissimo

Antiutopia

Fonte: Estado de São Paulo, Caderno 2, 19 abr. 2009

Em inglês eles usam "dystopia" mas em português "distopia" tem outro sentido. Como se chamaria o oposto de Utopia? "Antiutopia" é óbvio, mas serve. A Utopia original, a sociedade perfeita onde tudo dava certo, foi imaginada por Thomas Morus no século 16. Dizem que ele se inspirou nas primeiras notícias do descobrimento do Brasil para inventar seu paraíso racional e situá-lo numa ilha do Atlântico Sul. Um pouco da idealização de Thomas Morus sobrevive no imaginário europeu, como se vê a cada vez que eles fantasiam uma das nossas peculiaridades, seja a alegria de viver, a sensualidade ou o Lula.

Num artigo sobre o pintor Jacques-Louis David reproduzido pela recém-lançada revista serrote, Carlo Ginsburg propõe que a derrubada do Muro de Berlim em 1989 marca o fim do ciclo histórico iniciado com a Revolução Francesa em 1789, exatamente 200 anos antes. A ideia atrai pela simetria simbólica mas a conta não é precisa. A era das revoluções começou antes da queda da Bastilha, com o Iluminismo e com a Revolução Americana (ou, se quiserem uma mais antiga, com a revolução cromwelliana na Inglaterra) e acabou antes da queda do Muro, com o Gorbachev trocando sorrisos com o Reagan. Mas como gostamos de simetria, ainda mais quando ela simplifica a História, nada nos impede de pegar emprestada a data de 1989 para marcar o fim do pensamento utópico e o começo do pensamento antiutópico.

Durante mais de 200 anos de aspiração utópica, a ideia de transformar o ser humano e a sociedade criou maravilhas e horrores quase que em doses iguais: a democracia e o fim das monarquias absolutas (pelo menos no Ocidente), o crescimento dos direitos individuais, o Terror que quase afoga a Revolução Francesa em sangue, a arregimentação social do fascismo, a perversão do socialismo pelo totalitarismo soviético - enfim, tudo anunciado ou mascarado como progresso.

O pensamento antiutópico não começou apenas com a desilusão de utopistas de esquerda com a queda do Muro e o fracasso do sistema soviético. Tem uma raiz apolítica na percepção do que estamos fazendo com o planeta, do que o progresso tem de suicida. Há uma desilusão com o capitalismo também, agravada com a crise atual. A tecnologia não nos salvará, ela é parte do problema. Só ajudará se, como resultado da nossa adaptação à antiutopia que vem por aí, aprendermos a comer telefones celulares e baterias descartadas. Hoje se especula não como aperfeiçoar o ser humano e a sociedade mas como o humano e o social sobreviverão num mundo pós-crise terminal, entregue, literalmente, às feras. Já é grande a literatura antiutopista sobre como será a vida numa sociedade tornada selvagem pela privação e o desespero.

Mas acalmemo-nos. As antiutopias previstas podem ser tão fantasiosas como a Utopia de Thomas Morus. E o Obama não disse que as coisas estão melhorando?

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