segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Um traficante de livros

Fonte: Revista Cult               

Base aérea do Galeão, impiedoso Sol carioca         

Pontualmente, às 12h30, o avião da FAB está pronto e aguarda a partida. O ministro Juca Ferreira, com terno e camisa azuis, embarca no pequeno Learjet. É seu segundo compromisso do dia. O primeiro ocorreu há pouco, em solo carioca. O destino é Recife, cidade cantada nos versos de Cabral e Bandeira, a qual continua a reverberar ecos literários, seja em seu centro histórico, seja na periferia. O motivo principal da viagem é uma matéria veiculada em O Globo, a qual despertou verdadeiro "alumbramento" em Juca. Ricardo Gomes Ferraz, ou simplesmente Cacau, é morador da comunidade do Bode, uma das mais violentas da periferia do Recife. Em uma humilde palafita, Cacau construiu uma biblioteca intitulada Os guardiões, a qual é aberta a todos os moradores.

- Quando li, disse: vou lá! Comenta o ministro, em tom de entusiasmo.

- Ministro não pode ficar só no gabinete.

Após assumir o ministério, a agenda de Juca Ferreira tornou-se repleta de compromissos. Há os pesares. O filho Vicente, de 8 anos, é quem mais critica o "corre-corre" do pai. Como previsto, o avião aterrissa na base aérea do Recife, localizada junto ao aeroporto dos Guararapes.

A vontade de ser útil

Da base para a comunidade do Bode. À entrada, a rua estreita e policiais à espreita. São dezenas deles. Empunhando revólveres e fuzis, aguardam a chegada do ministro. Crianças gritam e acenam para a ilustre visita, incomum por ali. Até chegar à palafita, o caminho é tortuoso. O chão é coberto de pequenas conchas, algumas delas levadas pela água suja e fétida que cruza as casas. Ao chegar à palafita, Juca encontra, além de Cacau, dezenas de jornalistas e mais policiamento. Polícia esta responsável pela morte de um amigo de Cacau, na véspera. Dentro da palafita, centenas de livros empilhados espalham-se pelos cantos. Há desde literatura infantil a clássicos, como Macbet, de Shakespeare. Todo o acervo fica à disposição dos moradores. Crianças folheiam os livros, alheias ao frenesi dos fotógrafos, em busca da foto da capa. Entregam ao ministro alguns volumes para fazer uma entrega simbólica a Cacau, talvez na tentativa de finalmente conseguirem a foto da capa.        

- Fica um pouquinho de lado, por favor. Uma imagem a mais. - pede um fotógrafo

- Uma imagem a mais pode modificar o sentido. Eu não vim aqui dar livros e sim para reconhecer a grandeza do trabalho dele. - afirma, constrangido, Juca Ferreira.

Ao ser questionado sobre como surgiu a idéia de criar a biblioteca, Cacau diz que a principal motivação foi: "a vontade de ser útil". Dura é a realidade da comunidade do Bode. O crack é um dos vilões. Muitos daqueles que não entram para o universo da drogas vivem da pesca.

- A gente vive de pesca. Às vezes tem, às vezes não dá. A gente quer que melhore. - comenta a moradora Maria do Carmo.

Cacau já foi vítima das drogas. Hoje, recuperado, assiste ao triste destino de amigos, como aquele que morreu no dia anterior. Quanto à biblioteca, está decidido a não retirá-la da comunidade do Bode.

- Sou um traficante de livros. Minha biblioteca tem que conviver com a dor da minha comunidade.

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